segunda-feira, 18 de março de 2019

O Problema da moral


Caríssimos irmãos,


As dúvidas que um dia nos visitam :


-  De onde viemos ?

-  Para onde estamos caminhando ?

-  Por que necessitamos de evoluir ?

-  Por que Deus não nos criou perfeitos ?



           A cada passo do avanço das ciências mais vamos nos convencendo que a vida no planeta não é obra do acaso.  Nem mesmo a posição do planeta dentro do sistema solar, já que se fosse mais  próximo do sol ou mais afastado, a vida tal qual a conhecemos não estaria acontecendo.


           A palavra chave é "EVOLUÇÃO".


           Deixando de lado comentar sobre a evolução tecnológica, trago para leitura  e reflexão dois capítulos do

livro "Evolução e Evangelho", escrito por Pietro Ubaldi na segunda metade do século 20. Boa leitura!



VIII

O PROBLEMA DA MORAL


A moral biológica positiva. Convicção e não terror. Andar a favor, e não contra a vi­da. Moral positiva de construção. Se surge um conflito entre a ética e a vida, é esta que vence. Moral mais livre, mas conscien­te e responsável. Moral é tudo o que faz evo­luir para Deus, e ao contrário Utilitarismo superior. Definição de moral. Na evolução, ela é relativa. Conceito de ética progressiva, em várias dimensões. Respeitar os direitos da vida. Suas três exigências fundamentais, os três maiores instintos humanos e as obri­gações da ética. A atual é moral de guerra, não de justiça.  Garantir: 


1) A conservação do indivíduo (bens e propriedades);
2) a con­servação da espécie (amor e família);
3) a evolução (defesa do evoluído).
 A dor é desarmonia. Renúncia e castidade. As virtudes positivas. Triste sorte do gênio.




Referimo-nos, no capitulo precedente, a uma moral biológica positiva, racionalmente demonstrada, baseada nos princípios que regem a vida, e prome­temos que delinearíamos o seu conteúdo. Podemos agora, ao concluir o presente volume, desenvolver este assunto.

As normas da ética tiveram, no passado, a função de disciplinar a vida do homem, refreando-lhe e guiando-lhe os instintos animais, para que adquirisse outros mais evoluídos. Essa moral, dirigida ao grande objetivo de refazer o homem, melhorando-o, foi por ele aplicada, porém, segundo a sua forma mental e instinto dominante, ou seja, com espírito de ataque e defesa, que corresponde a lei de seu plano animal, a da luta pela seleção do mais forte. Como conseqüência, a execução das normas dessa moral é confiada, em grande parte, ao terror de sanções puniti­vas, ao cálculo do pr6prio prejuízo, o que introduz, no seu utilitarismo criador, próprio da vida, um elemen­to negativo, tendente a invertê-lo, dando-lhe um aspecto de agressão e destruição.


A nova moral, ao contrário, é concebida não contra, mas em função da vida. Sempre e totalmente positiva e construtiva, jamais e em coisa alguma negativa, destrutiva ou agressiva, pois, mesmo visando ao bem, jamais poderá posicionar-se contra as leis da vida. Trata-se de uma moral mais evoluída, que não destrói, mas respeita toda a moral precedente e atual, e que justamente, por ser mais evoluída, não pode deixar de perder alguns de seus caracteres negati­vos, feitos de luta e imposição, os quais são necessários nos planos inferiores de vida porque se destinam a conquistar, a partir daí, outros planos positivos, fei­tos de amor e compreensão, possíveis apenas nos níveis mais elevados da existência. Tudo o que evolui,  e também a moral não pode deixar de evoluir, pro­cedendo do anti-sistema ao sistema, — tem de perder cada vez mais os caracteres do primeiro, para substi­tuí-los pelos do segundo. Feita para um ser mais evoluído, a nova moral, perderá os opressores e anti-vitais atributos de culpa, pecado, condenação, que signifi­cam esmagamento, e a vitória do mal infligido pelo mais forte com sua sanção punitiva, para basear-se, não na coação pelo medo do prejuízo, mas pela convicção de ir ao encontro da vantagem própria. É um reerguimento de posições, pelo qual se trabalha não mediante repulsão, mas por atração, sendo o móvel não a fuga de um mal que nos ameaça, mas a consciência da utilidade de obedecer às normas da éti­ca. Só se pode, porém, chegar a essa nova moral, quando a evolução tiver amadurecido bem o ho­mem, para que este novo modo de concebê-la possa ser usado sem prejuízo; ou seja, quando o homem tiver chegado a um tal desenvolvimento como inteligência e sensibilidade, que, para alcançar os objetivos educacionais que a moral se propõe, possa dis­pensar-se o chicote dos terrores infernais. Então bas­tará o fato de compreender que obedecer à Lei de Deus não está em contraste, mas concorda perfeita­mente com o nosso instinto de subir. Esse é o próprio instinto da vida, isto é, o de atingir a maior vantagem: utilitarismo que se justifica pelo fato de ser um meio para subir, avizinhando-se, assim, cada vez mais da realização dos supremos fins da evolução.


Deduz-se daí que, quando dizemos nova moral, não queremos com isso condenar e muito menos refazer a atual, mas apenas compreender sua razão de ser e suas funções, para usá-la cada vez mais com inteligência e bondade, como convém a um evoluído, e com cada vez menos inconsciente desafogo de ins­tintos, como tende a fazê-lo o involuído. Não se trata, aqui, de anular o passado, mas apenas de fazê-lo ascender a um plano mais alto, como o impõe a evolução. Como se vê, damos aqui à palavra mo­ral, o sentido amplo de norma ética, anteposta a to­dos os campos da conduta humana.


A qualidade da nova moral, pelo fato de ser mais evoluída, deve apoiar-se sempre mais nas forças positivas e construtivas, do que nas negativas e des­trutivas; deve funcionar mais por convicção de que a disciplina leva a uma vida melhor, do que pelo medo de que a desobediência leva a uma vida pior. No primeiro caso, seguem-se as normas aceitas por livre-adesão convicta e por amor; no segundo caso seguem-se as normas impostas à força, constrangendo pelo medo. A conseqüência a que leva a primeira atitude é o espontâneo e pacífico cumprimento da norma; a segunda leva, ao invés, a uma obediência coagida, contra a qual o ser luta, procurando todas as evasões, e aceitando-a à força, até que consiga rebelar-se. O fato de que, ao lado de cada norma se põe, em nosso mundo, sua sanção punitiva, demons­tra que esta é a fase em que ele atualmente está situado. Se é verdade que a moral coativa terrorística é uma necessidade para os tempos menos adianta­dos, já que não há outro meio para induzir o involuído a obedecer, e assim melhorar, é também verdade que esse método se torna supérfluo e até contraproducente, logo que o homem se civiliza. Contraproducente, porque feito de luta e cheio de atritos; porque, embora seja para fazer subir a vida à espiritualidade, se tenta matá-la em sua animalidade, excitando-se assim as suas reações, já que se põe em ação o espírito de agressividade, que atrai para baixo (zona a que per­tence), em vez de conduzir para o Alto.


A nova moral é precisamente a do Evangelho e a novidade consiste em levá-lo a sério e começar a vivê-lo. É superlativamente positivo e opera pelo caminho do Amor. Representa ele a moral do futuro, a do evoluído. Corresponderá às exigências dos tem­pos novos, mais amadurecidos, que o compreenderão e praticarão. Então a nova moral, sem destruir a velha, a levará a um nível mais alto, mais livre, mais criador, em que será demonstrada a lógica e a utili­dade de obedecer. Não haverá mais em primeiro plano, como sendo a coisa mais importante, o traba­lho de matar, no homem, o animal. Esse trabalho sozinho produz apenas um cadáver e só este permane­cerá se não tivermos feito ao mesmo tempo, ressus­citar o anjo. O objetivo da evolução é subir, e o que mais importa é construir o novo. Destruir o velho não tem valor, em si mesmo, mas apenas porque serve para deslocar-nos para mais altos níveis de vida. O objetivo de tudo é subir, e tudo só se justifica se leva à realização do supremo telefinalismo da vida, que é a sua espiritualização. Tudo o que é destruição anti-vital pertence aos poderes negativos do mal, ao pas­so que tudo o que representa construção vital pertence aos poderes positivos do bem.


Distingue-se a nova moral da velha por haver superado a necessidade de usar impulsos negativos opressores anti-vitais. Não ha razão para que deva ser tão penoso e esforçado o viver espiritualmente, e se procure fugir dele, por considerar tão agradável e de­sejável viver bestialmente. Basta evoluir um pouco pa­ra conseguir compreender que é justamente o contrário. Basta civilizar-se um pouco para sentir náuseas das satisfações que formam a alegria de quem vive no plano animal. Aqui não condenamos a moral da revelação mosaica, em que as religiões se asseme­lham. Mas achamos que será inadequado aos novos tempos o método de coação forçada, com a qual foi necessário aplicar aquela moral à dura cerviz e aos instintos de agressão e revolta do antigo povo hebreu, assim como do feroz homem medieval, nosso próximo progenitor. Não são os princípios da velha ética que mudarão, mas o espírito com que ela foi entendida e ainda é aplicada. Isto nos levaria a crer que não se pode alcançar a evolução senão através da sufocação da vida. Mas por que a virtude deve consistir apenas no sofrimento, do qual fugimos instintivamente, e não na alegria? Por que a vida espi­ritual deve ser concebida só como renúncia, e não como conquista, só como destruição e não como cons­trução? Porque deve ser só morte e não ressurreição? Como pode admitir que a vida goze com a morte e não se rebele contra a sufocação? No entanto, se não quisermos que se rebele, não é morte que se lhe de­ve oferecer, mas uma vida melhor e maior, e então todos a procurarão.


O estado involuído do homem fez com que até hoje as religiões entendessem a subida moral como ação negativa de destruição da animalidade, ao in­vés de ação positiva, construtora de espiritualidade. O progresso deve afastar-nos da primeira forma, pa­ra aproximar-nos da segunda. O progresso neste ter­reno reside em compreender que é lógico e justo que a vida resista e se rebele contra os assaltos que procuram diminuí-la. Assim se encontra a origem da luta, tanto mais que estamos num plano em que esta é a lei da vida, lei que vemos aparecer também no campo da ética. Acontece então que a própria ética por si mesma se torna um instrumento daquela luta, em defesa dos direitos adquiridos com a força do ven­cedor: ética não de justiça, imparcial, mas em defe­sa de interesses de classe, o que excita os deserda­dos a rebelar-se, como na Revolução Francesa. Não se pode deter o impulso da lei biológica, que quer sempre a luta da vida em todos, para sobreviver.


Já nos referimos em vários lugares no curso do presente volume a estes conceitos, orientando-os diversamente em relação a outros problemas. Quise­mos aqui retomá-los, coordenando-os dentro do tema da ética, que agora desenvolvemos. Onde tudo evolui, também a moral não pode deixar de evoluir. Significa isto tornar-se mais luz de conhecimento e menos trevas de ignorância, mais paraíso e menos inferno, mais triunfo que sufocação da vida, mais Amor que terror, mais inteligente e livre aceitação que coação forçada. Com a ascensão, tudo tende a libertar-se da ignorância, da imposição escravizadora, do terror de ameaças de um inimigo desconhecido. Torna-se tudo mais límpido, livre, convicto. Compreende-se então, cada vez mais, que Deus é um amigo nosso e que é nosso interesse obedecer a Sua Lei. Ele nos governa para nosso bem e não para im­por-nos, como senhor, uma vontade Sua egoísta. Esta última é a forma mental humana que o homem, possuindo-a e não sabendo dela fugir aplicou a tudo, inclusive ao comportamento de Deus, não conseguin­do imaginar outra diferente da sua própria. Mas lo­go que a sua inteligência se abre um pouco, muda completamente o modo de conceber a vida, e eis que aparece a nova moral que, embora ditando as mes­mas normas, o faz à base de um princípio totalmente diverso, que não é o da egoística imposição de um senhor a um escravo, mas a de um Pai bom que não exige obediência por si, mas só porque esta representa o bem de seus filhos. A maior altura evolutiva alcançada pela nova moral consiste no fato de que ne­la desaparece o atrito da luta e o conflito entre o imperativo ético e a utilidade do indivíduo: utilidade verdadeira, entendida não no sentido do gozo imediato, o que mais se procura e ao contrário pode constituir um prejuízo, mas utilidade compreendida no sentido de real e permanente vantagem, não ilu­sória como as coisas terrenas.


