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A Salvação, segundo Ubaldi
O conceito de
salvação apregoado pelo cristianismo tem sido objeto de muitas controvérsias,
sobretudo no âmbito espírita. A exclusiva visão evolucionista, adotada pelo
espiritismo como a única forma de se compreender a vida e o universo, entra em
formal contradição com a noção de salvação veiculada pelo fundamentalismo
cristão. Será possível conciliar esses dois entendimentos aparentemente
antagônicos?
Embasada na
tradição judaica e especialmente nas lições de Jesus e nas afirmações de seus
discípulos diretos, registradas no Novo
Testamento, a teologia cristã entendeu a salvação como a recondução do
homem, expulso do Paraíso pelo pecado de Adão e Eva, ao Reino de Deus. Tal
conceito se responsabiliza inclusive pela própria definição de religião,
palavra que na sua origem latina significa re-ligare,
ou seja, a restauração de uma pretensa “ligação perdida” com o Criador. Assim o
homem é visto como um réprobo, um pecador, que corre o risco de uma condenação
eterna, pelo fato de ser herdeiro da desobediência do primeiro casal. Dessa
forma justificar-se-ia a sua necessidade de ser socorrido e resgatado desse
mundo.
Essa salvação
teria sido proporcionada ao homem pela graça e misericórdia divina, como
indispensável quesito a ser adotado pela nossa fé. Bastaria então crer
firmemente nessa possibilidade para que ela se efetive em nós. Tal conceito
está claramente expresso em todo o Novo Testamento, como, por exemplo, nas
palavras do apóstolo Paulo: "Porque
pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus;
não de obras para que ninguém se glorie" (Efésios 2:8-9).
A doutrina
espírita, não obstante, compreende o homem como um ser que segue uma trajetória
evolutiva rumo à perfeição relativa, por meio da palingenesia (reencarnação),
depois de ter sido criado simples e ignorante. Essa visão, que denominamos evolucionista em contraposição ao
tradicional criacionismo, não
reconhece a necessidade propriamente de uma salvação para o homem. Ele não
precisa ser resgatado de nada, senão evoluir. Assim, salvação passa a ser
simplesmente evolução – o progresso do ser rumo a condições superiores de vida.
Apenas isso.
Nessa
particular visão, como estamos todos inseridos na natural progressão evolutiva,
todos seremos inexoravelmente conduzidos aos planos superiores do espírito.
Desse modo, salvação seria movimento automático, inerente à lei do progresso e
pertinente a todo ser vivo. Empenharmo-nos nessa salvação significa acelerar os
passos na trilha do desenvolvimento. Quem não se empenha em “salvar-se”, ou
seja, aquele que permanece arraigado aos interesses inferiores da vida, apenas
tardará mais tempo em atingir os objetivos finais da evolução. Já o indivíduo
que segue preceitos morais, esmerando-se na prática sincera do bem, dispõe-se
ao mais rápido aprimoramento evolutivo e mais depressa atingirá a vida superior
do espírito. Portanto, ao evadir-se dos mundos de expiação e provas mais
prontamente desfrutará de paz, equilíbrio e felicidade. Já os egoístas,
arraigados aos interesses inferiorizados do espírito, demorar-se-ão nas dores
expiatórias, colhendo os mesmos sofrimentos e privações que semeiam pelos seus
ímpios caminhos.
Salvação,
então, repitamos, passa a ser a aceleração do inevitável progresso da alma. E
assim a visão evolucionista negou enfaticamente os preceitos evangélicos de
resgate da alma da condenação eterna. Precisamos apressar os passos, mas não
guardamos propriamente estrita necessidade de ser salvos, pois não estamos
perdidos. A inferioridade em que nos demoramos é condição natural de vida, faz
parte do roteiro de criação progressiva das almas – do mesmo modo que não
precisamos socorrer nenhuma criança da escola primária, apenas ajudá-la a
percorrer da maneira mais rápida possível as suas indispensáveis lições. Eis por
que um articulista e escritor espírita publicou, certa feita, em importante
revista de espiritismo, um artigo intitulado Salvação? Não obrigado! Dizia o renomado autor: “Não usamos o termo
‘salvação’, que historicamente está vinculado ao salvacionismo igrejeiro, uma
solução que vem de fora. Na realidade aceitamos a evolução, a sabedoria e a
felicidade para todas as criaturas”.
Exatamente por
isso o espírita aboliu a palavra “salvação” de seu discurso. Moldados por essa
nova visão evolucionista, proporcionada pelos preceitos kardecistas, os antigos
conceitos teológico-cristãos tomaram significados próprios, apropriados à
compreensão da vida como um movimento de crescimento de espíritos, criados
simples e ignorantes, rumo à perfeição relativa. Salvação, assim, tornou-se, evolução.
Pecado fez-se nada mais que o erro do espírito ignorante que ainda não
sabe se comportar como o exige a Lei de Deus. Jesus foi compreendido como um educador de almas que veio ao mundo
para impulsionar-nos aos patamares superiores da vida. O titulo de “Salvador”,
o “Messias prometido”, que Ele mesmo se deu e a história humana corroborou,
é-lhe formalmente negado. Ressurreição
converteu-se em reencarnação, sem a
qual o espírito não pode alcançar os planos superiores da vida onde se encontra
Deus. Inferno é panorama íntimo da
alma atormentada pelo necessário processo de corrigenda dos erros cometidos. E céu ou paraíso passa a ser condição
própria da alma que atingiu estágio superior de vida.
E assim a
doutrina espírita construiu uma nova teologia entretecida na exclusiva
interpretação evolucionista da vida, a qual dispensa em absoluto o antigo
entendimento que o fundamentalismo cristão adotou sobre a salvação. A evolução
do espírito é agora movimento inexorável, promovido pela lei do progresso –
inclusive os corolários espíritas não admitem o retrocesso da alma –, então não
há do que sermos salvos. Caminhando pelos múltiplos estágios da escola da vida,
alternando existências ora no mundo espiritual, ora no mundo carnal,
progrediremos sempre até atingir, segundo os preceitos kardequianos, a almejada
perfeição relativa. Pelas quedas morais, comuns à nossa ignorância, podemos
retardar os passos, repetir lições, mas jamais deixaremos de ir adiante, e
evadir-nos-emos indubitavelmente dos palcos inferiores da vida. Portanto,
Kardec, ao afirmar que “fora da caridade não há salvação”, pretendia exatamente
dizer que sem o esforço em realizar obras no bem não há possibilidade de o
homem adiantar os seus passos na jornada do progresso. Estacionado nos interesses
ególatras inferiores, retardar-se-á, multiplicando assim as suas dores
evolutivas e expiatórias – outras consequências não advirão, pois o permanente
avanço é inexorável.
Não estamos
negando esses preceitos. Eles atendem à nossa lógica e estão perfeitamente
aderidos aos nossos conceitos de evolução espiritual. Contudo, podemos, com a
ajuda de Ubaldi, lançar um olhar mais abrangente sobre o conceito de salvação,
compreendendo outros de seus aspectos, ampliando assim um pouco mais o nosso
entendimento.
O estudioso de
Pietro Ubaldi percebe que o tema é mais vasto do que imaginávamos. Com a ajuda
do iluminado mensageiro da Úmbria, compreenderemos que ele extrapola a moderna
compreensão evolucionista e, curiosamente, abarca ao mesmo tempo a clássica visão
fundamentalista cristã. Como pode ser isso?
