sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

A LEI - capítulo 8 de A Grande Síntese





Transcrito do capítulo 8 do livro A Grande Síntese

por Pietro Ubaldi


8. A LEI

A Grande Síntese Pietro Ubaldi




A Lei. Eis a ideia central do Universo, o sopro divino que o anima, governa e movimenta, tal como vossa alma, pequena centelha dessa grande luz, governa vosso corpo. O universo de matéria estelar que vedes, é como a casca, a manifestação externa, o corpo daquele princípio que reside no âmago, no centro.

Vossa ciência, que observa e experimenta, permanece na superfície e procura encontrar esse princípio através de suas manifestações. As  poucas verdades particulares que aprendeu, são apenas farrapos mal remendados da grande Lei.

A ciência observa, supõe um princípio secundário, deduz uma hipótese, trabalha sobre ela, esperando uma confirmação da experiência, e daí conclui uma teoria. Mas vislumbrou somente pequena ramificação derradeira do conceito central, porque este defenderá com o mistério até que o homem seja menos malvado, menos propenso a fazer mau uso do saber e mais digno de olhar na face as coisas santas. Falo-vos de coisas eternas e não vos choque esta linguagem, para vós anticientífica; ela se mantém fora da psicologia que vosso atual momento histórico vos proporciona. Minha ciência não é como a vossa, ciência agnóstica, impotente para concluir; nem é ciência de um dia. Lembrai-vos de que a verdadeira ciência toca e mergulha nos braços do mistério: sagrado, santo e divino.

A verdadeira ciência é religião e prece, só pode ser verdadeira se também for fé de apóstolo e heroísmo de mártir.

A Lei é Deus. Ele é a grande alma que está no centro do universo. Não centro espacial, mas centro de irradiação e de atração.

Desse centro, Ele irradia e atrai, pois Ele é tudo: o princípio e suas manifestações. Eis como Ele pode — coisa inconcebível para vós — ser realmente onipresente.

É necessário esclarecer este conceito. Chegou o momento de retomar a idéia de que partimos, dos três aspectos do universo, para aprofundá-la.

A esses três aspectos correspondem três modos de ser do universo.

A estrutura ou forma, o movimento ou vir-a-ser, o princípio ou lei, podem também denominar-se:

Matéria  ➡  Energia ➔  Espírito ou também, movendo-se no sentido inverso:
Pensamento ➔ Vontade ➔ Ação.
Do primeiro modo de ser, que é:
Espírito Pensamento ➔ Princípio ou Lei deriva o segundo, que é:
Energia ➔ Vontade Movimento ou vir-a-ser
e do segundo, o terceiro que é:
Matéria ➔ Ação ➔  Estrutura ou forma.

Esses três modos de ser estão coligados por relações de derivação recíproca. Para tornar mais simples a exposição, reduziremos esses conceitos a símbolos.

A idéia pura, o primeiro modo de ser do universo, a que chamaremos espírito, pensamento, Lei,que representaremos com a letra 𝛂 (alfa); condensa-se e se materializa, revestindo-se com a forma de vontade, concentrando-se em energia, exteriorizando-se no movimento, segundo modo de ser que representaremos com a letra 𝛃 (beta); num terceiro tempo, passamos (em virtude de mais profunda materialização ou condensação, ou exteriorização), ao modo de ser que denominamos matéria, ação, forma, isto é, o mundo de vossa realidade exterior, representaremos com a letra 𝛄 (gama).

O universo resulta constituído por uma grande onda que, de 𝛂, o espírito, (puro pensamento, a Lei que é Deus) caminha para um devenir contínuo, movimento feito de energia e vontade ( 𝛃) para atingir seu último termo, 𝛄, a matéria, a forma. Dando ao sinal o sentido de “vai para”, poderemos dizer: 

            𝛂 𝛃 𝛄. 
 
O espírito, 𝛂, é o princípio, o ponto de partida dessa onda; 𝛄, a matéria, é o ponto de chegada. Mas compreendereis, qualquer movimento, se ampliado constantemente numa só direção, deslocaria todo o universo (em sentido lato, não apenas espacial), com acúmulos de um lado e vazios, de outro, proporcionais e definitivos. Então é necessário, para manter o equilíbrio, que a grande onda de ida seja compensada por outra onda equivalente de volta. Isso é também lógico e se realiza em virtude de uma lei de complementaridade, pela qual cada unidade é metade de outra unidade mais completa. O movimento que existe no universo não é jamais um deslocamento unilateral, efetivo e definitivo, mas é a metade de um ciclo que retorna ao ponto de partida, após haver cumprido determinado devenir, uma vibração de ida e volta, completa em sua contraparte inversa e complementar.

A esse movimento descêntrico que vimos, a expansão e a exteriorização, 𝛂 𝛃 𝛄, segue-se então um movimento concêntrico inverso:  𝛄 𝛃 𝛂.   

Há , pois, o movimento inverso, pelo qual a matéria se desmaterializa, desagrega-se e expande-se em forma de energia, vontade, movimento; é um tornar-se, que por meio das experiências de infinitas vidas, reconstrói a consciência ou espírito. Aqui, o ponto de partida é g, a matéria, e o ponto de chegada é a, o espírito.

Assim, a espiral, que antes era aberta, agora se fecha; a pulsação de regresso completa o ciclo iniciado pelo de ida.

Este é o conceito central do funcionamento orgânico do universo.

A primeira onda refere-se à criação, à origem da matéria, à condensação das nebulosas, à formação dos sistemas planetários, do vosso sol, do vosso planeta, até à condensação máxima.

A segunda onda, de regresso, é a que vos interessa e viveis agora, refere-se à evolução da matéria até às formas orgânicas, à origem da vida; com a vida, tem-se a conquista de uma consciência cada vez mais ampla, até a visão do Absoluto. É a fase de regresso da matéria que, por meio da ação, da luta, da dor, reencontra o espírito e volta à idéia pura, despojando-se, pouco a pouco, de todas as cascas da forma.

Estas simples indicações já esboçam a solução de muitos problemas científicos, como o da constituição da matéria, ou como o da possibilidade de, por desagregação, extrair dela, como de imenso reservatório, a energia, que não seria senão a passagem de g®b.
 
A energia atômica que procurais, existe, e a encontrareis.

Estes apontamentos projetam a solução de muitos complexos problemas morais.

Diante da grande caminhada que seguis está escrita a palavra evolução e a ciência não pôde deixar de vê-la, mas apenas a vislumbrou nas formas orgânicas e não em toda sua imensa vastidão. Vosso ciclo poderia definir-se como um físio-dínamo-psiquismo.
 

A fórmula é:    𝛄 ® 𝛃   𝛂.

𝛄 matéria
𝛃 = energia
𝛂 = espírito 


 





sexta-feira, 2 de novembro de 2018

F I N A D O S


Hoje, 2 de novembro, os costumes e a legislação, reservaram esta data para nos termos um tempo de reflexão e, para os que vão fazer uma visita ao túmulo de entes queridos, que façam isto sem a preocupação de cumprir horário de trabalho ou outras obrigações daí decorrentes.

Respeitando a crença de cada irmão que tenha entendimento diferente, não posso deixar passar a oportunidade para lembrar que cada um de nós, seja “vivo”, seja “morto”, é uma obra individualizada, unigênita, na criação de nosso Pai Celestial. E, nosso Pai não desperdiça suas obras e não permite que ela fique estagnada, encerrada em um túmulo.

A vida é única, no sentido de que a criação não ocorre no momento do nascimento.

Deus não fica à disposição dos casais, aguardando a concepção, o nascimento, para criar seus filhos, designar uma alma para aquele corpo. Já nos informam nossos irmãos do plano extrafísico que o mecanismo é bem diferente do que aprendemos, pois são tantas as teorias...
A realidade é outra, a alma (Espírito encarnado para os espíritas e espiritualistas) é preexistente ao nascimento e sobrevivente ao momento da transformação que denominamos “morte”.

Assim, meus irmãos, os Espíritos da Codificação Espírita nos ensinam que após “a morte” (do corpo físico), as almas não ficam nos túmulos, mas podem, para atender ao apelo do coração daqueles que acreditam que elas lá estejam, comparecer aos cemitérios.