* * *

Chega-se assim a delinear as características fundamentais desta moral. Atingido o conceito desse utilitarismo superior, poderemos então, dizer que é moral tudo o que leva a alcança-lo, e imoral tudo o que dele se afasta. Trata-se, pois, de uma moral utilitária não no sentido pequeno, egoísta e desagregan­te em que é geralmente compreendido o utilitarismo, mas em sentido superiormente afirmativo, verdadei­ramente vantajoso em plena lógica, que caminha pa­ra a vida, obra de Deus, e não contra ela. Podemos, então, definir como moral tudo o que é útil à vida, sa­bendo que nada é tão vantajoso quanto o espiritualizar-se, que a leva ao fim supremo: Deus.


Encontramos então o princípio diretivo fundamental que nos permite reconhecer o que é moral e imoral, no mais amplo sentido de ético e anti-ético. Ja­mais, provocar conflito entre moral e vida. No plano biológico humano, onde costuma nascer esse conflito, acontece que, na prática, é a vida (ninguém pode torcer) que vence e a lei ética perde, ficando como teoria não aplicada, e em substância, uma for­ma de hipocrisia. Dado que a evolução traz harmo­nização, no plano de vida em que funciona a nova moral, deve desaparecer todo traço de luta.


Foi suficientemente demonstrado nos nossos volumes anteriores qual é o conteúdo desta maior utilidade. A nova moral é uma moral mais evoluída, adaptada a uma humanidade mais civilizada, moral que presume já estar realizado em grande parte o baixo trabalho de superar, no homem, o animal, pa­ra poder dedicar-se sobretudo ao de construir o anjo. Com o progresso da evolução começa-se a chegar aos planos superiores, onde a atividade construtiva deve assumir formas diversas, aptas a alcançar fina­lidades diferentes. Trata-se de uma moral cada vez mais de substância, e cada vez menos de forma; sempre mais sentida e menos imposta; mais livre e espontânea e menos constrangida, à força de sanções; baseada na aceitação pacífica, e não na luta que procura todos os meios de evasão. A penalidade para cada violação reside, então, nas inevitáveis conseqüências das causas que cada um estabelece como quer, com a própria conduta. Nesse plano de vida, o ser conhece a Lei e sabe que essas conseqüências são fatais reações daquela Lei, de acordo com a jus­tiça de Deus, reação lógica e merecida, à qual não se pode escapar; e é ignorância pueril tentá-lo, como se costuma na terra, com as astúcias humanas.


Eis uma moral que, ao involuído, parece mais livre, mas em que o ser é obrigado à obediência e mantido na ordem, por uma força mais sutil, porém mais poderosa que a prepotência humana, ou seja, pela persuasão. Mas só se pode chegar à persuasão por meio da inteligência que atinge a consciência da Lei. O homem atual, porém, geralmente, não possui essa forma de inteligência e nenhuma consciência da ordem que regula o universo. Assim, a cada passo, ele comete o erro de rebelar-se contra essa ordem, acar­retando, depois, duras conseqüências. Para poder tirar desse tipo biológico algo de bom a fim de fazê-lo evoluir, é necessária a atual moral armada, carregada de castigos e ameaças, porque se nem estas hoje são suficientes, ele zombaria integralmente de uma moral desarmada, que pedisse obediência só por convicção e por amor.


Formalmente, a nova moral é muito mais livre, embora o seja muito menos na substância. A norma e a obediência aprofundam-se cada vez mais quan­do se progride, procedendo do exterior para o interior . Tudo se desmaterializa com o avançar da evolução, espiritualizando-se em potência, e, ganhando ao mesmo tempo em amplitude de concepção. O ser liberta-se da opressão de uma mecânica regulamen­tar, miúda, pedante, necessária para o involuído nos planos inferiores de vida. Mas a Lei, logo que o liberta, o retoma sob seu poder numa forma mais alta, tornando-o mais livre, porém mais responsável, ago­ra que pode fazê-lo, porque ele se tornou mais cons­ciente.


A nova moral pode dizer o que seria absurdo enunciar no plano do involuído, porque aí geraria completa anarquia. Como cada povo tem os chefes que merece, assim cada tipo biológico esta preso à lei que merece e lhe esta proporcionada. Quanto mais involuído é o ser, mais a Lei se lhe manifesta dura e inflexível, porque é melhor para ele que seja assim, e porque esta é a única forma que a sua inferioridade lhe permite ver. Ao contrário, quanto mais evoluído é o ser, mais a Lei se manifesta benévola e livre, porque, ja que ele não abusa, isto não o prejudica, e porque esta é a forma pela qual o olhar mais agudo de quem esta mais adiantado a vê. Eis que a nova moral pode dizer: pode fazer-se tudo, desde que seja honestamente feito. Mas, que quer dizer hones­tamente? Honestamente significa: sem que o resultado seja prejuízo, isto é, mal em todos os sentidos, nem para si nem para outros. Podemos então definir o conceito de culpa ou pecado, como tudo o que traz prejuízo, ou mal, em qualquer sentido, a si ou a outros. Como se vê, trata-se de um sistema não opressivo, mas livre e utilitário, fato que o torna menos penoso e mais facilmente aceitável. Vemos também que a norma, subindo, se torna sempre mais simples e sintética.


Mas perguntamos: em que, exatamente, consiste esse prejuízo que se deve evitar? Se, como explicamos, o objetivo da vida é evoluir, a tarefa da moral é dirigir, com normas oportunas, a conduta humana para a realização desse objetivo. Segue-se daí que o conceito de moralidade coincide com o de subida evolutiva, e o conceito de imoralidade com o de des­cida involutiva. E paralelamente o conceito de bem e de vantagem correspondem ao de evolução, por meio da qual são obtidos, e o conceito de mal e pre­juízo correspondem ao de involução, aos quais ela leva.


A norma supracitada poderá então repetir-se: tudo pode fazer-se, desde que seja honestamente feito, sem que provenha mal ou prejuízo nem para si nem para outrem, sem que leve ninguém a descida involutiva. Então a escala que mede o valor da nossa obra coincide com a escala da evolução, e nela temos três posições possíveis:
1) uma positiva, em ascensão, que leva ao bem, a nossa utilidade, e que constitui a moral;
 2) uma negativa, em descida, que leva ao mal, ao nosso prejuízo, e que contém a anti-moral;
 3) uma neutra, estacionaria, que não sobe nem desce, não leva ao bem nem ao mal, nem à nossa vantagem nem a nosso dano, uma zona de atos indiferen­tes, sem valor, nem moral nem imoral, sem importân­cia diante da evolução, uma zona que contém o amoral; deter-se nela significa apenas perder tempo.


Eis que assim, sem códigos, regulamentos, juizes nem sanções humanas, com um princípio simplicíssimo, podemos autodirigir-nos. Saberemos então que fazer tudo o que nos leve a Deus é moral, virtude e um dever. Ao contrario, fazer qualquer coisa que nos afaste de Deus é imoral e, constituindo culpa nossa, temos o dever de não fazê-lo. Este principio ainda mais sinteticamente pode exprimir-se com aquela fór­mula única e liberal, que um santo seguiu: “ama a Deus, e faze tudo o que queres”.

Esse princípio é susceptível de muitas explicações e pode exprimir-se de muitas formas. Moral é o nosso bem, a nossa utilidade, ou seja, tudo o que vai para Deus. Imoral é o nosso mal, o nosso prejuízo, ou seja, tudo o que nos afasta de Deus. Bem é evoluir, subindo para o sistema; mal é involuir, descendo pa­ra o anti-sistema. Temos assim de um lado uma série de conceitos positivos, e de outro lado uma série de conceitos negativos. Subida, evolução, utilidade, bem, sistema, Deus, constituem o campo da moralidade. Descida, involução, prejuízo, mal, anti-sistema, Satanás, constituem o campo da anti-moral. Ao primeiro grupo de conceitos estão conexos os de vida, luz, consciência, felicidade etc. Ao segundo grupo estão conexos os de morte, trevas, ignorância, dor etc.


Assim, o problema ético é resolvido de forma ló­gica, simples e cabal. O instinto fundamental da vi­da e seu sadio utilitarismo não são negados nem su­focados. Logo que o ser torna bastante inteligente para chegar a compreender que se trata de seu pró­prio interesse, ele é levado, por esse fato, à adesão espontânea. Desaparece, dessa forma, automatica­mente, o regime terrorístico das sanções punitivas e todos os males a ele ligados. O mundo da ética re­cebe assim nova luz. Resumindo então: moral é tu­do o que é elevado: imoral, o contrario. O mesmo pensamento, o mesmo ato, podem assumir sentido e valor diferentes, conforme o plano de vida em que se realizam e pelo qual são julgados. Assim pode ser imoral para um evoluído, o que ao involuído pode parecer lícito; e a maior moralidade para o involuído é comportar-se como evoluído, ou seja, a besta com­portar-se como anjo e ao contrario; a maior imorali­dade é o anjo comportar-se como animal. Subindo aos planos superiores de vida, tudo se enobrece e purifica, espiritualizando-se. Mudam os critérios com que se julga; as palavras verdade, bondade, justiça assumem sentido diferente. E a natureza diferente do biótipo que tudo transforma e adapta ao próprio nível, e tudo realiza segundo as leis deste.


Damos aqui — como acima referimos — as palavras: moral e imoral, o amplo sentido de bem ou mal, de justo ou injusto, de lícito ou ilícito etc., e não o sentido restrito em que são usadas na linguagem comum. Podemos, assim, chegar a uma "definição de moral" dizendo que ela é: “o conjunto das normas de conduta que guiam o homem para atingir o maior objetivo da vida: encontrar Deus, subindo com a evo­lução o caminho que a Ele conduz todos os seres” O modelo da moral perfeita é dado, então, pela Lei que representa o pensamento de Deus, que dirige tudo. Desta perfeição ética o ser, ao progredir, con­quista varias aproximações sucessivas que consti­tuem as morais relativas em evolução, que são o patrimônio ético próprio a cada plano de existência. Falamos, pois, de uma moral de proporções cósmicas, que aparece em todas as dimensões e níveis evolutivos, moral que assume o amplíssimo sentido de norma, que guia a subida de qualquer forma de exis­tência para contínuas superações, até levar a subs­tância, do estado de anti-sistema, ao estado de siste­ma. Trata-se de uma moral universal, cujos princípios progressivamente se realizam através do trans­formismo do relativo, em varias alturas, — têm suas raízes e acham sua justificação no absoluto, — don­de parte e para onde volta o ciclo do ser. Dadas as dimensões cósmicas dessa moral, que abarca to­das as formas do ser, não podia deixar de aparecer nela o princípio do dualismo universal. Achamo-lo aqui sob a forma de: moral e imoral, que são os dois aspectos, o lado luz, positivo, e o lado sombra, nega­tivo, ou seja, o direito e o avesso do mesmo fenômeno que chamamos moral. Estende-se ela, assim, desde o anti-sistema, em que esta toda invertida, ou seja, imoral, até o sistema, em que se encontra toda positi­va, ou seja, moral.


Pelo fato disto ocorrer através de um processo de transformação evolutiva, a lei ética muda, de plano a plano, oferecendo-nos assim, de acordo com os di­versos níveis, uma série de morais relativas diferen­tes, que são aproximações diversas da mesma moral perfeita do evoluído. Desta forma podemos chegar não só ao conceito de uma variedade de morais su­cessivas, escalonadas em varias alturas da escala evolutiva, como também chegar a admitir a matura­ção de uma moral relativa em evolução; ou seja, não apenas uma moral (aparentemente) estática e defini­tiva para uso da forma mental humana, como também uma moral progressiva muito mais vasta, que lhe garante um amanhã. Isto nos é confirmado pelo fato de que em cada coisa encontramos esse fenôme­no de relativismo que evolui. A própria verdade é para o ser, relativa e esta em evolução, proporcionada ao grau de consciência conquistada. É lógico, aliás, que a norma de conduta que deve guiar o ser em seu regresso a Deus, deva ser proporcionada à posição conquistada na subida evolutiva, e deva ser diferente, de acordo com a maior ou menor proximi­dade do ápice.