Para
compreender, faz-se imprescindível abandonar nossas arraigadas posições
dogmáticas. Assim, o cristão fundamentalista deve deixar seu cômodo apego à
letra dos Textos Sagrados; e o espírita carece evoluir a sua moderna
proficiência intelectualizada. Essa é exatamente a dificuldade, pois o primeiro
radicaliza-se em seus preceitos fideístas, e o segundo não dispensa sua
contumaz racionalidade. Então ambos não logram percorrer o pequeno trecho que
os separa de uma verdadeira síntese de conceitos, que nada nega,
favorecendo-nos com uma forma mais avançada e unitária de se divisar a
realidade.
Quem não está
disposto a abdicar de seu entendimento, e sente-se confortável em seu patamar
de compreensão, não está pronto para ir adiante. Ninguém poderá convencê-lo do
que quer que seja. A revelação que nos trouxe Ubaldi é conhecimento de síntese
que requer peculiar predisposição íntima para ser devidamente apreendido. É o
tipo de assunto para o qual devemos estar preparados. E não se presta para quem
não está pronto. Portanto não serve para todos. Sabemos disso. Por isso não
tratamos aqui de impor verdades a ninguém. Além disso, as verdades são como os
frutos, precisam estar maduros para se fazer palatáveis ao espírito. Do
contrário, tornam-se amargos e imprestáveis.
Se as lições
de Ubaldi parecem, a princípio, ferir nossas mais sagradas crenças, é preciso
ainda admitir que o cabedal de verdades disponíveis ao homem atual
evidentemente não corresponde à última realidade do Todo. Faz-se impositivo
aceitar que estamos todos, absolutamente todos, ainda muito distantes da
Verdade plena, pertinente apenas aos altiplanos da evolução do espírito.
Por isso, uma postura de humildade é essencial a nossa permanente ascensão espiritual.
Importa admitir que cada qual está habilitado a perceber um limitado aspecto da
verdade, o qual tomará sempre pelo todo. Exatamente por isso nossas verdades
devem ser periodicamente desestabilizadas, a fim de sermos preparados para
novas e mais dilatadas compreensões. É assim que evoluímos. Desse modo, derruir
antigas verdades e predispor-nos a novas semeaduras de sabedoria é genuína obra
do tempo, em ação em nossa intimidade, visando impulsionar-nos para adiante.
Essa é exatamente a tarefa dos grandes missionários que periodicamente vêm à
Terra e por isso eles nos incomodam. Exatamente porque desestabilizam nossas
cômodas posições de entendimento. Fixados em nosso habitual misoneísmo e sem
suspeitar que estacionamos em corolários provisórios, apressamo-nos a
combatê-los, iludidos de que nossas verdades são eternas e jamais serão
demovidas.
Por isso
sabemos que sequer com Ubaldi atingimos o ápice da verdade. Em absoluto. Não
guardamos tal pretensão. Todos os nossos conhecimentos acham-se incompletos,
pois, como seres em crescimento, estamos ainda muito distantes da verdade
absoluta. Em razão disso não queremos passar a impressão de que nosso conceito
é superior aos demais. Ressaltamos apenas que a revelação que nos trouxe o
missionário do Cristo acalma-nos sobremodo o entendimento, apazigua nossos
atritos ideológicos e ajuda-nos a melhor aceitar nossos aparentes antagonismos.
E, sobretudo, funde-nos perfeitamente com as lições do Evangelho. Eis por que o
julgamos essencial para os nossos atribulados dias.
Debulhemos,
todavia, sem demora o assunto, para que o leitor compreenda tudo isso que
estamos afirmando. Como podemos compreender a salvação tomando por base os
ensinos de Pietro Ubaldi?
O filósofo da
Nova Era ensina-nos que o universo relativista em que vivemos, entretecido em
tempo e espaço, energia e matéria, é uma criação deteriorada, produto de uma
contração espiritual que se denominou queda
do espírito. E essa criação deteriorada em que vivemos, Ubaldi chamou de Anti-Sistema (AS), por achar-se nos
antípodas do universo original, o divino, por ele denominado Sistema (S). Essa queda foi motivada,
resumidamente e até onde nossa razão pode alcançar, pela inadequada opção do
espírito em vivenciar intensamente o egoísmo.
Uma vez que o
espírito arremeteu-se ao AS, detendo-se em sua trama de caos e destruição,
somente uma força íntima, em ação na sua própria substância, poderia soerguê-lo
da hecatombe do egocentrismo. Eis o novo conceito
de salvação, que agora compreendemos como ação de resgate do espírito que
caiu nas malhas do relativismo, imiscuindo-se em malogrados envoltórios
físicos. De outra forma, não se entende por que Deus criaria seres necessitados
de percorrer uma evolução, caracterizada, segundo predisposição natural, por
expiações e purgações, dores e atritos, em permanente regime de purificação,
como a própria doutrina espírita a define.
Segundo a
proposição de Ubaldi, e como aferido pela antiga tradição cristã, a evolução
somente se justifica para seres que optaram pela revolta contra o amor. E evolução
então, como um movimento de expansão do ser, seria nada mais que a reação a uma
anterior avulsão de contração de potencialidades.
Os detalhes
dessa queda nos escapam na atualidade, pois ela extrapola o nosso concebível
por haver ocorrido fora do tempo e do espaço, muito além do que pode a nossa
parca razão atual alcançar. Apenas sabemos que ela se tornou possível na
criação original por havermos sido gerados com o princípio de autonomia. O tema, contudo, não pode aqui ser
abordado, pela extensão e a vastidão de suas implicações. Recomendamos ao
interessado que leia Deus e Universo
e O Sistema, obras nas quais Ubaldi
detalha essas questões. Para quem deseja uma versão resumida e romanceada do
assunto, recomendamos o livro Tabernáculo
Eterno, um trabalho de inspiração mediúnica no qual tivemos participação
especial, publicada pela Editora Inede.
Mediante o
conhecimento da queda do espírito, compreendemos agora que, antes de iniciar a
evolução, o espírito sofreu um processo de condensação involutiva que o arremeteu
à inconsciência, condição que o espiritismo designa como “simples e ignorante”.
Nesse ponto, ele inicia a alçada evolutiva, agora vista como uma reação ao
precedente movimento de involução. A evolução passa assim a ser entendida, de
fato, como a salvação, ou seja, o movimento de recuperação do ser caído na
matéria. Movimento operado por forças poderosas, restauradoras da ordem e da
perfeição perdidas, veiculadas pela ação amorosa de Deus. Forças que lutam
contra a imposição de desordem e destruição que passaram a imperar ao nosso
derredor, as quais se originaram da queda e não propriamente do desejo do
Criador. Essa é a maneira mais lógica de se explicar a presença desses
processos negativos na criação divina, e aceitarmos o fato de que nosso universo
é um palco de batalhas de interesses antagônicos – as forças adversas do AS,
contra as potências regeneradoras e reconstrutoras do S. Ora, uma criação
homogênea, advinda de uma expressão unitária que é Deus, não poderia admitir
essa franca oposição de valores em seu bojo.
Com a queda,
patenteia-se que gravitamos entre os impulsos de destruição e do mal (forças
AS) e as energias do bem e da ordem (forças S), em um universo dualizado,
submetido a uma permanente oposição de valores. E justifica-se porque nosso
cosmo se inicia em meio a uma fenomenal hecatombe, o Big bang, ao qual a inteligência divina trata de impor uma
progressiva ordem e uma crescente complexidade. De outra forma, como aceitar
que Deus, se nada existia, tenha gerado antes o caos para então organizá-lo na
paciente esteira do tempo? Ora, o caos somente pode advir de forças
desordenadas que se investem contra a ordem, jamais da inteligência suprema que
creditamos à infinita Sabedoria do Criador.