Lembremo-nos  que a criatura caminha para Deus e a individualidade, utilizou  uma personalidade, que foi conhecida na última existência entre nós e que por isto  Jesus nos ensinou: 
                
 "Que o vosso coração não se turbe, Crede em Deus, crede também em mim.   Há muitas moradas na casa de meu Pai; se assim não fosse, eu já vos teria   dito, porque eu me vou para vos preparar o lugar e depois que eu tenha ido   e que vos tenha preparado o lugar, eu voltarei e vos retomarei para mim afim   de que lá onde eu estiver ai estejais também."  - João, cap XIV, 1, 2,3

Nesta oportunidade e exatamente pelo que mencionei acima, gostaria também de relembrar o pedido de um desencarnado, onde, em uma psicografia, ele pede que evitem realizar velórios e  sepultamentos no dia de finados, porque por ter sido sepultado numa data de finados  passou por experiência negativa, devido à presença de multidões de Espíritos, nas mais variadas condições, que afluem aos cemitérios nesta data, perturbando o que deve ser tranquilo.

Então, o assunto não é confortável de falar, porque desperta muitas emoções que estão latentes em nosso subconsciente.
Mas no livro “O Céu e o Inferno”, tem um estudo com o relato de um jovem de nome Marcel que nos esclarece muito sobre o quanto podemos estar enganados ao ver um irmão em sofrimento. Vou transcrever aqui todo o caso e também o esclarecimento de São Luis, o protetor da França no plano Espiritual, assim como Ismael o é do Brasil.


Marcel, o menino do no 4

Havia num hospital de província um menino de 8 a 10 anos, cujo

estado era difícil precisar. Designavam-no pelo no 4.

Totalmente contorcido, já pela sua deformidade inata, já pela doença, as pernas se lhe torciam roçando pelo pescoço, num tal estado de magreza, que eram pele

sobre ossos. O corpo, uma chaga; os sofrimentos, atrozes. Era oriundo

de uma família israelita. A moléstia dominava aquele organismo, já de

oito longos anos, e no entanto demonstrava o enfermo uma inteligência

notável, além de candura, paciência e resignação edificantes. O médico

que o assistia, cheio de compaixão pelo pobre um tanto abandonado,

visto que seus parentes pouco o visitavam, tomou por ele certo interesse.

E achava-lhe um quê de atraente na precocidade intelectual. Assim, não

só o tratava com bondade, como lia-lhe quando as ocupações lho permitiam,

admirando-se do seu critério na apreciação de coisas a seu ver

superiores ao discernimento da sua idade.


Um dia, o menino disse-lhe: — Doutor, tenha a bondade de me

dar ainda uma vez aquelas pílulas ultimamente receitadas.

Para quê? — replicou-lhe o médico — se já te ministrei o sufi-

ciente, e maior quantidade pode fazer-te mal...


É que eu sofro tanto, que dificilmente posso orar a Deus para que

me dê forças, pois não quero incomodar os outros enfermos que aí estão.

Essas pílulas fazem-me dormir e, ao menos quando durmo, a ninguém

incomodo.


Aqui está quanto basta para demonstrar a grandeza dessa alma encerrada

num corpo informe. Onde teria ido essa criança haurir tais sentimentos?

Certo, não foi no meio em que se educou; além disso, na idade

em que principiou a sofrer, não possuía sequer o raciocínio.

Tais sentimentos eram-lhe inatos: mas então por que se via condenado

ao sofrimento, admitindo-se que Deus houvesse concomitantemente

criado uma alma assim tão nobre e aquele mísero corpo –– instrumento

dos suplícios?


É preciso negar a bondade de Deus, ou admitir a anterioridade de

causa; isto é, a preexistência da alma e a pluralidade das existências.

Os últimos pensamentos desta criança, ao desencarnar, foram para

Deus e para o caridoso médico que dela se condoeu. Decorrido algum

tempo, foi o seu Espírito evocado na Sociedade de Paris, onde deu a seguinte

comunicação (1863):


A vosso chamado, vim fazer que a minha voz se estenda para além

deste círculo, tocando todos os corações. Oxalá seu eco se faça ouvir na

solidão, lembrando-lhes que as agonias da Terra têm por premissas as

alegrias do Céu; que o martírio não é mais do que a casca de um fruto

deleitável, dando coragem e resignação.


Essa voz lhes dirá que, sobre o catre da miséria, estão os enviados

do Senhor, cuja missão consiste na exemplificação de que não há dor insuperável,

desde que tenhamos o auxílio do Onipotente e dos seus bons

Espíritos. Essa voz lhes fará ouvir lamentações de mistura com preces,

para que lhes compreendam a harmonia piedosa, bem diferente da de

coros de lamentações mescladas com blasfêmias.


Um dos vossos bons Espíritos, grande apóstolo do Espiritismo,

cedeu-me o seu lugar por esta noite.69 Por minha vez, também me compete

dizer algo sobre o progresso da vossa Doutrina, que deve auxiliar em

sua missão os que entre vós encarnam para aprender a sofrer. O Espiritismo

será a pedra de toque; os padecentes terão o exemplo e a palavra, e

então as imprecações se transformarão em gritos de alegria e lágrimas de

contentamento.”





P. Pelo que afirmais, parece que os vossos sofrimentos não eram

expiação de faltas anteriores...


R. Não seriam uma expiação direta, mas asseguro-vos que todo

sofrimento tem uma causa justa. Aquele a quem conhecestes tão mísero

foi belo, grande, rico e adulado. Eu tivera turiferários e cortesãos,

fora fútil e orgulhoso. Anteriormente fui bem culpado; reneguei Deus,

prejudiquei meu semelhante, mas expiei cruelmente, primeiro no mundo

espiritual e depois na Terra. Os meus sofrimentos de alguns anos

apenas, nesta última encarnação, suportei-os eu anteriormente por toda

uma existência que raiou pela extrema velhice. Por meu arrependimento

reconquistei a graça do Senhor, o qual me confiou muitas missões,

inclusive a última, que bem conheceis. E fui eu quem as solicitou, para

terminar a minha depuração.


Adeus, amigos; tornarei algumas vezes. A minha missão é de consolar,

e não de instruir. Há, porém, aqui muitas pessoas cujas feridas

jazem ocultas, e essas terão prazer com a minha presença.”



69 Nota de Allan Kardec: Santo Agostinho, pelo médium com o qual habitualmente se comunica na

Sociedade.



Marcel

Instruções do guia do médium Pobrezinho sofredor, definhado, ulceroso e disforme! Nesse asilo de misérias e lágrimas, quantos gemidos exalados! E como era resignado... e como a sua alma lobrigava já então o termo dos sofrimentos, apesar da tenra idade! No além-túmulo, pressentia a recompensa de tantos gemidos abafados, e esperava! E como

orava também por aqueles que não tinham resignação no sofrimento, pelos que trocavam preces por blasfêmias! 


Foi-lhe lenta a agonia, mas terrível não lhe foi a hora do trespasse; certo, os membros convulsos contorciam-se, oferecendo aos assistentes o espetáculo de um corpo disforme a revoltar-se contra a morte, nessa lei da carne que a todo o custo quer viver, mas um anjo bom lhe pairava por sobre o leito mortuário e cicatrizava-lhe o coração. Depois, esse

anjo arrebatou nas asas brancas essa alma tão bela a escapar-se de tão horripilante corpo, e foram estas as palavras pronunciadas: “Glória a vós, Senhor, meu Deus!” E a alma subiu ao Todo-Poderoso, feliz, e exclamou:


Eis-me aqui, Senhor; destes-me por missão exemplificar o sofrimento... terei suportado dignamente a provação?”


Hoje, o Espírito da pobre criança avulta, paira no Espaço, vai do fraco ao humilde, e a todos diz: “Esperança e coragem.” Livre de todas as impurezas da matéria, ele aí está junto de vós a falar-vos, a dizer-vos  não mais com essa voz fraca e lastimosa, porém agora firme: “Todos que me observaram, viram que a criança não murmurava, e hauriram nesse

exemplo a calma para os seus males e seus corações se tonificaram na suave

confiança em Deus, que outro não era o fim da minha curta passagem

pela Terra.”