Pode chegar-se, assim, ao conceito de uma ética especial que não esta numa só dimensão, como a comum humana, mas de uma ética em tantas dimensões, quantas são as possíveis posições do ser, ao longo da escala evolutiva, uma ética que não diz respei­to apenas ao homem, mas a todas as formas de exis­tência, que vão dos movimentos atômicos ao espíri­to. Ética que, naturalmente, se manifesta de formas diversas nos vários planos: determinístico no da matéria, e por meio do livre arbítrio, no nível humano. O estudo da ética, compreendida em tão vasto sen­tido, deveria enfrentar o fenômeno de sua evolu­ção, ou seja, examinar os princípios normativos de todas as formas de existência, e o do transformar-se destes, uns nos outros. Chegar-se-ia desta maneira ao conceito de uma só ética ascendente que, mesmo transformando-se, permanece idêntica a si mesma, porque em cada ponto de seu transformismo, está sempre condicionada ao seu mesmo telefinalismo. Desse conceito deriva o do valor relativo de cada posição, incluindo a humana atual. Conclui, também, uma, confirmação de tudo o que foi aqui sustentado,

isto é, que, como a moral de hoje não é a de nossos avoengos selvagens, assim ela não poderá ser a de nossos descendentes mais civilizados.


Compreende-se que se deve conceber a moral em função da evolução. A que for seguida por determinado tipo biológico, será o melhor índice de sua natureza e grau de desenvolvimento. "Mostra-me como ages, e dir-te-ei quem és". Assim, na mesma humanidade acharemos vários níveis evolutivos e éticos, indivíduos de morais diferentes, na base das quais sentem e agem. Teremos a moral do evoluído e a do involuído, diferentes como o é o próprio tipo biológico. Assim os julgamentos sobre tudo e sobre todos, serão diferentes, de acordo com o plano evo­lutivo, a forma mental e a moral relativa do indivíduo que os formula, e não terão valor superior a esta sua relatividade. O mesmo metro único da ética estandardizada para uso prático, será assim diversamen­te interpretado e aplicado para cada um dos numerosos elementos que constituem a sociedade huma­na, numa rede de julgamentos, dos quais cada um, em sua relatividade, pretende ser absoluto e definiti­vo. Mas é óbvio que tudo isto tem valor relativo. O julgamento último, completo e perfeito, não pode sair desse relativo, só podendo provir de uma fonte que esta fora e acima de todos os seres, no absoluto, em Deus. Todos os demais julgamentos exprimem, em primeiro lugar, a pessoa que os profere seu tipo. sua evolução, sua posição na vida, seu interesse, sua forma mental etc. Assim por coisa alguma uma pessoa é tão bem julgada, quanto por seus próprios julgamentos. O único que pode julgar sem que por isso seja julgado, não pertence a este mundo, esta acima de todos os julgamentos, é o único verdadeiro juiz que julga a todos, juizes e julgados: o supremo juízo de Deus.

* * *

Observemos, agora, o problema ético mais de perto, em relação ao homem em nosso mundo atual. Nesse ambiente domina a lei da luta pela seleção do mais forte, impregnando a conduta humana e gerando uma ética relativa, ao menos na pratica, embora seja diferente a teoria. Segue-se que na terra o cam­po da moral não é nada pacífico. Ora, dissemos aci­ma que sua função é de guiar o homem ao cumprimento dos objetivos da vida, e que, portanto, não de­ve nascer conflito entre esta e a moral, ao negar satisfação as suas exigências sadias. Neste caso, deve esperar-se logicamente suas respectivas reações e, se quisermos ser justos, teremos de reconhecer que cons­tituem um direito seu pleno: o de viver. Tudo o que quer diminuir ou matar a vida, só pode provir das for­ças negativas, inimigas de Deus. Eis então que, quan­do nasce um conflito entre ética e vida, estas reações contra a ética formal geram o anti-ético, pelo qual o indivíduo é julgado culpado, por uma moral que cometeu a culpa maior de ter agredido a vida em seus direitos fundamentais. Nesse caso, dos dois, quem é o culpado? O moralista que não respeita os direitos da vida ou esta que se defende? Somente quando a essas exigências for dada legítima e suficiente satisfação, só então poderemos dizer que a culpa seja do indivíduo que desobedeceu. Só quando forem respeitadas por ambas às partes — sociedade que faz as leis e indivíduo que deve obedecer — as posições recíprocas de direitos e deveres, será justa a condenação do não-cumpridor. Mas enquanto a vida da sociedade humana se basear no egoísmo e na luta, as reações defensivas encontrarão justificativa, invertendo-se a moral em sua zona negativa cheia de abusos e males. No caso menos grave sobressairá a mentira tão difundida, o compromisso pela elasticidade da consciência e semelhantes formas híbridas de acomodação de que o mundo está cheio, e tudo isto somente será justificado pelo natural e inevitável efeito das condições em que a vida humana se acha agora. Neste caso, fingir seria um recurso usado pela vida como um lubrificante indispensável para permitir, com menor atrito, a coexistência pacífica dos egoísmos inimigos. Não há efeito sem causa e na economia da vida cada fato realiza sua função que o justifica. Só assim poderemos explicar porque a mentira é tão difundida no ambiente humano.


Mas precisemos, em suas particularidades, os elementos do problema. Explicamos em outros volumes que as exigências fundamentais da vida, são três:
 1) a conservação do indivíduo;
2) a conservação da es­pécie;
3) a evolução.

Essas exigências, que objetivamente se verificam na realidade, explicam-se como efeito dos princípios que regem a vida, mostram-nos seu funcionamento, sua razão de ser e seu telefinalismo, num quadro lógico completo. A vida impõe satisfação a essas suas três exigências, por meio de três fortíssimos instintos:

 1) a fome,
2) o amor,
3) a ânsia de melhorar.

A ética reserva-se a tarefa de disciplinar esses três instintos, para guia-los no cum­primento dessas três exigências. É por isso, pois, que se ocupa:

1) da aquisição e uso dos bens, propriedades, trabalho etc.;
2) das relações de sexo, formação da família, deveres dos pais e dos filhos etc.;
3) da tarefa de fazer evoluir, confiada a poucos indivíduos, embora o desejo de subir seja comum a todos. Quan­to aqueles raros indivíduos, a ética comum não os protegerá, porque eles se situam fora dela, no seio de seu mais alto plano de vida.


Esses três instintos representam os impulsos principais que movimentam o homem (mesmo que em redor deles girem outros menores, conexos com eles) todos visando a defesa da vida:

1) como indivíduo,

2)como espécie,

3) como evolução.

Não é o capricho do homem que os quer, mas a sabedoria da vida, com o meios para alcançar seus objetivos; portanto, fazem parte da Lei, do pensamento e da vontade de Deus, no plano humano. Qualquer ética poderá, pois e até devera disciplinar esses impulsos, a fim de que melhor alcancem seu objetivo, mas jamais poderá opor-se a eles, pois isto significaria opor-se a Lei, tal como ela quer manifestar-se nesse nível. Então a ética tem pleno direito de impor a disciplina de sua lei, mas deve cumprir também o dever sagrado de respeitar a vida nestas suas exigências fundamen­tais. Em outros termos, a sociedade, para poder exi­gir obediência a sua moral, deve antes permitir a qualquer um o mínimo indispensável para que sejam satisfeitas aquelas exigências da vida. Se esse míni­mo fosse negado, o responsável seria mais o que faz a lei do que quem a viola, porque aquele, e não este, é a maior causa do mal, tornando-se em primeiro lu­gar anti-moral.


Mas, desgraçadamente, dado o regime humano de luta, vigora mais uma moral repressiva, do que preventiva, mais "a posteriori" que "a priori", mais atenta a perseguir os efeitos que a eliminar as cau­sas Intervir só depois do fato consumado pode significar não apenas a culpa do violador, mas também a falta de sabedoria de quem, tendo o poder em mãos, não soube impedir que se formasse o mal, e aparece só depois que o prejuízo se verificou, acre­ditando cancela-lo com a repressão. Desta forma, não se cancela o mal, antes, é ele agravado, como o exemplo, que se acreditava salutar, dos patíbulos pú­blicos medievais, que habituava o povo espectador ao prazer, e não ao terror do delito. A moral do futu­ro será mais preventiva que repressiva; será mais uma ajuda para levantar, educando, que uma opres­são provocadora de revolta; ocupar-se-á antes de tudo, de criar condições de defesa em favor da vida, em vez de agredi-la. Só assim poder-se-á evitar que a vida, para atingir seus objetivos, seja obrigada a desviar-se por aqueles atalhos tortos e oblíquos que constituem o mal.


No mundo atual, infelizmente, o respeito a essas exigências fundamentais da vida não é obtido por um sentido de disciplina, que deriva da consciência da utilidade para todos, de um estado de ordem, mas é dado pela força que impõe esse respeito e pelo in­teresse egoísta que gera e movimenta essa força. Assim, o respeito a propriedade alheia, como a mu­lher do próximo, existe sobretudo porque há alguém que, no interesse próprio, sabe movimentar uma reação punitiva, logo que venha a faltar esse respeito. Explica-se desse modo porque a ética humana, no atual plano de evolução, só pode ser uma ética de luta, ou seja, à base de sanções. para fazer-se obede­cer forçosamente por parte de quem impõe, e, reciprocamente, a base de revoltas para não obedecer por parte de quem a deve suportar. Essa é a ética que vigora nos fatos; ou seja, não uma ética de paz, em que cada impulso vai por si ao seu lugar e segue espontaneamente o caminho exato, mas uma ética de guerra, decidida a sobrepujar de todos os lados os limites devidos, para usurpar É mais que puder em benefício próprio e a prejuízo alheio. Tarefa da evo­lução será de levar o homem desta ética de guerra, a base de luta (imposição de um lado e revolta do outro) a uma ética de justiça, a base de compreen­são (respeito das exigências da vida, de um lado, e obediência espontânea a ordem, do outro. Examine­mos o problema em cada um de seus três pontos.


1) Segundo a nova moral, para que a sociedade possa adjudicar-se o direito de impor respeito a propriedade dos que a obtiveram, da parte dos que a não obtiveram, deveria em primeiro lugar cumprir o dever de garantir a estes últimos um mínimo indispensável para viver: uma casa, alimentação, roupa, educação etc., embora exigindo o trabalho corres­pondente, se não se tratar de incapazes Enquan­to aos deserdados faltar esse mínimo indispensável, a vida, que não quer renunciar a si mesma, os im­pelirá a revolta contra a ordem social, seja com assal­tos organizados pelos partidos políticos, seja com o furto ilegal que viola a lei, ou com o furto legalmente realizado enganando a lei, como todos os delitos que ameaçam a propriedade e a vida. Nada disso deixa­rá de aparecer, todas as vezes que não for satisfeita a primeira das três exigências fundamentais da vida, ou seja, quando esta se sentir ameaçada na conser­vação do indivíduo. A fera assalta a presa quando necessita de alimento para viver. Na nova moral, a culpa para o indivíduo começa quando ele exige o supérfluo, o que esta além do indispensável para as necessidades da vida. Isto é confirmado pelo Evan­gelho, que diz que devemos dar o supérfluo aos po­bres. Então, ele não nos pertence, mas aqueles a quem falta o necessário, e não temos direito de pos­suir o que lhes cabe. Isto porque os bens não são um meio para satisfazer cobiça de poucos, mas um ins­trumento a serviço da vida de todos, para que ela possa levar todos a obtenção de seus objetivos. Assim, o supérfluo se torna cada vez mais anti-moral, quanto maior for, porque, aumentando, diminui a ne­cessidade de possuí-lo e cresce o dever de fazer dele bom uso, útil a vida e a seus fins.


Se esse princípio do Evangelho tivesse sido se­guido no passado, e se hoje ainda o fosse, não teria havido nem hoje surgiria a possibilidade de revoluções sociais. Com isto a vida tenta por sua conta, uma primeira aproximação de justiça econômica, colocando de tal forma as várias classes sociais, cada uma a seu turno, na posição privilegiada. Sistema nada perfeito, porque são necessárias desordens e extorsões, para que os bens passem das mãos de quem tem muito, as de quem tem pouco. Com o mesmo fito, a vida tende também ao desgaste interior dos favoritos. Ou seja, acontece que o bem-estar os en­fraquece e assim automaticamente os coloca em con­dições de inferioridade na luta pela vida. pelo que rapidamente perdem sua posição de vantagem. De­pois, o próprio fato de achar-se, só pelo nascimento, com uma riqueza já feita, não adquirida pelo próprio esforço, parece diminuir seu valor aos olhos de seu possuidor, de modo que, embora tivesse a força, ele se sente menos pronto que o normal, a lutar para não deixar que a riqueza lhe escape. Paralelamente acontece que, enquanto este se torna cada vez mais inábil a mantê-la, a necessidade estimula as forças e aguça a inteligência dos deserdados, que propor­cionalmente, se tornam cada vez mais espertos e audaciosos na luta de conquista. As duas tendências levam ao mesmo resultado, que é um deslocamento de classes, com uma distribuição diferente da rique­za. Isto prova que a vida tende por si ao equilíbrio, à justiça — neste caso uma eqüitativa distribuição eco­nômica — que é atingida por meio da instabilidade das posições. O homem gostaria, porém, da estabili­dade hereditária, que sustenta com leis, defesas e es­tacas de toda a espécie. Esta permaneceria, se fosse equilibrada, ou seja, de acordo com a justiça, como quer a Lei de Deus; permaneceria automaticamente sem os artificiais armamentos que a sustentam; e se eles não bastarem a sustentá-la, é porque esse siste­ma esta contra a Lei. Acontece então que a sagaci­dade humana não consegue paralisar essa tendên­cia a justiça, tendência que os mina por dentro e acaba fazendo-os ruir, como de fato se observa na história. Sistema penoso e doloroso, que se poderia evitar, aplicando o Evangelho, que elimina as causas. Mas o homem não atingiu ainda um grau de inteligência que lhe permita compreender isso. De­ve, pois, sofrer o prejuízo desse sistema, ja que mais não é possível obter-se no plano de evolução em que esta situado o homem.