Uma vez que se
formou, empreendido pelas forças rebeldes, esse reconhecido e ciclópico tumulto
do universo físico primordial, de que todos participamos, as potências divinas,
reconstrutoras da ordem e do equilíbrio, passaram a agir na sua intimidade
fenomênica, a fim de soerguê-lo do caos. É assim que Ubaldi nos afirma que
“nosso universo é uma doença no seio da eternidade” que será curada pelo
paciente trabalho da evolução, sob orientação divina. A antiga revelação do
Gênese mosaico engrandece agora surpreendentemente aos nossos olhos, ao
recordarmos sua poética e singela linguagem a nos mostrar a ação divina
operando a paulatina ordenação da desordenada massa cósmica na sucessão do
tempo, os “dias” da criação.
Evidentemente
sempre vitorioso, esse dinamismo reconstrutor do universo desmoronado
representa então a salvação de Deus,
que, por amor, caiu junto com a criatura para resgatá-la do báratro de
desordens em que se precipitou. É exatamente essa, a salvação pela graça divina, que foi definida nos Textos Sagrados,
sobretudo no Novo Testamento, e concebida por elevada inspiração mediúnica de
seus autores, como sabemos. Em luta contra a dor, a morte e o mal em todas as
suas expressões, consequências diretas da queda, esse impetuoso impulso
salvacionista, criador e organizador, soergue com êxito o espírito das cinzas
de si mesmo, ajudando-o a refazer a organicidade perdida. E o faz por meio da
longa e paciente elaboração evolutiva, no grande oceano do tempo, em seus quase
intermináveis ciclos de vidas e renascimentos.
Portanto a
evolução é o movimento de retorno ao seio divino que deixamos, representando a
reconstrução da ordem perdida. Por isso, com efeito, como se deduz com ao
auxílio do conhecimento espírita, evolução
significa salvação. Movimento que agora imputamos à graça divina, que por
amor permaneceu junto à criatura para socorrê-la. Aceitar que o dinamismo
evolutivo seja um trabalho de “re-construção” e não de “construção” da ordem,
deslinda-nos o tremendo paradoxo de admitir que Deus teria gerado primeiro a
desordem no Universo, para somente depois ordená-lo, através da lenta ação do
tempo. Isso implicaria que Deus necessita da dimensão tempo-espaço para criar –
sabemos que não deve ser assim, pelo fato de o Criador encontrar-se fora do
tempo e do espaço. E, afinal, teríamos que negar o critério de perfeição que
imputamos a Deus, pois o que é perfeito somente pode gerar perfeição – jamais
algo imperfeito. Ainda que admitamos que a criação se aperfeiçoe mediante a
impreterível ação da evolução, Deus continuaria eternamente criando sob a
chancela da imperfeição.
Assim,
entende-se ainda exatamente por que a evolução é laboriosa, cansativa, e se faz
um permanente movimento de atritos de interesses divergentes – exatamente
porque intimamente resistimos à salvação divina, interessados que nos mantemos
em prosseguir nossa multimilenar rebeldia contra a Sua ordem. Entendemos por
que Deus está aparentemente ausente da realidade exterior em que respiramos,
podendo inclusive ser negada a Sua existência. Elucida-se por que quanto mais
primária é a vida, maior é o predomínio de imperfeições e a presença de
atrocidades e selvagerias entre os seres. Ora, Deus, que é o amor absoluto, não
poderia predispor seus filhos a essa luta de egoísmos ferozes, e sequer
entregaria rebentos imaculados, recém-saídos de Suas mãos, a essa inadequada
pedagogia embasada preponderantemente no desamor.
Assim
aceitamos melhor a razão da existência do cansaço e da dor no grande labor
evolutivo. E compreendemos por que este se fez e se faz de constantes atritos,
fixando valores positivos, mas também negativos que inclusive preponderam na
longa jornada pelo reino animal, a nos exigir depois, uma vez conquistada a
razão, o operoso exercício da renúncia para libertarmo-nos de suas descabidas
lições. Ninguém pode negar, por exemplo, que o hábito de ludibriar, roubar e
matar sejam frutos de nossa exaustiva luta pela sobrevivência no mundo
selvagem, onde tais atos são perfeitamente lícitos.
Aclara-se,
desse modo, por que a criação progressiva parte de uma apriorística existência
de egoísmos inatos que necessitam obrigatoriamente ser lapidados pela dor e
pela dilaceração do ego inferior. E esclarece-se por que a elaboração evolutiva
trabalha essencialmente a dificultosa transformação de verdadeiras feras,
aparentemente assim geradas pelo nosso amoroso Pai, em legítimos anjos.
Elucida-se por que a vida exige, através de imenso e incompreensível esforço,
que seres arraigados no egoísmo pela experiência dos milênios, modifiquem-se,
por esforço próprio, em criaturas capazes de doar sua vida aos semelhantes e
não as roubar em benefício próprio, como a vida tão bem lhes ensinou. E assim
deslinda-se, enfim, por que somente o amor salva, sendo a única força capaz de
retirar o ser do inferno em que verdadeiramente vive e reconduzi-lo à
felicidade celestial.
Sem a crença
na queda do espírito e a certeza de que habitamos um universo às avessas,
impróprio para a nossa vida e nossa ventura, não temos como compreender a
salvação. Não saberemos por que Deus nos matricula na escola de lutas da carne,
educando-nos, quando ainda tenros, na selvageria de todos os hábitos, para
depois, somente depois, quando já nos habituamos às barbáries e experimentamos
as carnes dos nossos irmãos, pedir-nos o verdadeiro amor. Torna-se algo
incompreensível a um Pai que criou seus filhos unicamente para viver a
completude do amor e da felicidade.
Com a falência
do ser, compreendemos muito bem agora que a escola da vida que frequentamos não
é bem um educandário de seres inocentes, que saíram puros das mãos divinas,
mas, sim, um reformatório de rebeldes, destinado a corrigir ignóbeis hábitos
livremente escolhidos. E assim torna-se compreensível o fato de que a vida se
faz de métodos prioritariamente coercivos para seres aprioristicamente
rebeldes. E entendemos por que o espírito cobre-se, no trânsito da vida, com
carnes frágeis e degradáveis, as quais objetivam nitidamente abafar-lhe as
potências originais do espírito – fato incompreensível se não aceitarmos o
pressuposto de que a vida trabalha seres que se fizeram prioritariamente
rebeldes, tornando-se inconvenientes para utilizar de forma adequada as
plenipotências herdadas do Pai.
Portanto
somente aceitando que fizemos uma anterior opção pelo mal conseguiremos
compreender as forças em jogo na evolução, as quais não podem ser divinas. A
bondade do Senhor permite-nos expressar esse mal, pelo qual optamos, na
impropriedade da matéria, até o esgotamento de nossas originais intenções.
Porém através do labor evolutivo, que utiliza sobretudo a dor como instrumento
de persuasão, leva-nos a agastar nossos hábitos impróprios, educando-nos,
pacientemente, na imprescindível arte do amor. E assim deslinda-se por que a
vida, quanto mais primitiva, mais se faz um entrechoque de rebeldes, um jogo de
violências e mortes – coisa incompreensível diante de um Pai que nos exige a
prática do amor acima de todos os outros interesses. Logo, se aceitamos que a
vida na matéria se compõe de seres que precisam antes de tudo aprender a coibir
iníquos impulsos de revolta contra a ordem, entenderemos a necessidade da
limitação de forças que a carne impõe. Fato incompreensível se admitirmos que a
experiência da vida parte de seres inocentes, saídos das mãos do Criador em
estado de simplicidade e ignorância.