Santo Agostinho 

E para finalizar recomendo a leitura aqui neste Blog, da postagem A Função da Dor.
https://omundoextrafisico.blogspot.com/2016/08/a-funcao-da-dor.html 

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

O PROBLEMA DA MORAL II


DO LIVRO   EVOLUÇÃO E EVANGELHO
CAPÍTULO IX   
O PROBLEMA DA MORAL II



Como age a nova moral? Mundo de lu­ta. Evolução por ação e reação entre dirigentes e súditos, por comum abrandamento de costumes. Progressiva eliminação da lu­ta, e da dureza das leis. Em direção a uma moral cada vez mais amiga. A vida, estado de guerra. A ética que se vive nos fatos, e suas conseqüências. A função biológica da mentira. A virtude como astúcia. A liquidação do simples e honesto. Ética emborcada. A psicologia do selvagem e do civilizado. Inteligência prática, para a luta, e não especulativa, para o conhecimento. A moral da nova civilização do espírito.



Dadas as condições atuais do mundo, como fazê-lo evoluir ainda, levando-o a viver a nova moral? Aplicando-a ao real estado de fato, que reações excitará e recebera em resposta, quando se trata de pas­sar seriamente de uma ética pregada a uma ética realmente vivida? Não podemos esquecer que se tra­ta de um mundo em que tudo se baseia na luta, um mundo em que a norma ética teve de aparecer até agora como imposição armada de sanções, resultan­do como conseqüência o desenvolvimento da arte de escapar delas. Há luta entre o evoluído que quer subir e o involuído que não quer subir, luta entre duas leis diferentes que aspiram ao domínio absoluto so­bre o homem.


Ora, é lógico que, nesse ambiente, qualquer inovação tem de ser iniciada de cima, isto é, por parte dos vencedores, que são os únicos, nesse plano, e têm o direito de mando. Se nesse plano tudo funcio­na assim, se esses são os princípios que estabelecem a conduta dos que aí vivem, não podemos sair deles nem mesmo quando queremos estabelecer uma nor­ma ética, embora desça ela de planos superiores, regidos por princípios diferentes. As normas concebi­das nos ambientes mais elevados constituem o que se chama a teoria. O modo com que são recebidas, adaptadas e até invertidas no ambiente humano ter­restre constitui o que se chama a prática. A teoria é bela, resplandecente, mas a tendência é que seja de­turpada e corrompida logo que desce á prática.


A realidade apresenta-nos, então, um espetáculo bem diferente do que se poderia imaginar. 

Quem faz as leis é a camada social superior, que tem o di­reito de mandar porque venceu a batalha da vida.

Se essa camada não faz a lei ética, porque só poucos e excepcionais evoluídos conseguem intuí-la, pode todavia formulá-la em artigos de lei, dosá-la e, sobre­tudo, enchê-la de sanções que, na terra, são as coisas mais importantes, se não quisermos permanecer no campo teórico. E então a ética, que no Alto é outra coisa — ou seja, norma espontânea de convicção — também se torna luta, para adaptar-se à lei da terra em que desceu. 
É sob esse aspecto que a moral apa­rece em nosso mundo, fato que pode parecer estra­nho e contraditório, mas do qual compreendemos as razões. A ética resolve-se assim, na prática, numa luta entre a classe superior que impõe as leis, e as classes inferiores que devem aceitá-las, luta entre a classe dos juizes que estabelecem a culpabilidade e condenam, e a dos julgados culpados, que são con­denados se não obedecem.


Podemos perguntar-nos agora: 
como consegue a vida evoluir, se a descida dos ideais á terra está submetida a esse sistema que a converte em luta e assim paralisa seu efeito mais importante, que é o de pro­vocar uma melhoria? 
Eis então o que acontece: 
o progresso é um impulso íntimo, que age de dentro, indistintamente sobre todos, tanto em quem manda, como em quem obedece. 
A evolução não pode submeter-se ao contraste entre os dois impulsos opostos em luta; então, ao invés de ficar dominada por ele, domina-o e o utiliza. Não podendo caminhar em li­nha reta, avança tortuosa como um rio, por impulso e contra-impulso, por ação e reação entre as duas par­tes contrárias que, assim, acreditando eliminar-se, co­laboram substancialmente na mesma direção, que é a da evolução. 

Os dois grupos opostos influenciam--se mutuamente Logo que um progrida um pouco, o outro recebe e assimila os benefícios, civiliza-se, abranda seus costumes, obedece com um pouco mais de consciência e conhecimento, mais espontaneamente convencido porque experimentou as vantagens de viver na ordem. São a luz e a bondade que começam a chegar, desmantelando aos poucos o castelo das coações e sanções, duro ônus que pesa sobre todos, e de que agora é possível começar a libertar-se, por­que cada vez se torna menos necessário. 
Isto permi­te aos dirigentes a mitigação das penas, abandonan­do cada vez mais o método psicologicamente impo­sitivo de terrorismos, indispensável para disciplinar seres rebeldes e ferozes. 
Antes, não se podia assim proceder sem prejuízo destes, que teriam interpreta­do qualquer ato de bondade como sinal de fraqueza e autorização à devassidão. 

A idéia do inferno não foi criação de um grupo sacerdotal, mas uma neces­sidade psicológica, imposta pelo estado de involução em que se achava o homem no passado. Sem esses terrorismos hoje inaceitáveis, o edifício ético, em virtu­de de sua estrutura mental, teria caído na anarquia. Mas é lógico que tudo isso deva ir desaparecendo, automaticamente, sem danos, logo que o homem, por ter-se civilizado mais, o permita.

Caminho lento, gradual e difícil, mas caminho fa­tal. Sem dúvida os dirigentes, por causa da natureza de seus súditos, têm necessidade de defender-se e não podem abandonar-se a excessivos atos de bon­dade, sem que seja invertida a ordem que a lei ética deseja, tornando-se anti-ético, porque impediria que a vida atingisse seus objetivos. 

Para o involuído, a éti­ca precisa estar armada de chicote, pois só assim o le­vará ao bem. Mas não restam dúvidas de que o dever da iniciativa dos melhoramentos cabe à classe dos dirigentes (abolição da pena de morte, da escravidão, melhoramentos no sistema de prisões, mitigação da pe­na, justiça econômica, previdência social etc.)., Essa iniciativa deverá ser levada até ao limite máximo possível, como grau de bondade que o estado de ci­vilização atingido já permite. 

Dentro desses limites, as classes menos evoluídas da sociedade poderão restituir à classe superior o bem que recebem, na for­ma de um abrandamento de costumes. 

A finalidade da lei é sobretudo de educar, ensinando, à força de sanções, a viver mais civilizadamente, pronta a aban­donar esse sistema, logo que os súditos aprendam a lição, e demonstrando assim não mais necessitarem desses métodos.

Na feroz Idade Média realizavam-se as execuções capitais e as punições corporais nas praças, à vista de todos, usando o sistema terrorístico, julgando-se educar o povo no respeito para com os detentores do poder. Mas isto também educava o povo no gosto do crime, nunca dominado com esse sistema que, no fundo, só demonstrava o medo que os domi­nadores tinham de ser derrotados. Com o tempo, o trabalho subterrâneo da evolução abrandou tudo, tanto que esses espetáculos aos quais a multidão acorria com satisfação, agora gerariam nojo e con­denação.

Assim, por golpes e contragolpes, realiza-se a evolução e a humanidade progride para formas de vida que contêm cada vez menos o mal e cada vez mais o bem. 

As massas, educando-se cada dia mais no bem, permitem aos dirigentes e às leis que sejam melhores, e estes, tornando-se melhores, educam as massas cada vez mais no bem. Esse é o sistema uti­lizado pelo progresso num mundo de luta, onde isto pareceria impossível, precisamente por causa da luta. O progresso, paradoxalmente, realiza-se por meio da luta, isso nos mostra como é profunda a sabedoria da vida.

A repressão forçada é um mal necessário nos tem­pos involuídos; mal que se destina, porém, a ser superado. Não é a repressão que liberta a sociedade de seus males, mas a mecânica progressiva que acabamos de ver. 
Ao contrário, a repressão aumenta a reação, a violência gera a violência e, em última análise, o mal só pode ser combatido com o sistema da não-reação, e só pode ser vencido verdadeira­mente se o neutralizamos com igual medida de bem. 
Muitos abusos e delitos nascem, freqüentemente, de um abuso e delito maior, o de não reconhecer nos do­minados os direitos que os dominadores reconhecem para si mesmos. Os princípios superiores da ética são tanto mais dificilmente aplicados, quanto mais poderoso e ativo é o sistema de luta que vigora na terra, para a qual eles são trazidos.

