sexta-feira, 12 de outubro de 2018

O PROBLEMA DA MORAL II


DO LIVRO   EVOLUÇÃO E EVANGELHO
CAPÍTULO IX   
O PROBLEMA DA MORAL II



Como age a nova moral? Mundo de lu­ta. Evolução por ação e reação entre dirigentes e súditos, por comum abrandamento de costumes. Progressiva eliminação da lu­ta, e da dureza das leis. Em direção a uma moral cada vez mais amiga. A vida, estado de guerra. A ética que se vive nos fatos, e suas conseqüências. A função biológica da mentira. A virtude como astúcia. A liquidação do simples e honesto. Ética emborcada. A psicologia do selvagem e do civilizado. Inteligência prática, para a luta, e não especulativa, para o conhecimento. A moral da nova civilização do espírito.



Dadas as condições atuais do mundo, como fazê-lo evoluir ainda, levando-o a viver a nova moral? Aplicando-a ao real estado de fato, que reações excitará e recebera em resposta, quando se trata de pas­sar seriamente de uma ética pregada a uma ética realmente vivida? Não podemos esquecer que se tra­ta de um mundo em que tudo se baseia na luta, um mundo em que a norma ética teve de aparecer até agora como imposição armada de sanções, resultan­do como conseqüência o desenvolvimento da arte de escapar delas. Há luta entre o evoluído que quer subir e o involuído que não quer subir, luta entre duas leis diferentes que aspiram ao domínio absoluto so­bre o homem.


Ora, é lógico que, nesse ambiente, qualquer inovação tem de ser iniciada de cima, isto é, por parte dos vencedores, que são os únicos, nesse plano, e têm o direito de mando. Se nesse plano tudo funcio­na assim, se esses são os princípios que estabelecem a conduta dos que aí vivem, não podemos sair deles nem mesmo quando queremos estabelecer uma nor­ma ética, embora desça ela de planos superiores, regidos por princípios diferentes. As normas concebi­das nos ambientes mais elevados constituem o que se chama a teoria. O modo com que são recebidas, adaptadas e até invertidas no ambiente humano ter­restre constitui o que se chama a prática. A teoria é bela, resplandecente, mas a tendência é que seja de­turpada e corrompida logo que desce á prática.


A realidade apresenta-nos, então, um espetáculo bem diferente do que se poderia imaginar. 

Quem faz as leis é a camada social superior, que tem o di­reito de mandar porque venceu a batalha da vida.

Se essa camada não faz a lei ética, porque só poucos e excepcionais evoluídos conseguem intuí-la, pode todavia formulá-la em artigos de lei, dosá-la e, sobre­tudo, enchê-la de sanções que, na terra, são as coisas mais importantes, se não quisermos permanecer no campo teórico. E então a ética, que no Alto é outra coisa — ou seja, norma espontânea de convicção — também se torna luta, para adaptar-se à lei da terra em que desceu. 
É sob esse aspecto que a moral apa­rece em nosso mundo, fato que pode parecer estra­nho e contraditório, mas do qual compreendemos as razões. A ética resolve-se assim, na prática, numa luta entre a classe superior que impõe as leis, e as classes inferiores que devem aceitá-las, luta entre a classe dos juizes que estabelecem a culpabilidade e condenam, e a dos julgados culpados, que são con­denados se não obedecem.


Podemos perguntar-nos agora: 
como consegue a vida evoluir, se a descida dos ideais á terra está submetida a esse sistema que a converte em luta e assim paralisa seu efeito mais importante, que é o de pro­vocar uma melhoria? 
Eis então o que acontece: 
o progresso é um impulso íntimo, que age de dentro, indistintamente sobre todos, tanto em quem manda, como em quem obedece. 
A evolução não pode submeter-se ao contraste entre os dois impulsos opostos em luta; então, ao invés de ficar dominada por ele, domina-o e o utiliza. Não podendo caminhar em li­nha reta, avança tortuosa como um rio, por impulso e contra-impulso, por ação e reação entre as duas par­tes contrárias que, assim, acreditando eliminar-se, co­laboram substancialmente na mesma direção, que é a da evolução. 

Os dois grupos opostos influenciam--se mutuamente Logo que um progrida um pouco, o outro recebe e assimila os benefícios, civiliza-se, abranda seus costumes, obedece com um pouco mais de consciência e conhecimento, mais espontaneamente convencido porque experimentou as vantagens de viver na ordem. São a luz e a bondade que começam a chegar, desmantelando aos poucos o castelo das coações e sanções, duro ônus que pesa sobre todos, e de que agora é possível começar a libertar-se, por­que cada vez se torna menos necessário. 
Isto permi­te aos dirigentes a mitigação das penas, abandonan­do cada vez mais o método psicologicamente impo­sitivo de terrorismos, indispensável para disciplinar seres rebeldes e ferozes. 
Antes, não se podia assim proceder sem prejuízo destes, que teriam interpreta­do qualquer ato de bondade como sinal de fraqueza e autorização à devassidão. 

A idéia do inferno não foi criação de um grupo sacerdotal, mas uma neces­sidade psicológica, imposta pelo estado de involução em que se achava o homem no passado. Sem esses terrorismos hoje inaceitáveis, o edifício ético, em virtu­de de sua estrutura mental, teria caído na anarquia. Mas é lógico que tudo isso deva ir desaparecendo, automaticamente, sem danos, logo que o homem, por ter-se civilizado mais, o permita.