De modo geral,
os adeptos da Terceira Revelação não concordam sequer em discutir essas
questões, simplesmente por julgar que elas contrariam preceitos registrados nas
obras básicas. Tomados por dogmas, não percebemos que esses ensinamentos,
considerados ao pé da letra, contrariam o fundamental princípio de amor que
deve nortear a obra de Deus. E assim, ao colocar a letra acima da leitura da
realidade, passamos a repetir o erro de todas as religiões, fixadas em seus
inamovíveis dogmas. Ora, assim como julgamos a doutrina do inferno eterno,
apregoada pelo fundamentalismo cristão, absolutamente inconciliável com a
bondade infinita de Deus, também acreditamos descabida uma crença que toma a
selvageria dos mundos inferiores, a lei de destruição e o mecanismo da dor como
processos naturais impostos por Deus, como únicos meios para fazer avançar os
Seus filhos. Embora justificados pelos fins, tais meios contrariariam o
princípio fundamental e máximo da Criação: a Lei do amor. Além de retirar
emblematicamente a perfeição da criação, e consequentemente de Deus.
A queda
original é uma bela proposta capaz de elucidar essas questões e solver outros
graves embaraços das grandes religiões ocidentais. Deveríamos encará-la com
seriedade, destituindo-nos de nossos seculares preconceitos. Ela esclarece de
forma brilhante outros empecilhos da doutrina kardequiana, como por exemplo, a
informação de que a reencarnação tem como finalidade principal a purificação,
como nos informa O Livro dos Espíritos
(questões 166 a 170). E a de que vivemos em um mundo de expiações e provas, que
faz da dor a sua tônica principal. Sem a queda não entendemos por que Deus
criaria seres que necessariamente requerem regime de provações, dores e
limitações, coisa somente possível para aquele que erra e se habitua ao erro. E
entendemos, finalmente, por que, como nos revela a doutrina espírita, a escala
de progressão dos orbes se inicia nos mundos primitivos, bárbaros e selvagens,
passa pelos expiatórios, depois os de regeneração, para então chegar aos
felizes e divinos. Não nos parece uma ordem adequada a seres inocentes, porém unicamente
àqueles que escolheram a rebeldia como forma de viver. Basta examinarmos as
nossas escolas infantis – iniciar nossos infantes na barbárie e selvageria de
todos os hábitos seria algo inadmissível para nós. E ainda mais: exigir-lhes
depois, através da dor, que abandonem os costumes que lhes incitamos
inicialmente, seria uma completa injustiça, senão mesmo uma loucura. Admitir
que assim atua a inteligência divina é imputar indevida irracionalidade e
contra-senso ao Criador. E pior ainda, seria assentir que nosso Pai não se
importa com a existência do mal na criação.
Se aceitamos,
entretanto, que nossa existência na matéria partiu da rebeldia e da contração
de nossas potencialidades originais tudo se esclarece. A evolução foi então
precedida por grave contração da perfeição com a qual fomos criados. Resgata-se
a perfeição e o amor de Deus. Restará ao estudioso sincero, concordamos, a
pergunta: como foi possível a seres criados perfeitos caírem na imperfeição e
no mal? Mais uma vez Ubaldi nos socorre explicando-nos que a criação original
gerou seres tão perfeitos que lhes era imputada a autonomia, uma vez que Deus
não quis criar autômatos, mas deuses-filhos que aderissem a Sua vontade por
livre escolha. Aí residia a possibilidade de queda (o fruto proibido). Contudo
a perfeição da criação se manteve na plena capacidade de reconstrução do ser,
de modo que, ao final da evolução, o universo original estará recomposto em
seus impecáveis fundamentos, tais como pretendido pelo nosso Pai.
Mediante o
pressuposto básico da queda, a evolução torna-se agora muito mais que
simplesmente o nosso progresso rumo aos planos superiores do espírito. É de
fato evolução a salvação, o nosso
resgate das algemas físicas em que nos prendemos. Representa o esforço que nos
compete na reconquista do universo divino que deixamos por livre escolha.
Exatamente por isso, André Luiz, o famoso mentor espiritual, define a evolução
como “a nossa lenta caminhada de retorno para Deus” (A Vida Continua, FEB, 6ª edição, capítulo 21, página 179). Portanto
não estamos em uma trajetória de “ida”, mas de “volta” ao Pai.
Logo, evolução
passa a ser efetivamente a nossa libertação dos redemoinhos atômicos onde,
através da queda, aprisionamo-nos de modo inconveniente. Verdadeiramente, uma
vez gerados no seio imaculado de Deus, como puros pensamentos, não poderíamos
nos vestir de “pedra” sem uma razão que o justificasse. E não nos seria
possível ter sido criados com diferente natureza, uma vez que somos filhos do
Altíssimo – e filho de Deus somente pode ser “deus” também. A opção pelo
egoísmo foi o que nos selou esse ominoso destino, por termos sidos gerados,
como dissemos, mediante o princípio de autonomia. Então foi através da negação
do amor, por livre escolha, que “o anjo se prendeu no átomo” (questão 540 de O Livro dos Espíritos). Após esse
movimento de contração dimensional e fuga do seio de origem, somente uma força
divina, atuante nas profundezas do ser caído poderia auxiliá-lo a
reorganizar-se e a refazer a sua perfeição perdida.
Essa força
salvadora soergueu-nos do lodo da matéria bruta para a vida orgânica.
Orientou-nos, pelos caminhos dos evos, na laboriosa luta pela sobrevivência.
Conferiu-nos todas as oportunidades possíveis para evoluir e fazer desabrochar
a consciência que em nós dormitava, desde que “morremos” nos abismos infecundos
da matéria bruta. Ela nos resgatou do caos que geramos após a hecatombe da
queda.
Pura imanência divina, essa força então é a potência salvadora do universo caído –
um novo conceito de salvação que o espírita ainda não absorveu. Sem essa
“salvação”, proporcionada por esse extraordinário impulso reorganizador,
estaríamos para sempre detidos na inconsciência, pela perda absoluta da
organicidade. Sem organicidade não há vida, e sem vida não há consciência.
Portanto, conferindo inteira validade aos Textos Sagrados, facilmente aceitamos
agora que “a salvação é dom gratuito de Deus, que o Pai nos confere por amor e
graça” (Efésios 2:8-9, já citado), a fim de reconduzir-nos ao Seu aprisco de
amor.
Enquanto nos
detínhamos nos conceitos unilaterais do evolucionismo espiritual, esse conceito
se perdera. O fundamentalismo cristão o reteve em sua essência, mas o diluiu
igualmente na fatuidade de sua interpretação literal, rejeitada pela razão
moderna. Por isso Ubaldi nos faz bem, favorecendo-nos a compreensão das
verdades eternas tal como registradas nas Sagradas Escrituras. E apazigua-nos
sobremodo o intelecto amadurecido ao aplacar-nos o conflito fideísta em que
ainda nos debatemos. Além disso, suas lições despejam inigualável luz sobre os
ensinos do Cristo, atualizando-os sob o beneplácito de nossa hodierna dialética
evolucionista, que não precisamos abandonar.
Para melhor
elucidar o tema, esclareçamos, todavia, que identificamos a existência de dois
tipos distintos de ação redentora atuantes na intimidade do espírito em
evolução: a salvação pela graça e a salvação pela livre escolha.
Na fase em que
o ser é ignorante de si mesmo e de suas necessidades, ele é pacientemente
guiado pela inteligência divina que lhe faculta todas as oportunidades para
conquistar valores e evoluir. Esta é a salvação
pela graça. Por meio dela, o Criador o nutre com uma sabedoria, que ele não
detém, necessária à confecção de organismos preparados para a vida e para a
luta. Sem essa ínsita inteligência orgânica, orientadora da vida, a evolução do
espírito não seria possível.