A humanidade futura será mais inteligente e com­preenderá a enorme vantagem de comportar-se de modo diferente. 

No fundo, os conceitos de moral e evolução coincidem, como os de anti-moral e involução. Ao evoluir, o indivíduo torna-se esponta­neamente moral, como ao involuir se torna anti-mo­ral. Por natureza o evoluído é mais moral que o in­voluído. Moral é evoluir, anti-moral é involuir, como viver uma vida estéril que nada produz de bom nem para si, nem para os outros. Moral lógica e utilitária, baseada no utilitarismo da vida, que não é de superfície nem míope visando a efeitos imediatos, mas profundo e de longo alcance, substancialmente frutífero. 
Definimos a dor como um estado de desarmonia, de­vido à própria posição da desordem. A dor deriva, com efeito, da desordem, que leva os indivíduos a luta, fazendo-os chocar-se uns contra os outros. 
É ló­gico, pois, que ela tenda a desaparecer com a evolução que leva à ordem, que pacifica os indivíduos, fa­zendo-os caminhar disciplinadamente, cada um em seu lugar, sem mais chocar-se com o vizinho, ofen­dendo-o.


Como a fera que se torna menos feroz e perde as garras ao evoluir, ou seja, como a evolução reali­za uma progressiva eliminação da luta pela vida, assim a moral, à proporção que evolui, se torna me­nos opressora, menos terrorística, menos armada de duros castigos. Com a evolução tudo tende à harmo­nia, à alegria, à bondade. Torna-se o homem mais livre e ao mesmo tempo adquire maior sentido de responsabilidade. Quem quiser subir aproveitará, de­pois as vantagens; quem não quiser subir, permanecerá em seu nível de vida, com todos os males ine­rentes a ela.

Em substância, a nova moral diz ape­nas: civilizai-vos e vivereis muito melhor. 

E se agra­da a todos viver melhor, é lógico que, descoberta a estrada para atingir isto, se ache conveniente subme­ter-se ao esforço indispensável para percorrê-la. A ética atualmente em vigor na prática, embora teori­camente bela, é torcida pelos instintos elementares, cheia de trasbordamentos do subconsciente e de ilu­sões psicológicas, devidas a perspectivas erradas, produzidas pela forma mental que dirige o homem em seu atual plano de vida. Moral em que reapare­ce a cada passo, nos fatos, o cálculo do próprio inte­resse, o medo do patrão, o desejo de evitá-lo, enga­nando-o com escapatórias, o contínuo sentido de luta para tornar-se o mais forte e assim vencer a todos.

Esse triste estado deve ser abandonado e supera­do com formas de vida mais altas e felizes. Não mais tantas condenações, que sufocam a vida, mas esfor­ços inteligentes para melhorar, andando ao encontro dela.
 U'a moral amiga, que nos levará ao bem querendo-nos bem, e não u'a moral inimiga, em que o instinto humano de luta e agressão encontra desa­fogo. É preciso afastar-se cada vez mais dos grandes absurdos e aberrações do passado, como as guerras santas, as inquisições., os infernos eternos, a benção das armas e as condenações em nome de Deus, como de toda coação espiritual que leva à aceitação forçada, como substituto da aceitação espontânea, por convicção.

 U’a moral fraterna e pacífica de onde desapareceu a luta, em que, sendo tudo lógico e cla­ro, não pode aparecer a mentira, porque é contraproducente. Para eliminar todos esses efeitos maus é mister eliminar as causas. Não é uma moral para uso dos vencedores, em detrimento dos vencidos, mas uma moral de justiça em que há lugar para os direi­tos e à vida de todos. Então a classe dos rebeldes à ordem social não teria mais razão de existir e desa­pareceriam essa praga, essa luta e esse perigo. Mas, enquanto dominar u’a moral de classe, ao invés de u’a moral biológica imparcial, a humanidade terá de continuar a luta, e não poderá purificar-se de seus elementos mais daninhos.


Estas são as regras do jogo e não podemos sair delas:

 se semearmos justiça, colheremos ordem e paz; mas se semearmos injustiça só poderemos colher revolta e mentira.
 Se, no próximo, quisermos enga­nar a vida, a vida, através do próximo, nos engana­rá. Esta é uma realidade à qual não podemos esca­par, mesmo se tudo fizermos em nome de Deus, da pátria, de um ideal, do bem da humanidade.
Esta é a verdade a que tudo se reduz, para além dos esque­mas filosóficos, religiosos, ideais e sociais. As aparências não contam. Se não formos sinceros, teremos mentira; se oprimirmos teremos revolta; se não sou­bermos mandar para o bem alheio, não obteremos obediência.

* * *

O ponto fraco da moral vigente é sempre o de permanecer imersa no plano da luta, de ser uma expressão dela, de existir em função dela, permane­cendo assim uma moral de involuídos. A causa primeira dos males daí derivados é o princípio do mais forte, que domina nesse plano, princípio que leva à derrota. Segundo esse princípio a verdade é estabe­lecida pela maioria, com suas idéias, para satisfazer a seus instintos e interesses. Cabe-lhe esse direito, porque ela é numericamente mais forte. Mas quais são as idéias da maioria, que certamente não pode representar uma elite selecionada? São as que corres­pondem aos impulsos mais elementares da vida. E é a essa altura, própria dos involuídos, que os evoluídos são constrangidos a nivelar-se. E então, mes­mo que a verdade possa descer do Alto pela revelação, o que a humanidade aceita, aplica e vive, é estabelecido pelos limites impostos pela capacidade de compreensão das massas, que não sabe ir além de um consentimento instintivo do subconsciente, que re­presenta a parte mais involuída, a animal do ser hu­mano. São estas as forças que, através dos fatos, ten­dem a dirigir a atividade humana e com a qual a éti­ca tem de contar, pagando o seu tributo, ainda que, na teoria, essa atividade pretenda justificar-se pro­clamando-se conseqüência e aplicação de princípios absolutos, e sendo praticada em nome de Deus e dos mais altos ideais. A realidade positiva que aparece nos fatos é a satisfação do imperativo dos interesses da vida, que quer atingir sua finalidade. Constrói-se assim o castelo da ética sobre bases escusas, que se enterram nas vísceras do mundo biológico e que pouca afinidade tem com abstrações lógicas e teológicas, onde a ética pretende fundamentar-se para assumir valor absoluto, acima de nosso contingente. Como o homem construiu para si uma idéia toda antropomórfica da Divindade, para seu uso e consumo; como se colocou na posição de único objetivo da criação, num planeta que estava no centro do universo, em função de valores considerados absolutos, por exemplo a imobilidade da terra e a solidez da matéria; do mes­mo modo o homem construiu para si uma ética na ba­se de ilusões psicológicas, que a observação acurada das mentes mais adiantadas vai gradualmente desfa­zendo com a análise, à proporção que, com a evolu­ção, se abre a inteligência humana.


Justifica-se essa forma mental, responsável pelo conceito de verdade absoluta, através do desejo instintivo de atingir a última meta do conhecimento Acreditam assim que a atingiram e a possuem, ao passo que para o homem, situado no futuro, só são possíveis verdades relativas e em evolução. De fato é. isto o que a realidade nos mostra apesar das mais absolutas e dogmáticas afirmações em contrário. Di­ante do transformismo universal, a que nenhum ser pode escapar porque está imerso no fenômeno da evolução, o absoluto imutável só é admissível como distante meta final, ainda não tocada, e só atingível no término do processo evolutivo. Até esse momento, tão distante que escapa à avaliação de nosso concebível, só podemos admitir para o ser uma progressiva suces­são de diversas aproximações da verdade, como eta­pas da contínua conquista do conhecimento. A ética é apenas um dos aspectos dessa verdade e, como tal, também só pode ser relativa e em evolução. Eis en­tão que a ética, como o conhecimento e tudo o mais, é dada pela posição que o homem atingiu ao longo da escala da evolução, e existe em função desta, ou seja, do grau de desenvolvimento alcançado, o que estabelece, em todos os campos, os limites do
conce­bível humano.


Surge, então, na terra, a possibilidade de existi­rem diversas éticas, relativas ao grau de evolução atingido. 
É verdade que a maioria estabelece um ní­vel médio, proporcional à sua sensibilidade e compreensão, adaptado às massas que, nele se encon­tram à vontade. Mas é também verdade que os mais evoluídos podem considerar essa ética como al­tamente imoral, já que encara como lícito e natural o que a eles pode parecer até mesmo um crime.