No futuro estado organizado da humanidade, nada disso acontecera, porque terão sido eliminadas as causas. A sociedade será então dirigida por esta no­va moral, que, respeitando a propriedade, a destina cada vez menos ao fim individual egoísta, e cada vez mais, com espírito altruísta, a subordina aos fins de utilidade social. O primeiro a tirar vantagem desta que parece uma limitação, será o indivíduo, que, nu­ma sociedade orgânica, encontrara uma proteção que hoje lhe é desconhecida, porque tal sociedade lhe reconhecera e garantira o direito de viver, direito que antes o indivíduo só podia fazer valer no caso em que suas forças pudessem impor-se a todos os outros


2) O amor é uma função fundamental do ser, porque necessária para a conservação da espécie, e é meio indispensável para que os indivíduos possam reencarnar-se, voltando e tornando a voltar a terra, para fazer experiências e assim evoluir para os su­premos objetivos da vida. Se, como dissemos, é moral tudo o que leva a alcançar esses fins, também o amor é moral se dirigido a procriar, fazendo disto um meio para que esses objetivos sejam alcançados.
O amor não se detém apenas na procriação, mas implica que esta seja completada com a proteção e educação dos filhos, ajudando-os em tudo para que a experiência da vida produza neles evolução e se resolva em melho­ria espiritual. Quando, porém, por motivos fisiológi­cos a procriação não fosse possível, o amor pode ainda ser necessário como conforto, para manter a vida individual dos cônjuges, devendo eles, nesse caso, tender, embora no campo mais restrito de sua existência e do auxílio recíproco, a obtenção dos supramencionados fins da vida. Recordemos que o amor é a maior potência criadora, ao passo que o ódio repre­senta o poder destruidor. O amor deve ser apenas disciplinado para que se desenvolva de acordo com a Lei; guiado, para que se harmonize na ordem, como é sua função, para que nos leve para o Alto; não deve ser combatido nem destruído, porque se o destruirmos, destruiremos a vida. E quando ele não puder ser maternalmente criador de filhos, pode sê-lo espiri­tualmente, tornando-se fecundo de bondade e elevação.


Neste sentido, amar é moral, quando ocupa seu lugar justo na ordem da Lei, ou seja, quando é usa­do como meio para atingir os supremos objetivos da vida. Amar torna-se imoral quando não é função deles, fazendo da própria satisfação egoística o único fim, que se substitui ao da vida. O mal começa logo que se sai da disciplina da ordem, com o abuso, com excesso, com a busca do supérfluo, com a falta de respeito aos direitos alheios, sacrificados no altar do próprio egoísmo. Este representa uma força sepa­ratista e destrutiva do amor, que só pode ser altruísta, para dar e não para desfrutar, para harmonizar e fundir as almas, e não para dividi-las, sem preo­cupar-se das ruínas semeadas ao longo de seu ca­minho.


Então começa o erro, e dele somos logo adverti­dos, não em teoria, mas com fatos bem percebidos. Prova que erramos — a Lei com sua reação nos im­põe a dor. A ordem da Lei é alegria. Logo que se aproveite de uma alegria que esteja fora dos limites fixados por essa ordem, se entra na desordem, na anti-Lei. Verifica-se, então, fatalmente, a automática inversão da alegria que se torna dor. Entrega-se no terreno negativo, em que a saúde se torna enfermida­de, a paz se torna guerra, o amor gera o ódio. Também o alimento é útil e agradável. Experimentemos, porém, ao invés de ganhá-lo, roubá-lo ou comer demais, e inevitavelmente nos acharemos diante da reação da Lei que nos expulsa de sua alegria e nos lança fora, no terreno da anti-Lei, onde essa alegria se invertera em dor. É lógico e justo que assim aconteça, porque, se nós invertemos as posições nas cau­sas, como podem elas não aparecer invertidas tam­bém nos efeitos?


Insistimos neste ponto porque, no terreno da ética, ele é fundamental. A dor não é uma reação punitiva da Lei nem muito menos uma sanção vingativa por parte da Justiça Divina, porque a violamos. Pode até a dor definir-se como “um estado de desar­monia, motivado por termos querido, livremente, assumir uma posição de desordem em relação a ordem da lei”. A dor depende de uma posição errada que o homem assume. Inevitavelmente, logo que sai da harmonia da Lei, que é alegria, ele penetra na desarmonia da anti-Lei, que é dor. Esta é a campai­nha de alarme que, com notas bem claras, nos avisa que estamos fora da estrada, e que nos impele a re­tomar o caminho certo, a fim de livrar-nos dos sofri­mentos. É desta maneira que, mesmo respeitando nosso livre-arbítrio, a vida nos coage a buscarmos seus superiores objetivos.


Mesmo neste terreno do amor, a nova moral é moral de ordem, de paz, de respeito. Faz parte de ética de um plano superior ao atual humano, em que a vida não quer mais selecionar um ser egoísta, mais forte e astuto, vivendo só para si, dominador de tudo, mas o homem social, que aprendeu a coordenar-se com o estado orgânico futuro da humanidade, o ho­mem que não causa dano a ninguém, mas protege a vida, primeiramente em sua companheira e em seus filhos, tornando-se guia de sua elevação. A evolução levar-nos-á cada vez mais distantes dos tempos em que o macho roubava a mulher e o amor se realizava numa atmosfera de destruição e violência, forma mental viva ainda nos menos evoluídos, e que vemos reaparecer nos romances tão difundidos, em que o amor se torna crime e morte, ao invés de afeto e bondade. Mesmo neste campo, a moral atualmente vivi­da nos fatos é moral de guerra, em que o maior grau atingível na ordem é dado por aquela ordem que se obtém dentro do castelo fechado e armado da famí­lia, dirigida por um chefe que saiba defendê-la con­tra todas as outras. Mais não se pode conseguir num plano biológico em que tudo se realiza em função da luta que é sua lei. Toda a psicologia daí derivada, terá de ser superada pela evolução. A prepotência do homem, considerada hoje como valor, será ama­nhã julgada defeito, porque anti-social. Sua prova de força não consistira em submeter ao próprio egoís­mo um ser fraco, necessitado de proteção, como a mulher, mas em defendê-la, elevando-a ao estado de companheira e colaboradora na construção do edifí­cio da família e na obra da ascensão espiritual desta.


Antes de terminar este assunto, temos de ocupar-nos de uma classe a parte:

a dos que renunciam. A renúncia ao amor, isto é, a castidade, é moral ou anti-moral? Se, como acima dissemos, é moral tudo o que, no mais amplo sentido, é útil a vida, porque leva a obtenção de seus fins supremos, a renúncia só poderá ser moral se pudermos descobrir nela algum ele­mento que satisfaça a essas condições. À primeira vista, se a vida quer a procriação, como indispensável meio para evoluir, a renúncia que nega essa procriação parece imoral. E verdadeiramente, na renúncia existe algo de negativo, que se limita a dizer "não", e jamais uma afirmação positiva. Ora, dado que a moral faz parte da Lei, que é toda positiva e construtiva, dirigida ao ser, e jamais ao não-ser, a re­núncia pode ser julgada como imoral, se olhada segundo a lógica estreita do plano de vida animal


O problema agora é ver se a renúncia pode con­ter também um lado de afirmação positiva, que justifique e compense o seu negativismo, porque só assim a sua imoralidade poderá transformar-se em moralidade. Mas, se no plano animal a renúncia é simplesmente negativa, não é nesse plano que poderemos encontrar compensações e substituições Res­ta-nos então procurá-las em plano mais alto, no mun­do espiritual. Poderemos dizer, pois, que o negativis­mo da renúncia, imoral pela própria natureza, porque anti-vital, encontra plena justificação e se torna moral, quando esse negativismo seja neutralizado por uma conquista num plano mais alto, ou seja, no es­piritual. Tudo o que é destrutivo pertence as forças do mal. Mas o que é destrutivo, num plano, pode ser construtivo em outro; e cada destruição, que por natureza própria é negativa e portanto imoral, pode tor­nar-se meio de construção, transformando-se assim em positiva e moral. Então, uma mutilação de vida, que por sua natureza é imoral, pode ser moral quan­do, em outro sentido, é criadora e produz um acrésci­mo de vida. A renúncia é moral quando não vai con­tra a vida, mas, no sentido que agora expusemos, ca­minha para a vida.


Conclui-se de tudo isto que, se a renúncia não for condição de conquistas espirituais, se não for usada em função destas, ela perde sua razão de ser e per­manece injustificável. Isto porque destruir por des­truir sem reconstruir, é imoral, como o é tudo o que permanece estéril em relação aos supremos fins da vida. É por isso que todas as virtudes que se de­tém apenas em seu lado negativo, sem produzir ne­nhum fruto vital, que contraem o eu sem fazê-lo cres­cer nem desenvolvê-lo, em direção a Deus, como di­ta a lei da evolução, são, senão prejudiciais, pelo me­nos inúteis a vida: são mais imorais que morais. A verdadeira virtude não se afoga no paul do "não fa­zer", mas se dirige sempre a um "fazer", embora as vezes tenha de escolher o caminho inverso do "não fazer


Com isto não quisemos desvalorizar nem conde­nar a renúncia, mas apenas definir seu significado e valor, em função da Lei e dos supremos fins da vida. Esta tem de evoluir, e portanto não pode admitir nenhuma compressão, senão em vista de uma corres­pondente expansão; nenhuma renúncia ao amor material, senão como condição de uma conquista maior como amor espiritual. A castidade é útil quando ser­ve para criar um amor maior, e não quando serve para mata-lo, atrofiando na frieza e na indiferença os nobres impulsos do coração.


3) As exigências fundamentais da vida não se es­gotam apenas com a conservação, seja do indivíduo seja da espécie, mas consistem também numa tercei­ra, a evolução, sem a qual as duas primeiras não teriam nem objetivo. Tanto trabalho para conservar em pé a vida não pode explicar-se, de fato, como um fenômeno fechado que eternamente gira sobre si mesmo, sem desembocar numa finalidade que o justifique e um dia o resolva. E eis que, para dar-nos a chave de todo o jogo, aparece o conceito de evolução. A maioria, formada pelas grandes massas, e a que — movida pelos dois instintos da fome e do amor — está encarregada pela vida de prover o cumpri­mento das duas primeiras exigências — da conserva­ção do indivíduo como da espécie. A tarefa de fazer evoluir essa massa é, porém, confiada a poucos indivíduos, biologicamente fora da série, especializados nesse trabalho de exceção, que os isola, embora por cima, mas fora da média, como expulsos dela, a qual tudo estabelece e faz para próprio uso e costume, se­gundo as medidas de sua forma mental.


Qual é a sorte desses indivíduos? Naturalmente eles não estão totalmente presos neste trabalho, que representa sua principal função biológica e o objeti­vo de sua vida. Mas isto não modifica absolutamen­te as condições do ambiente em que devem operar, nem impede que a luta de ataque e defesa — que constitui a lei principal dos seres entre os quais eles têm de viver — os acometa com sua agressividade, enquanto eles estão absorvidos num trabalho totalmente diverso, e no qual estão especializados1 tanto quanto, ao contrário, o tipo comum está especializado na luta. Se o evoluído não sabe e não pode lutar, nem por isso os outros cessam de agredi-lo, tanto mais que eles se sentem mais fortes nesse terreno, e nada os atrai tanto quanto a facilidade da vitória. Parece assim que o habitual destino do gênio na terra é o de ficar abandonado e despojado, ao passo que a riqueza tende a superabundar nas mãos dos especializados, em sabê-la acumular. O ser encarregado da função biológica superior de fazer evoluir é um pioneiro, lançado para o futuro, provido das qualidades pró­prias ao plano superior que deverá ser atingido, mais do que daquelas que tem a maioria que vive na terra. Condenado a viver neste ambiente, que não é o seu, enquanto esta atento a realizar sua missão de ensi­nar formas superiores de vida, facilmente é superado pelos que, sabendo lutar, podem explora-lo, rouban­do tudo o que é dele. Para vergonha da humanida­de, a história esta cheia de casos de grandes músicos, artistas, pensadores, cientistas etc. — em todos os sentidos, grandes benfeitores — que viveram e morreram na miséria, enquanto a riqueza se esban­ja por inúteis luxos e se gastam somas fabulosas pa­ra matar o próximo na guerra e para, na paz, aper­feiçoar a arte de matar. Isto demonstra em que esta­do de involução se acha ainda o homem e como a vida do evoluído, na terra, para fazê-la progredir só pode ser uma vida de martírio. Dizê-lo, pode parecer ofensivo para as grandes almas. Mas o certo é que uma humanidade que não sabe defender o mais alto produto da raça, incumbido da função de fazê-la evoluir, não pode considerar-se civilizada.