Ainda que em
meio à selvagem luta pela sobrevivência, favorecida pela desapiedada seleção
natural própria dos mundos inferiores e selvagens, essa ingênita inteligência
guia o ser ao constante aperfeiçoamento e à aquisição de genuínos valores
evolutivos. Compreendamos, todavia, ainda que repetindo conceitos: esse bárbaro
regime inferior de vida não é uma oferta espontânea do Criador para o simples
exercício de crescimento do ser. Não podemos admitir a barbárie dos reinos
primários como uma legítima proposta pedagógica de nosso amoroso Pai. Resta-nos
então aceitá-la como um inadequado sistema de vida desejado pelo espírito que
optou pela revolta e pelo desamor. E Deus o permitiu viver, porém distante de
Seu Reino, onde somente o amor é possível. Justo assim que seres que escolheram
viver intensamente o egoísmo tenham sido atirados às arenas de luta, dor e
morte que preponderam nos mundos primitivos. Deus aproveita esse impróprio modo
de viver para educar o espírito e fazê-lo desistir do egoísmo - jamais
poderíamos imputá-lo ao amor infinito e à inteligência excelsa de nosso Pai.
Uma vez,
porém, que as operosas forças salvadoras de Deus impulsionam o espírito à
reconquista da razão perdida, a evolução passa a se tornar um movimento
consciente, sujeito então a interferência de sua vontade. Por isso, na fase de
evolução consciente em que nos encontramos, nossas escolhas e nosso empenho na
reforma íntima passam a influir preponderantemente em nosso avanço evolutivo.
Aí sim, a evolução passa a se valer de nossa operante vontade de realizações no
bem. Antes disso, era puro e gratuito dom da graça divina. Agora depende de nós
e de nossas obras: esta é a salvação pela
livre escolha.
Ainda assim, a
salvação pela graça divina prossegue
atuando em nós nos pontos em que continuamos ignorantes e não sabemos guiar-nos
como convém. Ela permanece em ação em nossa intimidade como força reconstrutora
e mantenedora do equilíbrio orgânico, permitindo-nos atuar na dura escola da
carne, regenerando-nos no trânsito da vida. Essa operante força continua
fundida à substância de nosso ser, gerando-nos inteligência molecular,
funcional e anatômica, sem a qual não nos fixaríamos na matéria bruta. Então
ela age onde nossa inteligência é ainda insuficiente para edificar e resguardar
nossos corpos. Essa preponderante ação divina é momentânea e periodicamente
suplantada pelos impulsos tidos naturais, de caráter destrutivo, que nos levam
inevitavelmente à degeneração orgânica e à morte. Não obstante, é aparente essa
vitória das forças do AS, pois a vida, através do sustento divino, refaz-se
sempre através do milagre do renascimento, sendo a morte nada mais que condição
de uma nova existência, como todos sabemos.
“Salvação pela graça divina” e através de
“nossa própria vontade” compõem assim
o cortejo das potências redentoras que soerguem o espírito das cinzas da
matéria, onde ele encontrou a morte da consciência. Por isso, está certa a
doutrina espírita que nos ensina que “a fé sem obras é morta” e “somente a
caridade pode nos salvar”. O espiritismo nos fala aqui da redenção consciente que requer o adequado emprego da nossa vontade
e nosso empenho em boas obras. Mas o fundamentalismo cristão não se enganou ao
afirmar-nos a existência de uma força salvadora inerente à substância da vida,
na qual devemos confiar e que inexoravelmente nos socorrerá. Seus mecanismos
utilizam a dor e a aspiração pela perfeição perdida como principais impulsores
do ser caído, mecanismos infalíveis para reconduzi-lo às suas origens. Essa
salvação é obra da nossa mais pura fé. Acreditarmos nela pressupõe
entregarmo-nos com extrema fidúcia à sua ação sempre benéfica, amorosa e
restauradora, dinamizando-a em nosso benefício.
Essa
extraordinária compreensão funde a visão espírita evolucionista com o
fundamentalismo cristão. Ela autoriza as lições evolucionistas, mas valida
também o criacionismo bíblico, por incrível que nos pareça. A criação divina,
como sabemos, permeia a evolução, enriquecendo-a de soluções prontas e
inteligentes para os seus desafios. Confecciona corpos e predispõe uma sábia
anatomia e uma engenhosa fisiologia adequadas às necessidades evolutivas do
ser. Então, de fato, “a salvação é dom de Deus, não de nossas obras, para que
ninguém se vanglorie” – estava certo Paulo de Tarso ao exarar a sua famosa
frase. Mas está correta também a doutrina dos Espíritos que afirma que somente
evoluímos pelo esforço próprio, mediante o nosso empenho em boas obras – fato
igualmente registrado na Palavra Sagrada (Mt 7:1 e Ti 2:26).
Impossível
negar que forças divinas operem constantemente a nosso favor. Elas nos
favorecem, por exemplo, edificando-nos corpos cada vez mais aperfeiçoados, e
trabalhando ativa e permanentemente em favor de nossa recomposição. Elas nos conduzem
através da sábia linguagem dos instintos, quando ainda não detemos a
inteligência suficiente para efetuar nossas escolhas. Isso basta para
compreendermos que a salvação vai muito além de nossa mera vontade em progredir
e realizar obras de caridade. É evidente que à medida que o espírito progride
rumo à aquisição de sabedoria, essa salvação
pela graça torna-se cada vez menos operosa, entregando-nos ao nosso próprio
trabalho de reconstrução de nós mesmos. Por isso a dor se reduz à proporção que
nos tornamos mais conscientes de nosso trabalho evolutivo. Não há dúvida de que
inteirarmo-nos de nossas necessidades de reforma íntima e predispormo-nos à
realização de boas obras apressará sobremodo o nosso resgate definitivo do
universo às avessas em que vivemos, contudo essa ação consciente não seria
suficiente para nos socorrer quando ainda ignorávamos essa necessidade.
A salvação pelo esforço próprio, que
denominamos autorredenção, está então
na alçada de nossas escolhas: dependerá do abandono dos incuriais valores que
arquivamos do passado, o homem velho; da renúncia ao ego inferior que ainda
portamos; da superação dos hábitos animalizados que automatizamos por imposição
da própria da egolatria; de um grande esforço no aprendizado do amor ao
semelhante e, enfim, da nossa entrega à vontade maior de Deus.
Autorredenção pressupõe ainda,
efetivamente, fazer morrer o personalismo doentio que permanece nos vestindo.
Exige o abandono das armas de defesa que confeccionamos na estrada dos séculos,
e nas quais ainda nos comprazemos, por serem completamente inadequadas aos
fundamentos do amor. E, tomando sobre nossos ombros as nossas dores, significa
alçar com bom ânimo o calvário da redenção. Não foi exatamente isso que nos
ensinou Jesus em Suas imorredouras lições e seu contundente exemplo? Agora,
entendemos por que deve ser assim. Então, é verdade que “fora da dor não há
salvação”. E sem a queda, mais uma vez, não compreenderemos por que Deus nos
impõe tamanha necessidade para atingirmos o desiderato maior da evolução.
Entender que
sofremos uma obra evolutiva de resgate facilitar-nos-á aceitar por que a Lei de
Deus, depois de nos educar na luta pela sobrevivência e dotar-nos de terríveis
artifícios de ataque e defesa, pede-nos, na fase consciente de evolução que ora
percorremos, critérios completamente opostos aos que a escola da vida
ensinou-nos na esteira dos milênios. Ao contrário do que a evolução até aqui
nos ensinou, devemos agora aprender a doar nossa vida ao semelhante e não
roubá-la em benefício próprio. E aclara-se exatamente por que o Evangelho de
Jesus é antibiológico, ou seja, ele nos alerta que o fundamental para nossa
sobrevida é nosso total empenho no amor a Deus e ao próximo como a nós mesmos.