A mo­ral dos selvagens atinge a antropofagia. A moral do homem civilizado admitiu, até há pouco tempo, a es­cravidão, e ainda admite, em vários casos, o direito de matar o seu semelhante. Quanto mais civilizado é o ser, e ilícitas, muitas coisas que a moral comum permite, mais é evoluído e mais fica horrorizado como os seus semelhantes realizam, sem nenhum sentimen­to de culpa, atos que seriam, para ele, inadmissíveis. 
Esse tipo biológico poderia então fazer uma lista de crimes que a ética comum, tanto religiosa como civil, admite tranqüilamente, sem perceber a sua atrocida­de, com a mesma ingenuidade com que — em pro­porção — o antropófago devora o seu inimigo.


Veja­mos alguns desses casos.

1) Julgarmos não em função da justiça, imparcial­mente, mas em função da força de que o julgado dispõe: seja em posição social, poder econômico, capa­cidades bélicas etc., chegando assim a uma justiça que funciona de modo exemplar apenas para o fa­minto e inerme ladrão de pão ou de galinhas


2) Julgarmos e condenarmos o próximo sem conhe­cer suas condições reais e só em função deles mes­mos. Sermos tolerantes quando nos outros encontramos os nossos próprios defeitos, pelos quais também nós poderíamos ser condenados primeiro, se os 
con­denássemos; e tornarmo-nos desapiedadamente in­transigentes e modelos de virtude, quando nos outros podemos apontar defeitos que não temos, pelos quais, portanto, não podemos ser alvo do retorno de acusação.


3) Servirmo-nos das altas coisas do espírito e de Deus como meio para alcançar vantagens materiais, para vencer na vida e nos afirmarmos no mundo, prostituindo-as até fazer delas instrumento de astúcia de guerra. Em outros termos, servirmo-nos da política para satisfazer o próprio orgulho ou para nos tornarmos uma potência social e econômica, e não para aju­dar a nação; servirmo-nos da religião para assegurar uma posição e não para cumprir a missão de levar o bem às almas; trairmos os princípios que dizemos pro­fessar, usando-os para outros fins, enganando a res­peito dos verdadeiros métodos de vida, bem camufla­dos sob um belo manto de hipocrisia, e, praticando na realidade, sob tão belas aparências, o jogo duplo do Maquiavelismo.


4) Segundo a moral em vigor, é lícito vivermos no desperdício do supérfluo, enquanto outros nossos se­melhantes carecem do estritamente necessário, assim como é lícito entrarmos na posse de bens que não fo­ram ganhos com o próprio trabalho.


5) É lícito roubarmos quando com isto damos pro­va de uma inteligência, que sabe enganar a justiça estabelecida pelas leis. Saber escapar astuciosamen­te, aos castigos, pode até merecer como prêmio a velada estima da opinião pública, que não a regateia a quem saiba vencer e tornar-se poderoso, e que se torna incondicionalmente admirado só por isso, rele­gando ao esquecimento os meios utilizados, desde que atingiu resultados tão brilhantes e invejados.


6) É lícito, com a benção de Deus e as honras da pátria, matarmos quando isto corresponde aos inte­resses do próprio país ou dos detentores do poder. Aos maiores carrascos da humanidade, que realiza­ram as maiores matanças bélicas, foram tributadas as maiores honras da história.


A lista poderia continuar. Estes são alguns dos delitos que a ética humana atual reconhece como lícitos, na realidade, embora os condene teoricamente; delitos que qualquer um pode tranqüilamente come­ter, continuando pessoa de bem e cidadão estimado na sociedade, como bom cristão, ao qual as religiões prometem o paraíso. Assim a maioria cria a própria ética, satisfazendo seus instintos, aos quais obedece de boa fé, acreditando permanecer na verdade e na justiça. Não tendo atingido ainda o nível evolutivo suficiente para perceber o que está fazendo, a pessoa se julga honesta e sincera. Nada mais se pode fazer, então, senão repetir com Cristo: “Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. E para compreender o 
com­portamento desses seres, temos de raciocinar com a inteligência da vida, que os faz movimentar-se por meio desses instintos, sem que eles saibam o porque. Eis que então aparece, além da ética pregada e teorica­mente professada — artificiosa construção do pensa­mento — esta outra moral biológica e realística, em que a vida impõe as férreas leis de seu plano de evolução.


Esta realística moral biológica pode parecer mais livre, porque permite muitas coisas que são proibidas mais acima; entretanto nem por isso é menos dura. Justamente porque mais involuída, está armada com reações férreas, para manter na linha o involuído, menos sensibilizado. O homem comum sente-se livre e por isso acredita que lhe é permitido poder realizar impunemente qualquer desejo, não imaginando que vive constrangido nas malhas de uma rede de ferro, estabelecida pela Lei. Como esta lhe deixa liberda­de de ação ele acredita poder fazer o que quer e não percebe que a cada movimento seu corresponde uma inexorável reação. Assim o homem faz o que quer, mas a lei é um sensibilíssimo organismo de forças que, à mínima violação de sua ordem, responde com um proporcionado e adequado contragolpe, que coloca cada coisa em seu lugar, de acordo com a justiça. Essas forças são como tentáculos que atingem quem errou contra a lei, sem possibilidade de fuga, em qualquer tempo ou lugar que ele se encontre. O ho­mem, acreditando-se totalmente livre, está imerso nes­sa atmosfera de ordem imposta pela lei; faz parte des­se organismo de forças que o vinculam de todos os lados e no qual precisa saber manobrar com sábia retidão, se não quiser depois ser coagido a suportar tremendos contragolpes como reação da lei.


Justamente nesse ambiente — de cuja verdadei­ra natureza o homem não pode tomar conhecimento por causa da ignorância — é que o homem gosta de mover-se, segundo seus loucos caprichos, perseguindo miragens de dominador, que pretende impor-se a tudo. É fácil imaginar que dilúvio de dores daí re­sulte. E é isso que de fato vemos acontecer no mun­do. É como se um aviador quisesse voar sem conhe­cer nem respeitar as leis do vôo, e ao contrário, pre­tendesse impor-se a elas, para dobrá-las, obrigando-as a funcionar segundo sua vontade. O resultado lógico seria que, ao invés de mudar as leis do vôo, o aviador caísse ao solo pagando as conseqüências fatais de sua louca pretensão. Qualquer técnico que conheça aquelas leis poderia matematicamente ex­plicar-lhe a necessidade lógica das conseqüências.


As primeiras características do involuído são a sua ignorância e o instinto de revolta, de modo que, aumentando essas qualidades com a involução, au­menta proporcionalmente a força dos golpes recebi­dos. Mas é justamente desses golpes maiores que a insensibilidade maior do involuído precisa, para aprender a conhecer a lei e a não ofendê-la com a própria revolta. Os meios para educar são enérgicos, na medida adaptada à capacidade perceptiva dos alunos. Estes podem semear a desordem que quise­rem, mas só para si, e para depois pagarem os pre­juízos, à própria custa. Ninguém pode impedir que tudo esteja proporcionado em perfeita ordem, na lei.


O objetivo da escola da dor é ensinar a obediência, ensinar a saber movimentar-se seguindo a ordem da lei e não chocando-se com ela, provocando rea­ções. Todavia o homem é um rebelde por natureza, e julga-se honrado e sábio, quando sabe impor-se a todos, e se gaba da arte de violar a lei, conseguindo depois escapar às suas reações. Entre o involuído e a Lei estabelece-se assim não um regime de consentimento e harmonia, mas como um duelo em que o ho­mem desejaria superar a Lei, a qual lhe aparece não como uma norma de sua felicidade, mas como um inimigo que deva ser dobrado e enganado. Acredi­ta-se desta forma dar prova de inteligência, usando de astúcia ao querer lograr nas barbas de Deus e dos homens. Trágico mal-entendido, que escancara as portas à dor, necessária para corrigir esse erro. A lei não é um obstáculo que valha a pena superar com bravura, mas um guia amigo que quer levar-nos à felicidade que procuramos destruir, quando nos re­belamos contra a Lei. Com a desobediência semeamos dor, onde a lei, se fosse obedecida, faria nascer alegria.