IX

O PROBLEMA DA MORAL II



Como age a nova moral? Mundo de lu­ta. Evolução por ação e reação entre dirigentes e súditos, por comum abrandamento de costumes. Progressiva eliminação da lu­ta, e da dureza das leis. Em direção a uma moral cada vez mais amiga. A vida, estado de guerra. A ética que se vive nos fatos, e suas conseqüências. A função biológica da mentira. A virtude como astúcia. A liquidação do simples e honesto. Ética emborcada. A psicologia do selvagem e do civilizado. Inteligência prática, para a luta, e não especulativa, para o conhecimento. A moral da nova civilização do espírito.




Dadas as condições atuais do mundo, como fazê-lo evoluir ainda, levando-o a viver a nova moral? Aplicando-a ao real estado de fato, que reações excitará e recebera em resposta, quando se trata de pas­sar seriamente de uma ética pregada a uma ética realmente vivida? Não podemos esquecer que se tra­ta de um mundo em que tudo se baseia na luta, um mundo em que a norma ética teve de aparecer até agora como imposição armada de sanções, resultan­do como conseqüência o desenvolvimento da arte de escapar delas. Há luta entre o evoluído que quer subir e o involuído que não quer subir, luta entre duas leis diferentes que aspiram ao domínio absoluto so­bre o homem.


Ora, é lógico que, nesse ambiente, qualquer inovação tem de ser iniciada de cima, isto é, por parte dos vencedores, que são os únicos, nesse plano, e têm o direito de mando. Se nesse plano tudo funcio­na assim, se esses são os princípios que estabelecem a conduta dos que aí vivem, não podemos sair deles nem mesmo quando queremos estabelecer uma nor­ma ética, embora desça ela de planos superiores, regidos por princípios diferentes. As normas concebi­das nos ambientes mais elevados constituem o que se chama a teoria. O modo com que são recebidas, adaptadas e até invertidas no ambiente humano ter­restre constitui o que se chama a prática. A teoria é bela, resplandecente, mas a tendência é que seja de­turpada e corrompida logo que desce á prática.


A realidade apresenta-nos, então, um espetáculo bem diferente do que se poderia imaginar. Quem faz as leis é a camada social superior, que tem o di­reito de mandar porque venceu a batalha da vida. Se essa camada não faz a lei ética, porque só poucos e excepcionais evoluídos conseguem intuí-la, pode todavia formulá-la em artigos de lei, dosá-la e, sobre­tudo, enchê-la de sanções que, na terra, são as coisas mais importantes, se não quisermos permanecer no campo teórico. E então a ética, que no Alto é outra coisa — ou seja, norma espontânea de convicção — também se torna luta, para adaptar-se à lei da terra em que desceu. É sob esse aspecto que a moral apa­rece em nosso mundo, fato que pode parecer estra­nho e contraditório, mas do qual compreendemos as razões. A ética resolve-se assim, na prática, numa luta entre a classe superior que impõe as leis, e as classes inferiores que devem aceitá-las, luta entre a classe dos juizes que estabelecem a culpabilidade e condenam, e a dos julgados culpados, que são con­denados se não obedecem.


Podemos perguntar-nos agora: como consegue a vida evoluir, se a descida dos ideais á terra está submetida a esse sistema que a converte em luta e assim paralisa seu efeito mais importante, que é o de pro­vocar uma melhoria? Eis então o que acontece: o progresso é um impulso íntimo, que age de dentro, indistintamente sobre todos, tanto em quem manda, como em quem obedece. A evolução não pode submeter-se ao contraste entre os dois impulsos opostos em luta; então, ao invés de ficar dominada por ele, domina-o e o utiliza. Não podendo caminhar em li­nha reta, avança tortuosa como um rio, por impulso e contra-impulso, por ação e reação entre as duas par­tes contrárias que, assim, acreditando eliminar-se, co­laboram substancialmente na mesma direção, que é a da evolução. Os dois grupos opostos influenciam--se mutuamente Logo que um progrida um pouco, o outro recebe e assimila os benefícios, civiliza-se, abranda seus costumes, obedece com um pouco mais de consciência e conhecimento, mais espontaneamente convencido porque experimentou as vantagens de viver na ordem. São a luz e a bondade que começam a chegar, desmantelando aos poucos o castelo das coações e sanções, duro ônus que pesa sobre todos, e de que agora é possível começar a libertar-se, por­que cada vez se torna menos necessário. Isto permi­te aos dirigentes a mitigação das penas, abandonan­do cada vez mais o método psicologicamente impo­sitivo de terrorismos, indispensável para disciplinar seres rebeldes e ferozes. Antes, não se podia assim proceder sem prejuízo destes, que teriam interpreta­do qualquer ato de bondade como sinal de fraqueza e autorização à devassidão. A idéia do inferno não foi criação de um grupo sacerdotal, mas uma neces­sidade psicológica, imposta pelo estado de involução em que se achava o homem no passado. Sem esses terrorismos hoje inaceitáveis, o edifício ético, em virtu­de de sua estrutura mental, teria caído na anarquia. Mas é lógico que tudo isso deva ir desaparecendo, automaticamente, sem danos, logo que o homem, por ter-se civilizado mais, o permita.


Caminho lento, gradual e difícil, mas caminho fa­tal. Sem dúvida os dirigentes, por causa da natureza de seus súditos, têm necessidade de defender-se e não podem abandonar-se a excessivos atos de bon­dade, sem que seja invertida a ordem que a lei ética deseja, tornando-se anti-ético, porque impediria que a vida atingisse seus objetivos. Para o involuído, a éti­ca precisa estar armada de chicote, pois só assim o le­vará ao bem. Mas não restam dúvidas de que o dever da iniciativa dos melhoramentos cabe à classe dos dirigentes (abolição da pena de morte, da escravidão, melhoramentos no sistema de prisões, mitigação da pe­na, justiça econômica, previdência social etc.)., Essa iniciativa deverá ser levada até ao limite máximo possível, como grau de bondade que o estado de ci­vilização atingido já permite. Dentro desses limites, as classes menos evoluídas da sociedade poderão restituir à classe superior o bem que recebem, na for­ma de um abrandamento de costumes. A finalidade da lei é sobretudo de educar, ensinando, à força de sanções, a viver mais civilizadamente, pronta a aban­donar esse sistema, logo que os súditos aprendam a lição, e demonstrando assim não mais necessitarem desses métodos. Na feroz Idade Média realizavam-se as execuções capitais e as punições corporais nas praças, à vista de todos, usando o sistema terrorístico, julgando-se educar o povo no respeito para com os detentores do poder. Mas isto também educava o povo no gosto do crime, nunca dominado com esse sistema que, no fundo, só demonstrava o medo que os domi­nadores tinham de ser derrotados. Com o tempo, o trabalho subterrâneo da evolução abrandou tudo, tanto que esses espetáculos aos quais a multidão acorria com satisfação, agora gerariam nojo e con­denação..


Assim, por golpes e contragolpes, realiza-se a evolução e a humanidade progride para formas de vida que contêm cada vez menos o mal e cada vez mais o bem. As massas, educando-se cada dia mais no bem, permitem aos dirigentes e às leis que sejam melhores, e estes, tornando-se melhores, educam as massas cada vez mais no bem. Esse é o sistema uti­lizado pelo progresso num mundo de luta, onde isto pareceria impossível, precisamente por causa da luta. O progresso, paradoxalmente, realiza-se por meio da luta, isso nos mostra como é profunda a sabedoria da vida.


A repressão forçada é um mal necessário nos tem­pos involuídos; mal que se destina, porém, a ser superado. Não é a repressão que liberta a sociedade de seus males, mas a mecânica progressiva que acabamos de ver. Ao contrário, a repressão aumenta a reação, a violência gera a violência e, em última análise, o mal só pode ser combatido com o sistema da não-reação, e só pode ser vencido verdadeira­mente se o neutralizamos com igual medida de bem. Muitos abusos e delitos nascem, freqüentemente, de um abuso e delito maior, o de não reconhecer nos do­minados os direitos que os dominadores reconhecem para si mesmos. Os princípios superiores da ética são tanto mais dificilmente aplicados, quanto mais poderoso e ativo é o sistema de luta que vigora na terra, para a qual eles são trazidos.

A humanidade futura será mais inteligente e com­preenderá a enorme vantagem de comportar-se de modo diferente. No fundo, os conceitos de moral e evolução coincidem, como os de anti-moral e involução. Ao evoluir, o indivíduo torna-se esponta­neamente moral, como ao involuir se torna anti-mo­ral. Por natureza o evoluído é mais moral que o in­voluído. Moral é evoluir, anti-moral é involuir, como viver uma vida estéril que nada produz de bom nem para si, nem para os outros. Moral lógica e utilitária, baseada no utilitarismo da vida, que não é de superfície nem míope visando a efeitos imediatos, mas profundo e de longo alcance, substancialmente frutífero. Definimos a dor como um estado de desarmonia, de­vido à própria posição da desordem. A dor deriva, com efeito, da desordem, que leva os indivíduos a luta, fazendo-os chocar-se uns contra os outros. É ló­gico, pois, que ela tenda a desaparecer com a evolução que leva à ordem, que pacifica os indivíduos, fa­zendo-os caminhar disciplinadamente, cada um em seu lugar, sem mais chocar-se com o vizinho, ofen­dendo-o.


Como a fera que se torna menos feroz e perde as garras ao evoluir, ou seja, como a evolução reali­za uma progressiva eliminação da luta pela vida, assim a moral, à proporção que evolui, se torna me­nos opressora, menos terrorística, menos armada de duros castigos. Com a evolução tudo tende à harmo­nia, à alegria, à bondade. Torna-se o homem mais livre e ao mesmo tempo adquire maior sentido de responsabilidade. Quem quiser subir aproveitará, de­pois as vantagens; quem não quiser subir, permanecerá em seu nível de vida, com todos os males ine­rentes a ela. Em substância, a nova moral diz ape­nas: civilizai-vos e vivereis muito melhor. E se agra­da a todos viver melhor, é lógico que, descoberta a estrada para atingir isto, se ache conveniente subme­ter-se ao esforço indispensável para percorrê-la. A ética atualmente em vigor na prática, embora teori­camente bela, é torcida pelos instintos elementares, cheia de trasbordamentos do subconsciente e de ilu­sões psicológicas, devidas a perspectivas erradas, produzidas pela forma mental que dirige o homem em seu atual plano de vida. Moral em que reapare­ce a cada passo, nos fatos, o cálculo do próprio inte­resse, o medo do patrão, o desejo de evitá-lo, enga­nando-o com escapatórias, o contínuo sentido de luta para tornar-se o mais forte e assim vencer a todos.


Esse triste estado deve ser abandonado e supera­do com formas de vida mais altas e felizes. Não mais tantas condenações, que sufocam a vida, mas esfor­ços inteligentes para melhorar, andando ao encontro dela. U'a moral amiga, que nos levará ao bem querendo-nos bem, e não u'a moral inimiga, em que o instinto humano de luta e agressão encontra desa­fogo. É preciso afastar-se cada vez mais dos grandes absurdos e aberrações do passado, como as guerras santas, as inquisições., os infernos eternos, a benção das armas e as condenações em nome de Deus, como de toda coação espiritual que leva à aceitação forçada, como substituto da aceitação espontânea, por convicção. U’a moral fraterna e pacífica de onde desapareceu a luta, em que, sendo tudo lógico e cla­ro, não pode aparecer a mentira, porque é contraproducente. Para eliminar todos esses efeitos maus é mister eliminar as causas. Não é uma moral para uso dos vencedores, em detrimento dos vencidos, mas uma moral de justiça em que há lugar para os direi­tos e à vida de todos. Então a classe dos rebeldes à ordem social não teria mais razão de existir e desa­pareceriam essa praga, essa luta e esse perigo. Mas, enquanto dominar u’a moral de classe, ao invés de u’a moral biológica imparcial, a humanidade terá de continuar a luta, e não poderá purificar-se de seus elementos mais daninhos.