Este é o máximo recurso de vida que nos permitirá viver a integral fusão com o
Pai que nos criou unicamente para amar e ser feliz. Os fundamentos da vida
biológica tão bem aprendidos na escola dos séculos devem ser definitivamente
esquecidos.
Como vemos, o
conceito da queda do espírito, tão rejeitado pelos estudiosos da doutrina
espírita, é a mais extraordinária luz capaz de iluminar sobremodo a nossa
compreensão dos mecanismos da vida a que estamos submetidos e suas intrigantes
contradições. Quando, contudo, remetemo-nos ao Evangelho de Jesus, então
constatamos como esse conceito se faz indispensável para melhor entendê-lo. Se
não nos vemos como seres degredados e presos nas algemas da matéria, como
entender que Cristo veio ao nosso mundo para nos salvar? Qual seria o
significado de Seu sacrifício? Exatamente por que Ele se deixou imolar na cruz
por todos nós?
Para a
doutrina espírita, nos moldes como é interpretada pela maioria de seus
seguidores, representa um peso enorme a negação desses conceitos tão
fundamentais que caracterizam o cristianismo em sua essencial original. Como
repudiar essas inferências se elas estão embasadas nas próprias palavras de
Jesus, as quais a história humana deu tanta ênfase? Nossa visão unilateral da
revelação espírita nos autoriza a negar as próprias afirmações do meigo Rabi?
As informações que nos chegaram pelas vias mediúnicas e analisadas pela
inteligência de Kardec selaram a verdade, superando os ensinos do divino
Mestre? Não estiveram elas sujeitas aos psiquismos dos médiuns e suas
particulares interpretações? Será a mediunidade um processo infalível?
E ainda mais:
não foram os mesmos espíritos que afirmaram que não nos disseram tudo? Que
muito ainda tinham a nos revelar, porém nossa acanhada compreensão não lhes
permitia avançar? Teríamos, com as obras básicas da codificação atingido em
definitivo o conhecimento da verdade? Evidentemente que não. Aqueles que se
apegam ao dogmatismo doutrinário, deveriam lembrar-se do que exarou Kardec, em A Gênese: “O Espiritismo assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de
qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades
práticas e abandonado o domínio da utopia (...). Caminhando de par com o progresso, o espiritismo jamais será
ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrem estar em erro acerca
de um ponto qualquer, ele se modificará nesse ponto. Se uma verdade nova se
revelar, ele a aceitará”. Nessa mesma obra, o Espírito Galileu afirma: “Há questões que nós mesmos, espíritos
amantes da ciência, não podemos aprofundar e sobre as quais não podemos emitir
senão opiniões pessoais, mais ou menos hipotéticas”. E na questão 182 de O Livro dos Espíritos, encontramos: “Nós, Espíritos, só podemos responder de
acordo com o grau de adiantamento em que vos achais”. Não obstante tomamos
suas palavras como a última e inamovível verdade. Ora, estamos muito distantes
da verdade absoluta para nos deter em informações que nos chegaram no século
XIX, quando ainda muito pouco sabíamos da realidade que nos envolve. Quanto a
ciência cresceu desde então! Nosso inato anseio por verdades absolutas fez-nos
estagnar em dogmas, repetindo o erro das religiões convencionais do mundo.
Seguramente, o
maior benefício da teoria da queda que nos trouxe Ubaldi é a perfeita fusão das
revelações religiosas com o conhecimento que nos propiciou a ciência do século
XX. A cosmologia moderna encontra aí sua mais perfeita unificação com a
cosmologia cristã. Remetemos o leitor interessado em aprofundar a questão ao
nosso despretensioso trabalho Arquitetura
Cósmica, publicado pela Editora Inede, no qual efetuamos um detalhado
estudo sobre as visões de mundo ao longo da história, para demonstrar que a
queda do espírito é a única tese capaz de explicar e unificar todos os
conhecimentos humanos.
Do ponto da
cristologia, com a queda original, passamos a compreender perfeitamente a
missão do Cristo entre nós. O divino Amigo veio trazer-nos a notícia da
existência de um outro mundo além do nosso, onde se encontra nosso Pai, o Reino de Deus. Ele nos pediu
enfaticamente abdicarmos do mundo às avessas em que vivemos (o AS) para a
conquista desse Reino (o S). Fato intrigante para nós sem o conhecimento da
queda, pois se Deus nos gerou em Seu seio, por que nos mantém fora de nosso
natural habitat? E não entendemos por que Ele nos colocou em um mundo infesto
de desazados valores aos quais com tanto esforço devemos abdicar, a fim de
atingirmos à vida verdadeira para a
qual fomos criados.
Cristo
mostrou-nos ainda, em Seu sacrifício, de forma nítida, como realizarmos o nosso
resgate do mundo às avessas em que vivemos, o AS, e conquistarmos mais
rapidamente o Reino de Deus. Esse foi
o desiderato maior de sua vida, a que Ele dedicou a sua existência – e
recomendou-nos enfaticamente fazer o mesmo. Portanto, Ele nos deixou o roteiro
da autorredenção, realizando-a aos
nossos olhos. Assim acreditamos que, ao deixar-se imolar na cruz, Ele penetrou
definitivamente o Mundo Celeste, o S. No instante do Calvário, Ele abandonava o
Relativo para assumir a sua posição definitiva no Absoluto, realizando a sua
integral fusão com o Pai. Consubstanciava-se a dissolução de seus envoltórios
dinâmicos e seu retorno decisivo ao seio paterno como espírito purificado. Eis a realidade maior da ressurreição de Jesus
que Ubaldi descreve-nos em seu último livro, Cristo – o divino Amigo realmente “subiu aos céus” e voltou ao Pai
como um espírito ressurreto.
O meigo Rabi
entregou seu corpo ao sacrifício demonstrando-nos que Ele não se interessava
por salvar a matéria perecível. Ele não queria igualmente firmar-se mais como
um vitorioso no mundo às avessas em que vivemos. E deixou-nos patente que seu
interesse maior era fazer morrer o que Lhe restava de personalismo inferior,
doando-se, por amor, incólume, à vontade de Deus. E de fato, sem a completa
extinção do nosso ego inferior, sem a entrega confiante de nossa alma ao
desejo do Pai, sem a não resistência ao mal, sem o perdão verdadeiro àqueles
que nos maltratam e nos tiram a vida, sem a renúncia aos valores da
animalidade, sem a oferta de nossa vida em prol do semelhante – ou seja, sem a
vivência de um verdadeiro e supremo amor não nos libertaremos das malhas do
relativismo onde nos demoramos. Portanto, sem
dor, sem renúncia, sem sacrifício, sem perdão, sem doação ao outro e sem amor
não há salvação. Por isso é imperativo subirmos todos pelo calvário da evolução,
com nosso sacrifício e todo o empenho na superação do homem velho, que deve
morrer na cruz para a libertação de nosso ser real na verdadeira vida eterna – a gloriosa ressurreição, no dizer de Emmanuel.
Portanto, a autorredenção faz-se imprescindível para
a nossa salvação. Destarte vale insistir que ela não bastaria, como nos
afirmaram as Sagradas Escrituras, para o resgate da matéria. Se Deus não agisse
permanentemente em nosso imo, repitamos, como a força máxima de reconstrução,
não nos salvaríamos. Entregues a nós mesmos, estaríamos detidos na
inconsciência da matéria bruta, “mortos nos túmulos de pedra”, até os dias de
hoje.