E' assim que, através dos oceanos de todos os so­frimentos, o homem aprende a conhecer os artigos da Lei. É assim que, pagando pela desobediência, se aprende a arte de obedecer. Desse modo a Lei, duplamente sábia, compensa a loucura do homem, im­pelindo-o, apesar de tudo, a realizar a própria evolução. E quanto, mais o homem, na sua luta contra a lei, procura escapatórias para fugir de seu castigo, tanto mais esta o chicoteia para trazê-lo à sua ordem. O jogo que vale para as leis humanas, que é possí­vel enganar, não vale para a Lei de Deus, que não se pode lograr. Nossa ignorância pode ser tão gran­de que nos faça crer seja isto possível. Mas não mu­da a realidade dos fatos. Quando julgamos que fo­mos mesmo sabidos, conseguindo burlar a Lei e es­capar de suas sanções, explode a sua reação maior, com a tempestade corretiva. Aprende-se, então, a li­ção mais salutar, a que nos ensina que o erro maior, que se paga mais caro, é justamente o de jul­gar seja possível impor-se à Lei com a força e escapar das conseqüências da desobediência com a astúcia.


As estradas de fuga abrem-se diante de nossos olhos, amplas e convidativas. Os ingênuos acredi­tam que fizeram a grande descoberta e encontraram os atalhos da felicidade. Lançam-se a eles aos mon­tões, como moscas ao mel. Que convite: ganhar a bom preço, com pequeno esforço Como resistir a isso. Mas a Lei é justa e não admite se possa obter uma vantagem sem ser conquistada e merecida. Essas soluções cômodas são uma ilusão; esses cami­nhos fáceis que parecem conduzir à felicidade são redes de fundo sem saída, becos cheios de dor, e pa­ra sair deles, é mister caminhar para trás, engolindo o erro e tornando a percorrer a íngreme subida por todo o caminho percorrido na descida fácil.


Há uma estrada que não engana e verdadeira­mente resolve o problema, sem trazer-nos sofrimen­tos. Mas esta é pequena, estreita, lateral, e ninguém lhe dá importância; é íngreme e incômoda, e não atrai os caçadores de vitória, fáceis. Termina numa passagem muito estreita, e para entrar nela é preci­so estar nu, sem nenhuma roupagem de mentiras, despido dos enfeites das coisas terrenas, sutil e leve, espiritualizado e livre do peso da matéria. Aquela passagem estreita é a honestidade. Sé passam por ela os justos, os sinceros, os obedientes à Lei. Seria possível sair por ali sem chocar-se com as reações da Lei, mas é difícil e ninguém pensa nisso. Para con­segui-lo são necessárias qualidades que não se tem e que são duras de conquistar; requerem-se esforços que não são agradáveis fazer. Por isso ninguém olha para esse lado, onde, no entanto, está o caminho de saída a todos os sofrimentos. E são preferidas as ou­tras estradas, amplas e convidativas, mesmo que depois não conduzam, como é lógico, senão ao enga­no. É justo, está de acordo com a Lei, que quem quer enganar seja enganado; que quem se glorie do sa­ber lograr, seja logrado. Depois diz que a vida é ilu­são. Mas esta foi desejada pela psicologia de astú­cia que ilude primeiro quem acreditou poder iludir a Lei.


Quando depois, por obra de seres mais adianta­dos, desce do Alto uma ética, norma de conduta que nos leva a evitar esses males, mesmo assim o homem, como fazia com a Lei, procura todas as escapatórias para lográ-la. O involuído primitivo não sabe respon­der de outra forma. Quando, por maturidade evolu­tiva, falta a consciência das próprias ações, a ética poderá impor normas mecânicas e exteriores, mas não poderá improvisar essa consciência. Nesse ní­vel, a ética reduz-se então, à prática formal daque­las normas e, realizadas elas, o indivíduo sentir-se-á tranqüilo em sua consciência, convencido de que na­da mais se deva nem se possa fazer. Nesse nível não se pode exigir mais que esse cumprimento formal, já que falta a sensibilidade necessária para perceber o peso das coisas espirituais. Para chegar a percebê­-las, os imaturos as revestem de formas materiais, procurando assim segurá-las, ao dar-lhes corpo con­creto, porque de outro modo ficariam inatingíveis, perdidas no mundo do super-concebível. É assim que se pode chegar a uma ética formal exterior, que os involuídos praticam de perfeita boa-fé, julgando-a uma ética de substância, mas que não pode deixar de aparecer aos olhos do evoluído como uma menti­ra e uma traição de princípios. E no entanto não se pode culpar ninguém, porque ninguém pode dar o que não tem, nem ser mais do que é. Não se pode exprobrar a planta de ser planta, o animal de ser ani­mal, nem a qualquer criatura de só saber existir con­forme as qualidades que possui. A condenação ou o prêmio cada um o traz em si, com a própria inferio­ridade ou com a própria superioridade. Aos involuí­dos não se pode culpar se a vida, no seu nível, não sabe funcionar de forma mais adiantada Na reali­dade não há nenhuma vantagem em ser involuído, e quem não sabe viver melhor, merece compaixão pela sua desgraça. Ninguém mais do que o ignoran­te é vítima, e, acreditando mandar, é obrigado a obe­decer a leis que não conhece. Não é a eles mas ape­nas ao evoluído consciente, que se pode pedir que compreenda o mecanismo de seus instintos e rea­ções, que constituem a chave de seu comportamen­to, a verdadeira moral íntima que o ser sente e é le­vado a viver, não lhe importando qual seja a moral oficial que, por outros motivos sobrepostos, teve de aprender a representar, formalmente, na prática. Só assim pode compreender-se o verdadeiro jogo da vida, que, de modo geral, é duplo, porque a primeira coisa que o instinto ensina ao involuído que tem de viver em regime de guerra, é esconder suas próprias e verdadeiras intenções, como ensina o Maquiavelis­mo: parecer sincero e honesto, sem o ser.


Assim, o sistema da luta, índice seguro que esta­belece a inferioridade do plano evolutivo humano, não é eliminado pela ética para dar lugar a um regi­me de justiça, como se presume; mas é apenas escondido nos subterrâneos da vida, onde a luta con­tinua mais exacerbada que nunca, mais sutil e astuta, e nem por isso menos feroz. Esta é a ética verda­deira, com a qual é preciso, em última análise, fazer as contas, a que rege o mundo e constitui a substância de todos os problemas. Enquanto permanece no campo teórico e, embora muito alta, não lesa interes­ses concretos; enquanto não aborrece e nada custa respeitá-la, é respeitada. Se por isso pôde formar-se e dominar uma ética feita de altas teorias e belas práticas, sem tocar na substância da vida, porque aí a coisa muda de figura e recrudesce a luta. Mas logo que a ética quer tocar na realidade dos interesses tangíveis, que todos sentem, então afloram aquelas verdades que são na prática as verdadeiras verda­des da vida, acima das belas aparências. Acaba então o jogo das belas palavras e chega-se aos fa­tos. Se aparece um interesse ou um prejuízo concre­to, toca-se na realidade da vida, que reage, e surge o verdadeiro jogo. O outro, o das belas teorias e das exterioridades formais, pode continuar imperturbá­vel, pois todos sabem que não é o verdadeiro. Mas se tocarem no ventre e no sexo, nos bens e nas satis­fações materiais, todos compreenderão que se age seriamente. Não são os problemas do conhecimento, mas estes é que constituem os grandes problemas do subconsciente das massas, aqueles segundo os quais caminham as correntes da psicologia coletiva, aque­les de que mais se ocupa o pensamento da maioria — o que estabelece a verdade dominante. Só quan­do, alem das palavras e práticas convencionais, sou­bermos ver esse outro recôndito pensamento escon­dido entre as dobras da aparência, só então podere­mos compreender a verdadeira natureza do jogo da vida e da ética, e a verdadeira razão das ações humanas.


A ética do mundo faz muita questão de distinguir um grupo do outro, seja por fé, religião, partido etc., e não a distinguir honestos de desonestos, onde quer que estejam. Isto justamente porque o maior interes­se destes últimos, que são os mais espertos, é perma­necer misturados em todos os grupos com os hones­tos, que são os mais fáceis de serem subjugados.