Estas são as regras do jogo e não podemos sair delas: se semearmos justiça, colheremos ordem e paz; mas se semearmos injustiça só poderemos colher revolta e mentira. Se, no próximo, quisermos enga­nar a vida, a vida, através do próximo, nos engana­rá. Esta é uma realidade à qual não podemos esca­par, mesmo se tudo fizermos em nome de Deus, da pátria, de um ideal, do bem da humanidade. Esta é a verdade a que tudo se reduz, para além dos esque­mas filosóficos, religiosos, ideais e sociais. As aparências não contam. Se não formos sinceros, teremos mentira; se oprimirmos teremos revolta; se não sou­bermos mandar para o bem alheio, não obteremos obediência.


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O ponto fraco da moral vigente é sempre o de permanecer imersa no plano da luta, de ser uma expressão dela, de existir em função dela, permane­cendo assim uma moral de involuídos. A causa primeira dos males daí derivados é o princípio do mais forte, que domina nesse plano, princípio que leva à derrota. Segundo esse princípio a verdade é estabe­lecida pela maioria, com suas idéias, para satisfazer a seus instintos e interesses. Cabe-lhe esse direito, porque ela é numericamente mais forte. Mas quais são as idéias da maioria, que certamente não pode representar uma elite selecionada? São as que cor­respondem aos impulsos mais elementares da vida. E é a essa altura, própria dos involuídos, que os evoluídos são constrangidos a nivelar-se. E então, mes­mo que a verdade possa descer do Alto pela revelação, o que a humanidade aceita, aplica e vive, é estabelecido pelos limites impostos pela capacidade de compreensão das massas, que não sabe ir além de um consentimento instintivo do subconsciente, que re­presenta a parte mais involuída, a animal do ser hu­mano. São estas as forças que, através dos fatos, ten­dem a dirigir a atividade humana e com a qual a éti­ca tem de contar, pagando o seu tributo, ainda que, na teoria, essa atividade pretenda justificar-se pro­clamando-se conseqüência e aplicação de princípios absolutos, e sendo praticada em nome de Deus e dos mais altos ideais. A realidade positiva que aparece nos fatos é a satisfação do imperativo dos interesses da vida, que quer atingir sua finalidade. Constrói-se assim o castelo da ética sobre bases escusas, que se enterram nas vísceras do mundo biológico e que pouca afinidade tem com abstrações lógicas e teológicas, onde a ética pretende fundamentar-se para assumir valor absoluto, acima de nosso contingente. Como o homem construiu para si uma idéia toda antropomórfica da Divindade, para seu uso e consumo; como se colocou na posição de único objetivo da criação, num planeta que estava no centro do universo, em função de valores considerados absolutos, por exemplo a imobilidade da terra e a solidez da matéria; do mes­mo modo o homem construiu para si uma ética na ba­se de ilusões psicológicas, que a observação acurada das mentes mais adiantadas vai gradualmente desfa­zendo com a análise, à proporção que, com a evolu­ção, se abre a inteligência humana.


Justifica-se essa forma mental, responsável pelo conceito de verdade absoluta, através do desejo instintivo de atingir a última meta do conhecimento Acreditam assim que a atingiram e a possuem, ao passo que para o homem, situado no futuro, só são possíveis verdades relativas e em evolução. De fato é. isto o que a realidade nos mostra apesar das mais absolutas e dogmáticas afirmações em contrário. Di­ante do transformismo universal, a que nenhum ser pode escapar porque está imerso no fenômeno da evolução, o absoluto imutável só é admissível como distante meta final, ainda não tocada, e só atingível no término do processo evolutivo. Até esse momento, tão distante que escapa à avaliação de nosso concebível, só podemos admitir para o ser uma progressiva suces­são de diversas aproximações da verdade, como eta­pas da contínua conquista do conhecimento. A ética é apenas um dos aspectos dessa verdade e, como tal, também só pode ser relativa e em evolução. Eis en­tão que a ética, como o conhecimento e tudo o mais, é dada pela posição que o homem atingiu ao longo da escala da evolução, e existe em função desta, ou seja, do grau de desenvolvimento alcançado, o que estabelece, em todos os campos, os limites do conce­bível humano.


Surge, então, na terra, a possibilidade de existi­rem diversas éticas, relativas ao grau de evolução atingido. É verdade que a maioria estabelece um ní­vel médio, proporcional à sua sensibilidade e compreensão, adaptado às massas que, nele se encon­tram à vontade. Mas é também verdade que os mais evoluídos podem considerar essa ética como al­tamente imoral, já que encara como lícito e natural o que a eles pode parecer até mesmo um crime. A mo­ral dos selvagens atinge a antropofagia. A moral do homem civilizado admitiu, até há pouco tempo, a es­cravidão, e ainda admite, em vários casos, o direito de matar o seu semelhante. Quanto mais civilizado é o ser, e ilícitas, muitas coisas que a moral comum permite, mais é evoluído e mais fica horrorizado como os seus semelhantes realizam, sem nenhum sentimen­to de culpa, atos que seriam, para ele, inadmissíveis. Esse tipo biológico poderia então fazer uma lista de crimes que a ética comum, tanto religiosa como civil, admite tranqüilamente, sem perceber a sua atrocida­de, com a mesma ingenuidade com que — em pro­porção — o antropófago devora o seu inimigo. Veja­mos alguns desses casos.


1) Julgarmos não em função da justiça, imparcial­mente, mas em função da força de que o julgado dispõe: seja em posição social, poder econômico, capa­cidades bélicas etc., chegando assim a uma justiça que funciona de modo exemplar apenas para o fa­minto e inerme ladrão de pão ou de galinhas


2) Julgarmos e condenarmos o próximo sem conhe­cer suas condições reais e só em função deles mes­mos. Sermos tolerantes quando nos outros encontramos os nossos próprios defeitos, pelos quais também nós poderíamos ser condenados primeiro, se os con­denássemos; e tornarmo-nos desapiedadamente in­transigentes e modelos de virtude, quando nos outros podemos apontar defeitos que não temos, pelos quais, portanto, não podemos ser alvo do retorno de acusação.


3) Servirmo-nos das altas coisas do espírito e de Deus como meio para alcançar vantagens materiais, para vencer na vida e nos afirmarmos no mundo, prostituindo-as até fazer delas instrumento de astúcia de guerra. Em outros termos, servirmo-nos da política para satisfazer o próprio orgulho ou para nos tornarmos uma potência social e econômica, e não para aju­dar a nação; servirmo-nos da religião para assegurar uma posição e não para cumprir a missão de levar o bem às almas; trairmos os princípios que dizemos pro­fessar, usando-os para outros fins, enganando a res­peito dos verdadeiros métodos de vida, bem camufla­dos sob um belo manto de hipocrisia, e, praticando na realidade, sob tão belas aparências, o jogo duplo do Maquiavelismo.


4) Segundo a moral em vigor, é lícito vivermos no desperdício do supérfluo, enquanto outros nossos se­melhantes carecem do estritamente necessário, assim como é lícito entrarmos na posse de bens que não fo­ram ganhos com o próprio trabalho.


5) É lícito roubarmos quando com isto damos pro­va de uma inteligência, que sabe enganar a justiça estabelecida pelas leis. Saber escapar astuciosamen­te, aos castigos, pode até merecer como prêmio a velada estima da opinião pública, que não a regateia a quem saiba vencer e tornar-se poderoso, e que se torna incondicionalmente admirado só por isso, rele­gando ao esquecimento os meios utilizados, desde que atingiu resultados tão brilhantes e invejados.


6) É lícito, com a benção de Deus e as honras da pátria, matarmos quando isto corresponde aos inte­resses do próprio país ou dos detentores do poder. Aos maiores carrascos da humanidade, que realiza­ram as maiores matanças bélicas, foram tributadas as maiores honras da história.


A lista poderia continuar. Estes são alguns dos delitos que a ética humana atual reconhece como lícitos, na realidade, embora os condene teoricamente; delitos que qualquer um pode tranqüilamente come­ter, continuando pessoa de bem e cidadão estimado na sociedade, como bom cristão, ao qual as religiões prometem o paraíso. Assim a maioria cria a própria ética, satisfazendo seus instintos, aos quais obedece de boa fé, acreditando permanecer na verdade e na justiça. Não tendo atingido ainda o nível evolutivo suficiente para perceber o que está fazendo, a pessoa se julga honesta e sincera. Nada mais se pode fazer, então, senão repetir com Cristo: “Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. E para compreender o com­portamento desses seres, temos de raciocinar com a inteligência da vida, que os faz movimentar-se por meio desses instintos, sem que eles saibam o porque. Eis que então aparece, além da ética pregada e teorica­mente professada — artificiosa construção do pensa­mento — esta outra moral biológica e realística, em que a vida impõe as férreas leis de seu plano de evolução.


Esta realística moral biológica pode parecer mais livre, porque permite muitas coisas que são proibidas mais acima; entretanto nem por isso é menos dura. Justamente porque mais involuída, está armada com reações férreas, para manter na linha o involuído, menos sensibilizado. O homem comum sente-se livre e por isso acredita que lhe é permitido poder realizar impunemente qualquer desejo, não imaginando que vive constrangido nas malhas de uma rede de ferro, estabelecida pela Lei. Como esta lhe deixa liberdade de ação ele acredita poder fazer o que quer e não percebe que a cada movimento seu corresponde uma inexorável reação. Assim o homem faz o que quer, mas a lei é um sensibilíssimo organismo de forças que, à mínima violação de sua ordem, responde com um proporcionado e adequado contragolpe, que coloca cada coisa em seu lugar, de acordo com a justiça. Essas forças são como tentáculos que atingem quem errou contra a lei, sem possibilidade de fuga, em qualquer tempo ou lugar que ele se encontre. O ho­mem, acreditando-se totalmente livre, está imerso nes­sa atmosfera de ordem imposta pela lei; faz parte des­se organismo de forças que o vinculam de todos os lados e no qual precisa saber manobrar com sábia retidão, se não quiser depois ser coagido a suportar tremendos contragolpes como reação da lei.


Justamente nesse ambiente — de cuja verdadei­ra natureza o homem não pode tomar conhecimento por causa da ignorância — é que o homem gosta de mover-se, segundo seus loucos caprichos, perseguindo miragens de dominador, que pretende impor-se a tudo. É fácil imaginar que dilúvio de dores daí re­sulte. E é isso que de fato vemos acontecer no mun­do. É como se um aviador quisesse voar sem conhe­cer nem respeitar as leis do vôo, e ao contrário, pre­tendesse impor-se a elas, para dobrá-las, obrigando-as a funcionar segundo sua vontade. O resultado lógico seria que, ao invés de mudar as leis do vôo, o aviador caísse ao solo pagando as conseqüências fatais de sua louca pretensão. Qualquer técnico que conheça aquelas leis poderia matematicamente ex­plicar-lhe a necessidade lógica das conseqüências.


As primeiras características do involuído são a sua ignorância e o instinto de revolta, de modo que, aumentando essas qualidades com a involução, au­menta proporcionalmente a força dos golpes recebi­dos. Mas é justamente desses golpes maiores que a insensibilidade maior do involuído precisa, para aprender a conhecer a lei e a não ofendê-la com a própria revolta. Os meios para educar são enérgicos, na medida adaptada à capacidade perceptiva dos alunos. Estes podem semear a desordem que quise­rem, mas só para si, e para depois pagarem os pre­juízos, à própria custa. Ninguém pode impedir que tudo esteja proporcionado em perfeita ordem, na lei.


O objetivo da escola da dor é ensinar a obediência, ensinar a saber movimentar-se seguindo a ordem da lei e não chocando-se com ela, provocando rea­ções. Todavia o homem é um rebelde por natureza, e julga-se honrado e sábio, quando sabe impor-se a todos, e se gaba da arte de violar a lei, conseguindo depois escapar às suas reações. Entre o involuído e a Lei estabelece-se assim não um regime de consentimento e harmonia, mas como um duelo em que o ho­mem desejaria superar a Lei, a qual lhe aparece não como uma norma de sua felicidade, mas como um inimigo que deva ser dobrado e enganado. Acredi­ta-se desta forma dar prova de inteligência, usando de astúcia ao querer lograr nas barbas de Deus e dos homens. Trágico mal-entendido, que escancara as portas à dor, necessária para corrigir esse erro. A lei não é um obstáculo que valha a pena superar com bravura, mas um guia amigo que quer levar-nos à felicidade que procuramos destruir, quando nos re­belamos contra a Lei. Com a desobediência semeamos dor, onde a lei, se fosse obedecida, faria nascer alegria.