E entendemos
ainda que Cristo, após o seu definitivo retorno ao Reino de Deus, fez-se
essência imaculada. Unificado com Deus e fundido na substância da Lei, Ele
então consubstancia a Terceira Pessoa
da Divina Trindade, como pressupôs a velha Teologia cristã. Estando fora do
tempo e do espaço, Ele agora participa da onisciência e da onipresença divina.
Por amor a nós, contudo, permanece ao nosso lado, agindo no imo da alma humana
como força reconstrutora e salvadora (Mt 18:20). Portanto, como fazem nossos
sinceros amigos cristãos em todo o mundo, podemos enfim bater no peito e com a
mais pura e intensa emoção proferir: Jesus
é meu salvador!
Com todos
esses novos conceitos podemos doravante melhor aceitar e colocar em prática
todas as lições do Evangelho. As palavras do Cristo tomam novo e vigoroso
significado. Entendemos afinal que o Messias veio à Terra efetivamente para nos
salvar. Ele veio “resgatar o que estava perdido”, como afirmou (Mt 18:11). Ou
seja, para reconduzir-nos, ovelhas perdidas, ao aprisco celeste (Mt 15:24, Lc
15:4). Compreendemos exatamente por que estamos distantes do Reino de Deus, que
o divino Amigo, na oração dominical, suplicou para “vir até nós” (Mt 6:10). E
recomendou-nos a reconquista desse Reino que perdemos, como o máximo objetivo
de nossas vidas (Mt 6:36). Todo o empenho de nossa alma deve ser dirigido a
esse esforço, como alguém que acha um tesouro de inestimável valor e tudo vende
para adquiri-lo (Mt 13:44). Ora, se estivéssemos seguindo os passos normais de
uma evolução natural em um mundo adequado e pretendido por Deus, não haveria
por que Jesus recomendar-nos, com tanta ênfase, apartarmo-nos dos caminhos da
carne e buscar afanosamente a verdadeira vida espiritual (Mt 6:33). Sem a
interpretação da queda, Suas conjecturas, em sua maioria, tornam-se evasiva e
não podem ser levadas a sério. Jamais compreenderíamos, por exemplo, por que
Sua imensa compaixão por nossas dores levou-O a nos consolar, dizendo: “Não
temas, ó pequeno rebanho, porquanto a Deus agrada dar-nos o reino” (Lc 12:32).
Essas e todas as palavras eternas que o Messias nos deixou careceriam de
sentido próprio. Portanto, não podemos mais negar que necessitamos, sim, de
salvação. E sem a salvação pela graça,
juntamente com o empenho na autorredenção,
jamais retornaremos ao Pai.
Para grande
consolo nosso, de posse desses novos conceitos chegamos à clara constatação de
que nossa exaustiva caminhada evolutiva pelas veredas do relativismo, e o
próprio universo relativo terão um fim. Nossa jornada terminará com o nosso
definitivo retorno ao absoluto. O espaço sucumbirá com a extinção da matéria, o
tempo expirará com a morte da energia, e o espírito sobreviverá para viver a
eternidade no seio divino. Herdaremos então a perfeição absoluta e não a
relativa, como havia pressuposto Kardec, pois somos genuínos filhos de Deus, e
como tais, feitos de sua mesma e impecável natureza. Validamos assim a escatologia
cristã e todas as suas previsões, pois “o céu e a terra passarão” e apenas os
valores imponderáveis do espírito restarão da realidade que nos alberga (Mt
5:18 ). Esclarece-se agora o “fim dos tempos” a que se referiu Jesus, a morte
da dimensão espaço-tempo, que um dia nasceu e, como tudo que nasce, deverá
igualmente morrer. O conceito de ressurreição restitui o seu significado
original.
Os estudiosos
da doutrina espírita poderão negar essas afirmativas, uma vez que Kardec
pressupôs a nossa evolução infinita e a existência ad aeternum de nosso universo. Todavia vale recordar que os
próprios Espíritos, na questão 169 de O
Livro dos Espíritos, exararam que “o progresso é quase infinito” – portanto
não caminharemos eternamente pela aparentemente infinda estrada da evolução,
mas nos fixaremos, enfim, no “fim dos tempos, como colunas inamovíveis no
Templo de Deus”, como nos promete a palavra sagrada (Ap 3:12).
A cosmologia
moderna, confirmando a escatologia cristã, já fixou o trágico fim do nosso
universo na sua vertiginosa expansão rumo à exaustão absoluta de todas as suas
energias, e até mesmo no decaimento do próton. Não existiremos, aqui, para todo
o sempre e, como disse Ubaldi, sequer as paisagens do relativo sobreviverão
para a eternidade, mas todo o nosso cosmo será espiritualizado, restituindo-se
completas as potências do absoluto que o originaram, quando todos os registros
da grande queda forem integralmente reabsorvidos pela evolução.
Compreendemos
que Jesus deixou-nos, na maneira como se conduziu na Terra, o exemplo claro de
como efetuarmos a nossa própria redenção. Como aceitar, porém, a peremptória
afirmação do fundamentalismo cristão de que, com a Sua morte, Ele promoveu a
redenção de nossos pecados? Podemos legitimar essa afirmativa que já se consagrou
como um dos principais dogmas do cristianismo? O Evangelho não diz que “o
Cordeiro de Deus tomou sobre si as nossas dores e morreu em nosso lugar na
cruz”(Jo 1:29)? Poderia a morte de um justo pagar pelas faltas de outros? Como
pode ser isso, se a própria justiça humana jamais concordaria em penalizar
alguém por erros alheios? Seria um mistério pertinente a Deus e, portanto, algo
que não podemos questionar, diz-nos a velha teologia cristã. Não obstante,
insistimos: nossa razão considera um disparate conceber que a perfeita justiça
divina possa funcionar de forma tão incoerente. Necessitamos de melhores
explicações para tal afirmativa. Se na Idade Média esse pressuposto parecia
conformar o coração humano, nos dias atuais, vê-se claramente que mais se serve
como um obstáculo à plena aceitação do Evangelho. Com o auxílio de Ubaldi,
aproximemo-nos da delicada questão, tentando esclarecê-la um pouco melhor.
Sabemos que o
inconsciente humano traz em seus arcanos o registro arquetípico da queda do
espírito. Isso o fez postar-se, desde os primórdios da razão, como um ser
pecaminoso, sobretudo diante da Divindade. Exatamente por isso, ele cuidava de
fazer oferendas aos seus deuses, a fim de aplacar suas pretensas iras.
Interessado então em reduzir as suas penas, partindo do pressuposto de que ele
era culpado de alguma coisa e havia ofendido a Divindade, ele depositava nos
altares de seus templos o melhor de sua colheita.
Em muitas
culturas antigas, entretanto, ele intentava ludibriar os deuses, sacrificando
seres que considerava inocentes, para que o sangue derramado por estes, no
lugar do seu, pudesse simular a pena que se julgava inconscientemente
merecedor. Desse modo, ovelhas, pombos e até mesmo jovens virgens eram
imolados, em macabros rituais, para que o homem se sentisse liberto de sua
inevitável condenação.
Evidentemente,
tais bárbaros costumes baseavam-se na mais precária concepção de Deus,
compreendendo-O como um déspota, a quem a simples visão de sangue bastaria para
dissuadir a impor ao homem os castigos que ele sempre se sentiu merecedor.
Assim, o
psicologismo doentio do homem encontrou na morte de Cristo o perfeito
sacrifício a Deus para a remissão de suas culpas. O sangue do mais puro dos
homens, ou mesmo de um verdadeiro deus, seria então mais do que o bastante para
que o Senhor desistisse de cobrar pelos nossos muitos pecados. Fizemos então de
Jesus o “Cordeiro de Deus que tirar o pecado do mundo”, aplicando à Sua
execrável morte nada mais do que mais um dos nossos sangrentos rituais aos pés
do Criador. Atendia-se, desse modo, mesmo sem a clara noção do fato, aos apelos
do inconsciente coletivo humano, onde o homem guarda a sua culpa de origem,
oriunda da queda do espírito.