Assim, sob outras aparências, pode fazer-se o verda­deiro jogo da vida, que é o de vencer na luta, e pode aplicar-se a verdadeira ética vivida, que é ética de guerra, pela qual os mais fortes e astutos podem atingir os altos postos, dominando os mais fracos e simples. Eis a verdadeira ética, que vigora sob as aparências da moral oficial, ética que oferece a pal­ma do vencedor a quem souber fazer o jogo da vida as expensas de quem não sabe fazê-lo.


Essa é a verdadeira face da verdade na terra. O honesto faz todas as despesas e parece injustiça. Mas nem tudo acaba aí. Os melhores são expulsos do ambiente da terra, o que constitui, em última aná­lise, uma grande vantagem para eles, pois lhes per­mite tornar-se cidadãos de mundos mais evoluídos, enquanto os piores, que se acreditam vencedores, continuam empilhados no pântano terrestre, para agredir-se mutuamente, segundo seu instinto de luta, fazendo assim com as próprias mãos o seu inferno. Saber triunfar no mundo, pela força ou pela astúcia é, na verdade, o maior prejuízo, porque significa fa­zer parte de planos inferiores de vida e ser condenado a permanecer aí, suportando todos os seus ma­les E eis que, em última análise, quem vence na vida é a justiça de Deus, pela qual cada um volta se­gundo o seu lugar e merecimento. Quem acredita chegar em melhor situação que antes, por seguir vias transversas, na realidade, chega em pior condição. Quem pratica o mal, acreditando com isso vencer, faz mal na realidade a si mesmo e perde, devendo ainda por cima pagar o próprio dano. Só a igno­rância do involuído pode acreditar seja possível tal absurdo uma derrota para Deus, pela impotência de sua Lei de justiça ou que Ele pudesse ser vencido pe­la prepotência ou pela astúcia da criatura.


* * *

A pior moral é a de não acreditar no que se pre­ga e, consequentemente, não o praticar. Com isto se engana a Deus, incorrendo-se em culpa, e a nós mes­mos acarretando prejuízo. A hipocrisia é a pior conclusão de todas as morais. Então os mestres ensinam e os discípulos ouvem, mas na realidade tudo se faz por outras razões. Pode formar-se um acordo tácito, porque de ambas as partes se sabe que a vida é outra coisa. Os primeiros partem o pão da verdade, os segundos o aceitam segundo as regras estabelecidas, e tudo fica na mesma. Respeita-se a tradição, acredita-se no que se deve, cumprem-se as práticas regulamentares A Que mais pode exigir-se? Todos sa­bem por experiência própria que a vida, na reali­dade, é bem diferente da teoria que se prega, e, na prática, domina outra verdade, pela qual não é o me­lhor, e sim o mais forte que vence. E desta verdade não se fala, porque é muito mais honroso aparentar-se um ser superior, cheio de qualidades nobres. Assim os ideais na terra podem oferecer uma utilida­de na prática. Podem conciliar-se as duas exigências opostas, ou seja, salvar o espírito, continuando a pra­ticar a outra lei do mundo.


A culpa não cabe toda aos dirigentes. Sendo a minoria, tiveram que adaptar-se à maioria, que representa o maior impulso. A maioria suporta de má vonta­de os moralistas, procurando expulsá-los, e não os su­portaria de modo algum se eles quisessem agir de ver­dade. Durante séculos realizou-se, assim, a seleção dos que perturbam menos, por terem achado a fórmula da convivência, resolvendo o difícil problema por meio de acomodações. Nem isto constitui toda a cul­pa. Se pode parecer traição de princípios, este é o único modo que torna possível certa dose percentual de sua aplicação, que em sua totalidade seria impos­sível num mundo assim. Desta forma, uma parte da conduta humana está entregue à hipocrisia. Mas que fazer, se a realidade da vida na terra está nos antí­podas dos ideais?


As próprias religiões partem do princípio de que o mundo é composto de pecadores. As leis civis tam­bém partem do pressuposto de desonestidade do ci­dadão, e ao lado de cada norma colocam de imediato o castigo pelo não-cumprimento. O ponto de partida é sempre a presunção de que se trata de um rebelde, cuja vontade de desobediência é admiti­da implicitamente e presumida a priori. Tudo isto é a conseqüência lógica da lei que vigora no plano biológico humano, lei de luta de todos contra todos, baseado no ataque e na defesa. Se existem essas pre­sunções, porque a maioria dos indivíduos é feita efetivamente de pecadores e de cidadãos que gostariam de não obedecer. Eles são, portanto, proporcionais a tal pressuposto e relativo tratamento, são adequa­dos a tal mundo e selecionados na arte de defender-se, o que é indispensável à sua sobrevivência. Pro­va-o o fato de que estes, se não são como se presu­me que sejam — isto é, se são verdadeiramente bons e honestos — são rapidamente liquidados na realida­de. Quaisquer que sejam os princípios teoricamente proclamados, a lei vigorante, de fato, é a da luta, do ataque e da defesa, pela qual a reação do indivíduo contra qualquer autoridade pode explicar-se com o instinto, como legítima defesa, provocada pelo fato de que, quem tem em mãos o poder, costuma usá-lo pa­ra vantagem própria ou da classe, e não como uma função social para o bem de todos. Jamais se poderá impedir que a vida reaja em defesa própria, ao sen­tir-se atacada em qualquer ser. Reaparece aqui o conceito já desenvolvido, da reciprocidade das po­sições entre autoridade e dependentes, que não po­dem deixar de influenciar-se mutuamente; e o concei­to de que não se podem alegar direitos, se antes não se cumpriram todos os deveres próprios, em relação àqueles de quem se reclama. Mas se esta é a nova moral, a atual move-se ainda num terreno de luta. Então as condenadas acomodações, que escandali­zam porque propiciam o não-cumprimento dos deve­res, podem aparecer-nos sob uma luz diferente, e se­rem justificados diante da sabedoria da vida que as permite. Isto aconteceria, de fato, porque elas cum­prem biologicamente uma função útil, isto é, a de tor­nar possível uma convivência relativamente pacífica num ambiente de lutas, o que é utilíssimo para dar tempo a que o novo seja assimilado e a que a evo­lução possa amadurecer, para subir mais um pouco


Contra todas as morais, persiste o fato de que a vida humana é um contínuo estado de guerra. Esta é o estado normal, ao passo que o de paz é constituí­do de intervalos, necessários para preparar outra guerra. O que mais liga os homens pela amizade, a força de amor que mais os une, é o ódio contra um inimigo comum. Então os inimigos se abraçam, mas só para que unidos possam vencer o outro. Se a men­tira floresce, é porque na guerra ela é útil. Pode con­vir mostrar-se bons, porque assim se atrai a estima e a confiança e, com a veste do cordeiro, pode melhor desarmar-se o próximo e obter-se mais. As virtudes podem tornar-se ótima astúcia de guerra, para enga­nar e assim vencer o inimigo. Desse estado não nas­ce uma ética única que irmana e une, mas uma éti­ca de agressão e uma de defesa, conforme se perten­ça à classe dos deserdados ou à dos já poderosos. Cada um forja para si a própria moral, segundo seus interesses e posição social, e muda essa moral ao mudar sua posição. Há a moral dos vencedores e a dos vencidos, a moral dos ricos e a dos pobres. Mas quando estes se tornam ricos, e penetram nas altas classes sociais, assumem a psicologia delas, os cos­tumes e a ética respectiva.


Esta luta se desenrola sub-reptícia, escondida sob as aparências obrigatórias de paz e amor, é a substância da vida humana na terra. A moral, em sentido lato, torna-se um meio para enganar os sim­ples que acreditam nas aparências. Infelizmente, da­do que no plano humano a vida tende à seleção do mais forte e astuto, isto não poderá terminar enquan­to o biótipo do ingênuo não for eliminado. Se psicologicamente ele é um fraco, que pode fazer a vida — segundo a lógica da lei vigente no nível terreno — senão procurar liquidar esse biótipo, se ele não souber evoluir conquistando inteligência? Aqui estamos ainda nos primeiros degraus desta, e tudo con­siste em astúcias de guerra. No entanto é necessá­rio percorrê-los, para chegar aos superiores, nos quais se compreenderá a estupidez da guerra e de suas astúcias. Entretanto, enquanto os ingênuos não apren­derem, nada mais lhe resta senão servir de pedestal aos astutos que sabem emergir, escapando às san­ções das leis humanas, que ficam reservadas aos simples que não sabem defender-se. Isto é injusto e horrível. Mas, dados os princípios segundo os quais funciona a vida no plano animal-humano, não pode­mos ter resultados diferentes.