E' assim que, através dos oceanos de todos os so­frimentos, o homem aprende a conhecer os artigos da Lei. É assim que, pagando pela desobediência, se aprende a arte de obedecer. Desse modo a Lei, duplamente sábia, compensa a loucura do homem, im­pelindo-o, apesar de tudo, a realizar a própria evolução. E quanto, mais o homem, na sua luta contra a lei, procura escapatórias para fugir de seu castigo, tanto mais esta o chicoteia para trazê-lo à sua ordem. O jogo que vale para as leis humanas, que é possí­vel enganar, não vale para a Lei de Deus, que não se pode lograr. Nossa ignorância pode ser tão gran­de que nos faça crer seja isto possível. Mas não mu­da a realidade dos fatos. Quando julgamos que fo­mos mesmo sabidos, conseguindo burlar a Lei e es­capar de suas sanções, explode a sua reação maior, com a tempestade corretiva. Aprende-se, então, a li­ção mais salutar, a que nos ensina que o erro maior, que se paga mais caro, é justamente o de jul­gar seja possível impor-se à Lei com a força e escapar das conseqüências da desobediência com a astúcia.


As estradas de fuga abrem-se diante de nossos olhos, amplas e convidativas. Os ingênuos acredi­tam que fizeram a grande descoberta e encontraram os atalhos da felicidade. Lançam-se a eles aos mon­tões, como moscas ao mel. Que convite: ganhar a bom preço, com pequeno esforço Como resistir a isso. Mas a Lei é justa e não admite se possa obter uma vantagem sem ser conquistada e merecida. Essas soluções cômodas são uma ilusão; esses cami­nhos fáceis que parecem conduzir à felicidade são redes de fundo sem saída, becos cheios de dor, e pa­ra sair deles, é mister caminhar para trás, engolindo o erro e tornando a percorrer a íngreme subida por todo o caminho percorrido na descida fácil.


Há uma estrada que não engana e verdadeira­mente resolve o problema, sem trazer-nos sofrimen­tos. Mas esta é pequena, estreita, lateral, e ninguém lhe dá importância; é íngreme e incômoda, e não atrai os caçadores de vitória, fáceis. Termina numa passagem muito estreita, e para entrar nela é preci­so estar nu, sem nenhuma roupagem de mentiras, despido dos enfeites das coisas terrenas, sutil e leve, espiritualizado e livre do peso da matéria. Aquela passagem estreita é a honestidade. Sé passam por ela os justos, os sinceros, os obedientes à Lei. Seria possível sair por ali sem chocar-se com as reações da Lei, mas é difícil e ninguém pensa nisso. Para con­segui-lo são necessárias qualidades que não se tem e que são duras de conquistar; requerem-se esforços que não são agradáveis fazer. Por isso ninguém olha para esse lado, onde, no entanto, está o caminho de saída a todos os sofrimentos. E são preferidas as ou­tras estradas, amplas e convidativas, mesmo que depois não conduzam, como é lógico, senão ao enga­no. É justo, está de acordo com a Lei, que quem quer enganar seja enganado; que quem se glorie do sa­ber lograr, seja logrado. Depois diz que a vida é ilu­são. Mas esta foi desejada pela psicologia de astú­cia que ilude primeiro quem acreditou poder iludir a Lei.


Quando depois, por obra de seres mais adianta­dos, desce do Alto uma ética, norma de conduta que nos leva a evitar esses males, mesmo assim o homem, como fazia com a Lei, procura todas as escapatórias para lográ-la. O involuído primitivo não sabe respon­der de outra forma. Quando, por maturidade evolu­tiva, falta a consciência das próprias ações, a ética poderá impor normas mecânicas e exteriores, mas não poderá improvisar essa consciência. Nesse ní­vel, a ética reduz-se então, à prática formal daque­las normas e, realizadas elas, o indivíduo sentir-se-á tranqüilo em sua consciência, convencido de que na­da mais se deva nem se possa fazer. Nesse nível não se pode exigir mais que esse cumprimento formal, já que falta a sensibilidade necessária para perceber o peso das coisas espirituais. Para chegar a percebê­-las, os imaturos as revestem de formas materiais, procurando assim segurá-las, ao dar-lhes corpo con­creto, porque de outro modo ficariam inatingíveis, perdidas no mundo do super-concebível. É assim que se pode chegar a uma ética formal exterior, que os involuídos praticam de perfeita boa-fé, julgando-a uma ética de substância, mas que não pode deixar de aparecer aos olhos do evoluído como uma menti­ra e uma traição de princípios. E no entanto não se pode culpar ninguém, porque ninguém pode dar o que não tem, nem ser mais do que é. Não se pode exprobrar a planta de ser planta, o animal de ser ani­mal, nem a qualquer criatura de só saber existir con­forme as qualidades que possui. A condenação ou o prêmio cada um o traz em si, com a própria inferio­ridade ou com a própria superioridade. Aos involuí­dos não se pode culpar se a vida, no seu nível, não sabe funcionar de forma mais adiantada Na realidade não há nenhuma vantagem em ser involuído, e quem não sabe viver melhor, merece compaixão pela sua desgraça. Ninguém mais do que o ignoran­te é vítima, e, acreditando mandar, é obrigado a obe­decer a leis que não conhece. Não é a eles mas ape­nas ao evoluído consciente, que se pode pedir que compreenda o mecanismo de seus instintos e rea­ções, que constituem a chave de seu comportamen­to, a verdadeira moral íntima que o ser sente e é le­vado a viver, não lhe importando qual seja a moral oficial que, por outros motivos sobrepostos, teve de aprender a representar, formalmente, na prática. Só assim pode compreender-se o verdadeiro jogo da vida, que, de modo geral, é duplo, porque a primeira coisa que o instinto ensina ao involuído que tem de viver em regime de guerra, é esconder suas próprias e verdadeiras intenções, como ensina o Maquiavelis­mo: parecer sincero e honesto, sem o ser.


Assim, o sistema da luta, índice seguro que esta­belece a inferioridade do plano evolutivo humano, não é eliminado pela ética para dar lugar a um regi­me de justiça, como se presume; mas é apenas escondido nos subterrâneos da vida, onde a luta con­tinua mais exacerbada que nunca, mais sutil e astuta, e nem por isso menos feroz. Esta é a ética verda­deira, com a qual é preciso, em última análise, fazer as contas, a que rege o mundo e constitui a substância de todos os problemas. Enquanto permanece no campo teórico e, embora muito alta, não lesa interes­ses concretos; enquanto não aborrece e nada custa respeitá-la, é respeitada. Se por isso pôde formar-se e dominar uma ética feita de altas teorias e belas práticas, sem tocar na substância da vida, porque aí a coisa muda de figura e recrudesce a luta. Mas logo que a ética quer tocar na realidade dos interesses tangíveis, que todos sentem, então afloram aquelas verdades que são na prática as verdadeiras verda­des da vida, acima das belas aparências. Acaba então o jogo das belas palavras e chega-se aos fa­tos. Se aparece um interesse ou um prejuízo concre­to, toca-se na realidade da vida, que reage, e surge o verdadeiro jogo. O outro, o das belas teorias e das exterioridades formais, pode continuar imperturbá­vel, pois todos sabem que não é o verdadeiro. Mas se tocarem no ventre e no sexo, nos bens e nas satis­fações materiais, todos compreenderão que se age seriamente. Não são os problemas do conhecimento, mas estes é que constituem os grandes problemas do subconsciente das massas, aqueles segundo os quais caminham as correntes da psicologia coletiva, aque­les de que mais se ocupa o pensamento da maioria — o que estabelece a verdade dominante. Só quan­do, alem das palavras e práticas convencionais, sou­bermos ver esse outro recôndito pensamento escon­dido entre as dobras da aparência, só então podere­mos compreender a verdadeira natureza do jogo da vida e da ética, e a verdadeira razão das ações humanas.


A ética do mundo faz muita questão de distinguir um grupo do outro, seja por fé, religião, partido etc., e não a distinguir honestos de desonestos, onde quer que estejam. Isto justamente porque o maior interes­se destes últimos, que são os mais espertos, é perma­necer misturados em todos os grupos com os hones­tos, que são os mais fáceis de serem subjugados.

Assim, sob outras aparências, pode fazer-se o verda­deiro jogo da vida, que é o de vencer na luta, e pode aplicar-se a verdadeira ética vivida, que é ética de guerra, pela qual os mais fortes e astutos podem atingir os altos postos, dominando os mais fracos e simples. Eis a verdadeira ética, que vigora sob as aparências da moral oficial, ética que oferece a pal­ma do vencedor a quem souber fazer o jogo da vida as expensas de quem não sabe fazê-lo.


Essa é a verdadeira face da verdade na terra. O honesto faz todas as despesas e parece injustiça. Mas nem tudo acaba aí. Os melhores são expulsos do ambiente da terra, o que constitui, em última aná­lise, uma grande vantagem para eles, pois lhes per­mite tornar-se cidadãos de mundos mais evoluídos, enquanto os piores, que se acreditam vencedores, continuam empilhados no pântano terrestre, para agredir-se mutuamente, segundo seu instinto de luta, fazendo assim com as próprias mãos o seu inferno. Saber triunfar no mundo, pela força ou pela astúcia é, na verdade, o maior prejuízo, porque significa fa­zer parte de planos inferiores de vida e ser condenado a permanecer aí, suportando todos os seus ma­les E eis que, em última análise, quem vence na vida é a justiça de Deus, pela qual cada um volta se­gundo o seu lugar e merecimento. Quem acredita chegar em melhor situação que antes, por seguir vias transversas, na realidade, chega em pior condição. Quem pratica o mal, acreditando com isso vencer, faz mal na realidade a si mesmo e perde, devendo ainda por cima pagar o próprio dano. Só a igno­rância do involuído pode acreditar seja possível tal absurdo uma derrota para Deus, pela impotência de sua Lei de justiça ou que Ele pudesse ser vencido pe­la prepotência ou pela astúcia da criatura.


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A pior moral é a de não acreditar no que se pre­ga e, consequentemente, não o praticar. Com isto se engana a Deus, incorrendo-se em culpa, e a nós mes­mos acarretando prejuízo. A hipocrisia é a pior conclusão de todas as morais. Então os mestres ensinam e os discípulos ouvem, mas na realidade tudo se faz por outras razões. Pode formar-se um acordo tácito, porque de ambas as partes se sabe que a vida é outra coisa. Os primeiros partem o pão da verdade, os segundos o aceitam segundo as regras estabelecidas, e tudo fica na mesma. Respeita-se a tradição, acredita-se no que se deve, cumprem-se as práticas regulamentares A Que mais pode exigir-se? Todos sa­bem por experiência própria que a vida, na realidade, é bem diferente da teoria que se prega, e, na prática, domina outra verdade, pela qual não é o me­lhor, e sim o mais forte que vence. E desta verdade não se fala, porque é muito mais honroso aparentar-se um ser superior, cheio de qualidades nobres. Assim os ideais na terra podem oferecer uma utilida­de na prática. Podem conciliar-se as duas exigências opostas, ou seja, salvar o espírito, continuando a pra­ticar a outra lei do mundo.


A culpa não cabe toda aos dirigentes. Sendo a minoria, tiveram que adaptar-se à maioria, que representa o maior impulso. A maioria suporta de má vonta­de os moralistas, procurando expulsá-los, e não os su­portaria de modo algum se eles quisessem agir de ver­dade. Durante séculos realizou-se, assim, a seleção dos que perturbam menos, por terem achado a fórmula da convivência, resolvendo o difícil problema por meio de acomodações. Nem isto constitui toda a cul­pa. Se pode parecer traição de princípios, este é o único modo que torna possível certa dose percentual de sua aplicação, que em sua totalidade seria impos­sível num mundo assim. Desta forma, uma parte da conduta humana está entregue à hipocrisia. Mas que fazer, se a realidade da vida na terra está nos antí­podas dos ideais?