Ao analisar o
fato, chegamos mesmo a suspeitar de que esse teria sido “o cálice” que Jesus
pediu ao Pai lhe fosse afastado, no momento da crucificação. Ele já havia
demonstrado a Sua clara disposição de se deixar imolar para nos dar o
exemplo de como se deve agir diante do mal. Mas Ele não queria fazer-se o
“Cordeiro da humanidade”, cuja morte seria erroneamente interpretada como a
condenação de um justo que derrama o seu próprio sangue no lugar do nosso para
se aplacar a condenação divina a que nos fazem jus. Naturalmente que o Mestre,
profundo conhecedor do nosso infantil psicologismo, sabia que esse estranho e
inadequado papel lhe seria imputado pela nossa história, iludindo-nos de que
assim estaríamos isentos do próprio sacrifício em prol da nossa salvação.
Em suma,
chegamos à conclusão de que não podemos aceitar que a morte de Jesus tenha
redimido os nossos erros perante a Lei divina. Isso fere o que entendemos da
justiça divina e do conceito que na atualidade detemos de Deus. Nossa
consciência ferida somente será recomposta se seguirmos os exemplos do Cristo.
Jamais pelo simples fato de um inocente ter sido condenado em nosso lugar.
Resta-nos,
todavia, a pergunta: a salvação será infalível? Todos se salvarão? Será que
Deus não respeitará a vontade do filho rebelde que não queira jamais retornar
ao Seu aprisco? Ubaldi abordou a delicada questão e afere-nos que os mecanismos
divinos de salvação são infalíveis. Utilizando-se da dor, da nostalgia pelos
bens perdidos e do anseio pela perfeição, sentimentos que impregnam toda
criatura caída por estigma de origem, a Lei conduzirá todas elas aos planos
superiores do espírito. Fugindo do inferno da matéria e suas dores que
inevitavelmente colorem as paisagens dos mundos inferiores, movido pelo natural
instinto de felicidade, o ser não tem outro caminho que evoluir. Desse modo,
diz Ubaldi, todos se salvarão. Nosso universo físico será completamente
extinto, e não restará aqui um único átomo, afirma-nos o inspirado da Úmbria.
Cristo já havia nos dado essa certeza ao proferir que “de suas ovelhas, nenhuma
se perderá” (Jo 10:27-28). Entretanto, permanece como possibilidade teórica a
dissolução definitiva do ser, caso ele não se predisponha ao sacrifício do ego
inferior e almeje perpetuar eternamente a sua revolta contra a ordem divina e a
negação do amor. Nesse caso, diz-nos Ubaldi, a substância divina que o
individua poderá terminará por desfazer-se, pela intensa contração involutiva a
que se exporá, fazendo-a retornar íntegra a sua fonte original, o seio de Deus.
Uma vez que tal substância é indissolúvel, somente a sua individuação será
desfeita. Imaginamos algo como o desfazimento da forma de uma estátua, porém
não o desaparecimento da matéria que a compõe. Essa seria a real morte do ser,
que Deus não quis, como nos informou o Cristo (Mt 16:28). Por isso, certamente,
aferiu-nos o nosso Salvador que “se alguém guardar as Suas palavras jamais verá
a morte” (Jo 8:51), e Paulo nos afirmou que “Deus nos ressuscitará pelo seu
poder (I Coríntios 6:14).
Concluindo,
vemos então que, retomando o conceito de salvação no mais elevado que nos
favorece Ubaldi, chegamos à perfeita fusão de duas conceituações que
conhecemos, a espírita e a cristã, conferindo-lhes inteira validade. Está certa
a salvação consciente, apregoada pela
doutrina de Kardec, a qual representa a nossa escolha pelo autoaprimoramento
evolutivo; e corretíssima a salvação
gratuita, aquela que opera na intimidade de nosso ser, orientando
devidamente os nossos passos rumo ao Amor paterno que malbaratamos, conforme
defendido pelos Textos bíblicos. A primeira traduz o nosso necessário empenho
no bem e na realização de boas obras, a segunda aguarda nossa total confiança
no socorro divino. O antagonismo entre o fundamentalismo cristão e a razão
espírita desfaz-se ante a luz dessa nova concepção. Ambos acham-se fixados em
verdades complementares. Agora, não obstante, podem dar-se as mãos na grande
obra de redenção da humanidade.
Então são
genuínos o fundamentalismo cristão, iluminado pelo fideísmo sentimentalista, e
o racionalismo espírita, abrilhantado pela fé raciocinada. Deixemo-los em suas
genuínas, porém parciais trilhas da verdade, até que a evolução os entrelace no
abraço da verdade única, solvendo nossos atritos conceituais e
reconduzindo-nos, juntos, ao Absoluto. Até lá, eximamo-nos de improfícuos
atritos, pois nossas crenças são nitidamente complementares, jamais
antagônicas, como as aparências de nossas relativas posições nos induzem a
crer.
Sem a
pretensão de nos fazermos porta-vozes da verdade absoluta, da qual nos achamos
muito distantes, deixamos aqui o nosso esforço de conciliação entre a essência
sagrada do Cristianismo primitivo e as modernas revelações assinaladas pela
Codificação Espírita. A nenhum negamos o seu real valor, apenas não desejamos
mais vê-los atirados em acirrados e improfícuos entrechoques de ideias.
Estacionados na parcialidade, é possível compreender que eles não se acham em
aparente contradição.
A ninguém
queremos convencer, apenas anunciar que existe uma melhor maneira de se
conciliar as verdades parciais que adotamos por sagradas. E o que atesta que
uma verdade é parcial é o simples fato de ela admitir a sua exata contradição.
Ora, toda premissa que suporta um antagonismo, não se acha completa, pois a
verdade realmente absoluta somente pode ser aquela que engloba também a sua
oposição. Esse é um interessante axioma deduzido por Niels Bohr, a partir das
observações da fenomenologia quântica. Assim, a síntese genuína deve unir tese
e antítese para se fazer lídima expressão da realidade. Logo, estejamos
atentos, se nos encontramos imersos em uma arena de disputas ideológicas, é
preciso humildemente considerar que nos achamos distantes do conhecimento
absoluto e unitário – aquele que realmente não admite rivalidades, por englobar
os seus opostos.
Sigamos
adiante, na certeza de que somos seres em desenvolvimento e nossa ignorância é
ainda imensa ante a extensão da complexidade fenomênica que habitamos. Se
desejamos crescer rumo à verdade que liberta, como disse Jesus (Jo 8:32), urge
abrirmo-nos à germinação dos novos conhecimentos que periodicamente são
semeados em nosso campo íntimo, como a revelação que nos trouxe Ubaldi e outras
que certamente continuarão chegando-nos do Plano Maior. Para isso, na lavoura
do crescimento espiritual, por vezes é preciso deixar que nossos parciais
entendimentos morram para dar lugar a novas e mais avançadas compreensões. Se a
semeadura nos compete, lembremo-nos de que a germinação é da alçada do Senhor,
que, zeloso, oferta sempre a cada um as florações de verdades que é capaz de
suportar em seu particular momento evolutivo. Portanto, não nos apoquentemos
com quem não pode ou não quer compreender. O tempo, em sua sabedoria, fará
amadurecer os frutos de verdades que realmente nos convenha à necessária
redenção.
Belo
Horizonte, 4 de maio de 2009
Gilson Freire
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Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica
Brasileira, 1997.
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4. KARDEC,
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7. UBALDI,
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8. UBALDI,
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9.
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