Não pode negar-se que seja bela a moral que o mundo apresenta na vitrine. Em teoria tudo é excelente. Mas seria mister que ela conseguisse fazer o homem subir a um plano superior de vida, onde essa teoria se tornasse prática. Resta a realidade biológica, pela qual o homem vive num nível que não satisfaz o seu ideal. Então, num ambiente de luta, é na­tural que os princípios superiores fiquem torcidos e invertidos, se tudo, ou quase, existe nesse ambiente em função da luta. Fala-se muito de bens espirituais, mas o que vale na terra são os bens materiais, tanto que, para ser compreendido o valor espiritual do homem superior, é necessário que ele seja demonstra­do exteriormente pela riqueza de um monumento ou de um templo, se ele morreu, ou de alta posição so­cial, se está vivo. Se Cristo aparecesse hoje na terra, sem nenhum apanágio terreno, talvez ninguém o per­cebesse. O homem comum carece de um sentido próprio para julgar as coisas superiores e só adquire por imitação o julgamento que o mandam repetir e que circula pela maioria.


Encerremos este assunto com uma anedota signi­ficativa, que resume vários conceitos já expostos. Um missionário que se achava na África, para civilizar os selvagens, explicara com cuidado a um grupo deles o sentido do bem e do mal, para fazer nascer neles o senso moral, base do cristianismo. Para assegurar-se de que havia ensinado bem e que tinha sido compreendido, tomou à parte um dos mais inteligentes e perguntou-lhe: "diga-me então o que é o bem e o mal".


O selvagem pensou algum tempo, e depois for­mulou claramente a sua resposta: "mal é quando o vizinho rouba a minha vaca". O missionário apro­vou. Sem dúvida, roubar é mal, e o ato é moralmen­te reprovável. E acrescentou: "E o bem, que é?" O selvagem respondeu muito depressa, convictamente: "Bem é quando eu consigo roubar a vaca do meu vizinho".


Que vergonha diz, a essa resposta, o homem ci­vilizado, que certamente não teria respondido assim, porque conhece o conceito de bem e de mal. Mas, por que o civilizado não a teria dado? Certamente não seria porque não estivesse convencido de que o selva­gem, do ponto de vista individual, tivesse perfeitamen­te razão. O africano respondeu assim porque era um simples e falava com a ingenuidade do primitivo, que ainda não sabe esconder o próprio pensamento. En­tão a diferença está apenas no fato de que o homem civilizado — que bem gostaria de fazer como o sel­vagem — já aprendeu a não dizer o que lhe atrairia as sanções da lei e a condenação do próximo. A di­ferença não está no fato que o civilizado pense diver­samente do selvagem — tanto que o imitaria de boa-vontade — se o próximo lesado, organizado em so­ciedade, não o fizesse pagar por isso, anulando a indiscutível vantagem dessa ação.


O utilitarista, mais refinado, compreendeu que e muito mais fácil buscar o próprio interesse sem dizê-lo, isto é, sem descobrir os próprios planos, revelan­do a sua estratégia de guerra. Então, a habilidade pode consistir em esconder, e a virtude em falsear, ao invés de dizer a verdade. Nesse caso, a culpa do selvagem seria a sua ingenuidade, que o civilizado não lhe perdoaria porque não a possui, já que se está mais pronto a condenar as culpas que não se tem, do que as que se tem. Estamos num ambiente de lu­ta e não pode impedir-se que tudo exista em função desta. É natural que os ideais também sejam utiliza­dos para esse fim, sendo transformados num manto de hipocrisia, para melhor enganar o próximo. Se esta está tão espalhada na terra, deve haver uma razão; é que nesse plano de vida, ela pode ser van­tajosa, ao passo que, nos planos mais evoluídos ela não é praticada porque é contraproducente. Assim, na terra, a sinceridade pode ser julgada ingenuidade de tolo, inábil para a luta. Acontece, pois, que na prática, a culpa que mais se condena não é a menti­ra, mas o fato de ser tão tolo que se deixe descobrir a mentira; não é não ter defeitos, mas o não saber escondê-los, mostrando assim o ponto vulnerável on­de se pode ser derrotado. Pelo involuído plano bioló­gico em que isto ocorre, não se trata de maldade, mas de afloramentos do subconsciente animal na luta pa­ra sobreviver.


Acha-se o homem numa fase de transição entre a animalidade e a espiritualidade. É natural que, em seu mundo, a teoria que se prega da moral, da bon­dade e justiça, se ache em contraste com a prática, da moral de força e astúcia. Com efeito, o que mais se pune é o erro de deixar-se apanhar em erro. As leis humanas não punem quem seja tão hábil que não se deixe apanhar. A verdadeira justiça é só aquela da qual não se pode fugir, como a justiça de Deus. A humana é uma luta entre legislador e réu, entre acusador e acusado, entre juiz e julgado e ao contrário, na qual vence o mais forte e o mais hábil. Na prática, o maior valor do indivíduo não consiste naquilo que é proclamado em teoria, ou seja, em obedecer à lei, mas na habilidade de saber escapar dela. Lógico que num ambiente de luta, onde reina o culto da força, seja fraqueza obedecer, e valor o rebelar-se.


Como pode uma moral ideal, feita para um mun­do orgânico de ordem, ao qual ela quer levar o nosso mundo humano por meio da evolução, não ser inver­tida neste, que é um mundo caótico, feito de competições? Em nosso ambiente humano, como no caso do selvagem acima narrado, o bem e o mal são conce­bidos apenas em função do próprio eu, ignorando o próximo (o bem é a utilidade própria, o mal o prejuí­zo próprio); ao passo que no plano superior ao qual pertence a moral oficial, o bem e o mal são concebidos em função de toda a coletividade, levando-se em conta o próximo (mesmo o bem alheio é utilidade própria, e o prejuízo alheio é um prejuízo próprio). Também o desenvolvimento mental, nos dois planos ocorre em sentido diverso. Em nosso mundo a inteligência mais apreciada é a que dá fruto imediato na luta, a que serve para. vencer, e não a especulativa, que procura o conhecimento e leva à consciência da Lei. Quem a possui é considerado em geral um ho­mem que vive nas nuvens, um simples que não co­nhece a realidade prática da vida. Esta exige astú­cias para resolver os problemas imediatos e não sa­bedoria que resolva problemas altos e distantes, sa­bedoria que não oferece nenhuma utilidade imedia­ta para a defesa da vida.


O estudo de u'a moral positiva, racionalmente demonstrada, presa aos princípios da vida, não po­dia deixar de revelar-nos também esses seus lados negativos. Tínhamos que analisá-los imparcialmen­te, para compreender a realidade em toda a sua am­plitude. Fizemo-lo para explicar o nosso mundo e compreendê-lo em muitos de seus aspectos, não pa­ra condenar, o que é inútil, já que não modifica nada e não é útil a ninguém, gerando apenas reações. A condenação está em nossas dores. Neste livro, ao invés dos problemas altos e distantes que tratamos nos outros, nós estudamos a realidade de nosso mun­do, tal qual é. Não devemos escandalizar-nos com essa realidade, que tem suas razões biológicas de existir sob essa forma. Cobrir tudo com belas apa­rências é o que menos serve para curar o mal. Ter visto claro, quer as razões pelas quais tudo isto exis­te, quer a grande vantagem de melhorar-nos, pode ser um meio de levar-nos ao bem. Os fatos são fatos. Não podem ser mudados mesmo se forem escondidos, nem pode impedir-se que produzam os seus efeitos.


Não é esta hora de sentar-nos à beira da estra­da, dando-nos como vencidos. Certamente a salva­ção está nas mãos de Deus, mas o homem deve contribuir com todo o esforço para a sua salvação. Não devemos concluir com o desencorajamento e o pessimismo. Assim como o presente superou o pas­sado, que era pior, assim como um futuro melhor su­perará o presente. Vimos que ninguém jamais pode­rá deter a grande marcha ascensional da evolução, dirigida aos objetivos supremos. Onde tudo evolui, também a moral não pode deixar de evoluir. E assim que um dia teremos de chegar à realização vivida da ética ideal, que hoje, na terra, luta para levar o ho­mem a um plano superior de vida, em que triunfará a nova civilização do espírito.


Transcrito do livro "Evolução e Evangelho" - por Pietro Ubaldi.