As próprias religiões partem do princípio de que o mundo é composto de pecadores. As leis civis tam­bém partem do pressuposto de desonestidade do ci­dadão, e ao lado de cada norma colocam de imediato o castigo pelo não-cumprimento. O ponto de partida é sempre a presunção de que se trata de um rebelde, cuja vontade de desobediência é admiti­da implicitamente e presumida a priori. Tudo isto é a conseqüência lógica da lei que vigora no plano biológico humano, lei de luta de todos contra todos, baseado no ataque e na defesa. Se existem essas pre­sunções, porque a maioria dos indivíduos é feita efetivamente de pecadores e de cidadãos que gostariam de não obedecer. Eles são, portanto, proporcionais a tal pressuposto e relativo tratamento, são adequa­dos a tal mundo e selecionados na arte de defender-se, o que é indispensável à sua sobrevivência. Pro­va-o o fato de que estes, se não são como se presu­me que sejam — isto é, se são verdadeiramente bons e honestos — são rapidamente liquidados na realidade. Quaisquer que sejam os princípios teoricamente proclamados, a lei vigorante, de fato, é a da luta, do ataque e da defesa, pela qual a reação do indivíduo contra qualquer autoridade pode explicar-se com o instinto, como legítima defesa, provocada pelo fato de que, quem tem em mãos o poder, costuma usá-lo pa­ra vantagem própria ou da classe, e não como uma função social para o bem de todos. Jamais se poderá impedir que a vida reaja em defesa própria, ao sen­tir-se atacada em qualquer ser. Reaparece aqui o conceito já desenvolvido, da reciprocidade das po­sições entre autoridade e dependentes, que não po­dem deixar de influenciar-se mutuamente; e o concei­to de que não se podem alegar direitos, se antes não se cumpriram todos os deveres próprios, em relação àqueles de quem se reclama. Mas se esta é a nova moral, a atual move-se ainda num terreno de luta. Então as condenadas acomodações, que escandali­zam porque propiciam o não-cumprimento dos deve­res, podem aparecer-nos sob uma luz diferente, e se­rem justificados diante da sabedoria da vida que as permite. Isto aconteceria, de fato, porque elas cum­prem biologicamente uma função útil, isto é, a de tor­nar possível uma convivência relativamente pacífica num ambiente de lutas, o que é utilíssimo para dar tempo a que o novo seja assimilado e a que a evo­lução possa amadurecer, para subir mais um pouco


Contra todas as morais, persiste o fato de que a vida humana é um contínuo estado de guerra. Esta é o estado normal, ao passo que o de paz é constituí­do de intervalos, necessários para preparar outra guerra. O que mais liga os homens pela amizade, a força de amor que mais os une, é o ódio contra um inimigo comum. Então os inimigos se abraçam, mas só para que unidos possam vencer o outro. Se a men­tira floresce, é porque na guerra ela é útil. Pode con­vir mostrar-se bons, porque assim se atrai a estima e a confiança e, com a veste do cordeiro, pode melhor desarmar-se o próximo e obter-se mais. As virtudes podem tornar-se ótima astúcia de guerra, para enga­nar e assim vencer o inimigo. Desse estado não nas­ce uma ética única que irmana e une, mas uma éti­ca de agressão e uma de defesa, conforme se perten­ça à classe dos deserdados ou à dos já poderosos. Cada um forja para si a própria moral, segundo seus interesses e posição social, e muda essa moral ao mudar sua posição. Há a moral dos vencedores e a dos vencidos, a moral dos ricos e a dos pobres. Mas quando estes se tornam ricos, e penetram nas altas classes sociais, assumem a psicologia delas, os cos­tumes e a ética respectiva.


Esta luta se desenrola sub-reptícia, escondida sob as aparências obrigatórias de paz e amor, é a substância da vida humana na terra. A moral, em sentido lato, torna-se um meio para enganar os sim­ples que acreditam nas aparências. Infelizmente, da­do que no plano humano a vida tende à seleção do mais forte e astuto, isto não poderá terminar enquan­to o biótipo do ingênuo não for eliminado. Se psicologicamente ele é um fraco, que pode fazer a vida — segundo a lógica da lei vigente no nível terreno — senão procurar liquidar esse biótipo, se ele não souber evoluir conquistando inteligência? Aqui estamos ainda nos primeiros degraus desta, e tudo con­siste em astúcias de guerra. No entanto é necessá­rio percorrê-los, para chegar aos superiores, nos quais se compreenderá a estupidez da guerra e de suas astúcias. Entretanto, enquanto os ingênuos não apren­derem, nada mais lhe resta senão servir de pedestal aos astutos que sabem emergir, escapando às san­ções das leis humanas, que ficam reservadas aos simples que não sabem defender-se. Isto é injusto e horrível. Mas, dados os princípios segundo os quais funciona a vida no plano animal-humano, não pode­mos ter resultados diferentes.


Não pode negar-se que seja bela a moral que o mundo apresenta na vitrine. Em teoria tudo é excelente. Mas seria mister que ela conseguisse fazer o homem subir a um plano superior de vida, onde essa teoria se tornasse prática. Resta a realidade biológica, pela qual o homem vive num nível que não satisfaz o seu ideal. Então, num ambiente de luta, é na­tural que os princípios superiores fiquem torcidos e invertidos, se tudo, ou quase, existe nesse ambiente em função da luta. Fala-se muito de bens espirituais, mas o que vale na terra são os bens materiais, tanto que, para ser compreendido o valor espiritual do homem superior, é necessário que ele seja demonstra­do exteriormente pela riqueza de um monumento ou de um templo, se ele morreu, ou de alta posição so­cial, se está vivo. Se Cristo aparecesse hoje na terra, sem nenhum apanágio terreno, talvez ninguém o per­cebesse. O homem comum carece de um sentido próprio para julgar as coisas superiores e só adquire por imitação o julgamento que o mandam repetir e que circula pela maioria.


Encerremos este assunto com uma anedota signi­ficativa, que resume vários conceitos já expostos. Um missionário que se achava na África, para civilizar os selvagens, explicara com cuidado a um grupo deles o sentido do bem e do mal, para fazer nascer neles o senso moral, base do cristianismo. Para assegurar-se de que havia ensinado bem e que tinha sido compreendido, tomou à parte um dos mais inteligentes e perguntou-lhe: "diga-me então o que é o bem e o mal".


O selvagem pensou algum tempo, e depois for­mulou claramente a sua resposta: "mal é quando o vizinho rouba a minha vaca". O missionário apro­vou. Sem dúvida, roubar é mal, e o ato é moralmen­te reprovável. E acrescentou: "E o bem, que é?" O selvagem respondeu muito depressa, convictamente: "Bem é quando eu consigo roubar a vaca do meu vizinho".


Que vergonha diz, a essa resposta, o homem ci­vilizado, que certamente não teria respondido assim, porque conhece o conceito de bem e de mal. Mas, por que o civilizado não a teria dado? Certamente não seria porque não estivesse convencido de que o selva­gem, do ponto de vista individual, tivesse perfeitamen­te razão. O africano respondeu assim porque era um simples e falava com a ingenuidade do primitivo, que ainda não sabe esconder o próprio pensamento. En­tão a diferença está apenas no fato de que o homem civilizado — que bem gostaria de fazer como o sel­vagem — já aprendeu a não dizer o que lhe atrairia as sanções da lei e a condenação do próximo. A di­ferença não está no fato que o civilizado pense diver­samente do selvagem — tanto que o imitaria de boa-vontade — se o próximo lesado, organizado em so­ciedade, não o fizesse pagar por isso, anulando a indiscutível vantagem dessa ação.


O utilitarista, mais refinado, compreendeu que e muito mais fácil buscar o próprio interesse sem dizê-lo, isto é, sem descobrir os próprios planos, revelan­do a sua estratégia de guerra. Então, a habilidade pode consistir em esconder, e a virtude em falsear, ao invés de dizer a verdade. Nesse caso, a culpa do selvagem seria a sua ingenuidade, que o civilizado não lhe perdoaria porque não a possui, já que se está mais pronto a condenar as culpas que não se tem, do que as que se tem. Estamos num ambiente de lu­ta e não pode impedir-se que tudo exista em função desta. É natural que os ideais também sejam utiliza­dos para esse fim, sendo transformados num manto de hipocrisia, para melhor enganar o próximo. Se esta está tão espalhada na terra, deve haver uma razão; é que nesse plano de vida, ela pode ser van­tajosa, ao passo que, nos planos mais evoluídos ela não é praticada porque é contraproducente. Assim, na terra, a sinceridade pode ser julgada ingenuidade de tolo, inábil para a luta. Acontece, pois, que na prática, a culpa que mais se condena não é a menti­ra, mas o fato de ser tão tolo que se deixe descobrir a mentira; não é não ter defeitos, mas o não saber escondê-los, mostrando assim o ponto vulnerável on­de se pode ser derrotado. Pelo involuído plano bioló­gico em que isto ocorre, não se trata de maldade, mas de afloramentos do subconsciente animal na luta pa­ra sobreviver.


Acha-se o homem numa fase de transição entre a animalidade e a espiritualidade. É natural que, em seu mundo, a teoria que se prega da moral, da bon­dade e justiça, se ache em contraste com a prática, da moral de força e astúcia. Com efeito, o que mais se pune é o erro de deixar-se apanhar em erro. As leis humanas não punem quem seja tão hábil que não se deixe apanhar. A verdadeira justiça é só aquela da qual não se pode fugir, como a justiça de Deus. A humana é uma luta entre legislador e réu, entre acusador e acusado, entre juiz e julgado e ao contrário, na qual vence o mais forte e o mais hábil. Na prática, o maior valor do indivíduo não consiste naquilo que é proclamado em teoria, ou seja, em obedecer à lei, mas na habilidade de saber escapar dela. Lógico que num ambiente de luta, onde reina o culto da força, seja fraqueza obedecer, e valor o rebelar-se.


Como pode uma moral ideal, feita para um mun­do orgânico de ordem, ao qual ela quer levar o nosso mundo humano por meio da evolução, não ser inver­tida neste, que é um mundo caótico, feito de competições? Em nosso ambiente humano, como no caso do selvagem acima narrado, o bem e o mal são conce­bidos apenas em função do próprio eu, ignorando o próximo (o bem é a utilidade própria, o mal o prejuí­zo próprio); ao passo que no plano superior ao qual pertence a moral oficial, o bem e o mal são concebidos em função de toda a coletividade, levando-se em conta o próximo (mesmo o bem alheio é utilidade própria, e o prejuízo alheio é um prejuízo próprio). Também o desenvolvimento mental, nos dois planos ocorre em sentido diverso. Em nosso mundo a inteligência mais apreciada é a que dá fruto imediato na luta, a que serve para. vencer, e não a especulativa, que procura o conhecimento e leva à consciência da Lei. Quem a possui é considerado em geral um ho­mem que vive nas nuvens, um simples que não co­nhece a realidade prática da vida. Esta exige astú­cias para resolver os problemas imediatos e não sa­bedoria que resolva problemas altos e distantes, sa­bedoria que não oferece nenhuma utilidade imedia­ta para a defesa da vida.


O estudo de u'a moral positiva, racionalmente demonstrada, presa aos princípios da vida, não po­dia deixar de revelar-nos também esses seus lados negativos. Tínhamos que analisá-los imparcialmen­te, para compreender a realidade em toda a sua am­plitude. Fizemo-lo para explicar o nosso mundo e compreendê-lo em muitos de seus aspectos, não pa­ra condenar, o que é inútil, já que não modifica nada e não é útil a ninguém, gerando apenas reações. A condenação está em nossas dores. Neste livro, ao invés dos problemas altos e distantes que tratamos nos outros, nós estudamos a realidade de nosso mun­do, tal qual é. Não devemos escandalizar-nos com essa realidade, que tem suas razões biológicas de existir sob essa forma. Cobrir tudo com belas apa­rências é o que menos serve para curar o mal. Ter visto claro, quer as razões pelas quais tudo isto exis­te, quer a grande vantagem de melhorar-nos, pode ser um meio de levar-nos ao bem. Os fatos são fatos. Não podem ser mudados mesmo se forem escondidos, nem pode impedir-se que produzam os seus efeitos.


Não é esta hora de sentar-nos à beira da estra­da, dando-nos como vencidos. Certamente a salva­ção está nas mãos de Deus, mas o homem deve contribuir com todo o esforço para a sua salvação. Não devemos concluir com o desencorajamento e o pessimismo. Assim como o presente superou o pas­sado, que era pior, assim como um futuro melhor su­perará o presente. Vimos que ninguém jamais pode­rá deter a grande marcha ascensional da evolução, dirigida aos objetivos supremos. Onde tudo evolui, também a moral não pode deixar de evoluir. E assim que um dia teremos de chegar à realização vivida da ética ideal, que hoje, na terra, luta para levar o ho­mem a um plano superior de vida, em que triunfará a nova civilização do espírito.

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