Caminho lento, gradual e difícil, mas caminho fa­tal. Sem dúvida os dirigentes, por causa da natureza de seus súditos, têm necessidade de defender-se e não podem abandonar-se a excessivos atos de bon­dade, sem que seja invertida a ordem que a lei ética deseja, tornando-se anti-ético, porque impediria que a vida atingisse seus objetivos. 

Para o involuído, a éti­ca precisa estar armada de chicote, pois só assim o le­vará ao bem. Mas não restam dúvidas de que o dever da iniciativa dos melhoramentos cabe à classe dos dirigentes (abolição da pena de morte, da escravidão, melhoramentos no sistema de prisões, mitigação da pe­na, justiça econômica, previdência social etc.)., Essa iniciativa deverá ser levada até ao limite máximo possível, como grau de bondade que o estado de ci­vilização atingido já permite. 

Dentro desses limites, as classes menos evoluídas da sociedade poderão restituir à classe superior o bem que recebem, na for­ma de um abrandamento de costumes. 

A finalidade da lei é sobretudo de educar, ensinando, à força de sanções, a viver mais civilizadamente, pronta a aban­donar esse sistema, logo que os súditos aprendam a lição, e demonstrando assim não mais necessitarem desses métodos.

Na feroz Idade Média realizavam-se as execuções capitais e as punições corporais nas praças, à vista de todos, usando o sistema terrorístico, julgando-se educar o povo no respeito para com os detentores do poder. Mas isto também educava o povo no gosto do crime, nunca dominado com esse sistema que, no fundo, só demonstrava o medo que os domi­nadores tinham de ser derrotados. Com o tempo, o trabalho subterrâneo da evolução abrandou tudo, tanto que esses espetáculos aos quais a multidão acorria com satisfação, agora gerariam nojo e con­denação.

Assim, por golpes e contragolpes, realiza-se a evolução e a humanidade progride para formas de vida que contêm cada vez menos o mal e cada vez mais o bem. 

As massas, educando-se cada dia mais no bem, permitem aos dirigentes e às leis que sejam melhores, e estes, tornando-se melhores, educam as massas cada vez mais no bem. Esse é o sistema uti­lizado pelo progresso num mundo de luta, onde isto pareceria impossível, precisamente por causa da luta. O progresso, paradoxalmente, realiza-se por meio da luta, isso nos mostra como é profunda a sabedoria da vida.

A repressão forçada é um mal necessário nos tem­pos involuídos; mal que se destina, porém, a ser superado. Não é a repressão que liberta a sociedade de seus males, mas a mecânica progressiva que acabamos de ver. 
Ao contrário, a repressão aumenta a reação, a violência gera a violência e, em última análise, o mal só pode ser combatido com o sistema da não-reação, e só pode ser vencido verdadeira­mente se o neutralizamos com igual medida de bem. 
Muitos abusos e delitos nascem, freqüentemente, de um abuso e delito maior, o de não reconhecer nos do­minados os direitos que os dominadores reconhecem para si mesmos. Os princípios superiores da ética são tanto mais dificilmente aplicados, quanto mais poderoso e ativo é o sistema de luta que vigora na terra, para a qual eles são trazidos.

A humanidade futura será mais inteligente e com­preenderá a enorme vantagem de comportar-se de modo diferente. 

No fundo, os conceitos de moral e evolução coincidem, como os de anti-moral e involução. Ao evoluir, o indivíduo torna-se esponta­neamente moral, como ao involuir se torna anti-mo­ral. Por natureza o evoluído é mais moral que o in­voluído. Moral é evoluir, anti-moral é involuir, como viver uma vida estéril que nada produz de bom nem para si, nem para os outros. Moral lógica e utilitária, baseada no utilitarismo da vida, que não é de superfície nem míope visando a efeitos imediatos, mas profundo e de longo alcance, substancialmente frutífero. 
Definimos a dor como um estado de desarmonia, de­vido à própria posição da desordem. A dor deriva, com efeito, da desordem, que leva os indivíduos a luta, fazendo-os chocar-se uns contra os outros. 
É ló­gico, pois, que ela tenda a desaparecer com a evolução que leva à ordem, que pacifica os indivíduos, fa­zendo-os caminhar disciplinadamente, cada um em seu lugar, sem mais chocar-se com o vizinho, ofen­dendo-o.


Como a fera que se torna menos feroz e perde as garras ao evoluir, ou seja, como a evolução reali­za uma progressiva eliminação da luta pela vida, assim a moral, à proporção que evolui, se torna me­nos opressora, menos terrorística, menos armada de duros castigos. Com a evolução tudo tende à harmo­nia, à alegria, à bondade. Torna-se o homem mais livre e ao mesmo tempo adquire maior sentido de responsabilidade. Quem quiser subir aproveitará, de­pois as vantagens; quem não quiser subir, permanecerá em seu nível de vida, com todos os males ine­rentes a ela.

Em substância, a nova moral diz ape­nas: civilizai-vos e vivereis muito melhor. 

E se agra­da a todos viver melhor, é lógico que, descoberta a estrada para atingir isto, se ache conveniente subme­ter-se ao esforço indispensável para percorrê-la. A ética atualmente em vigor na prática, embora teori­camente bela, é torcida pelos instintos elementares, cheia de trasbordamentos do subconsciente e de ilu­sões psicológicas, devidas a perspectivas erradas, produzidas pela forma mental que dirige o homem em seu atual plano de vida. Moral em que reapare­ce a cada passo, nos fatos, o cálculo do próprio inte­resse, o medo do patrão, o desejo de evitá-lo, enga­nando-o com escapatórias, o contínuo sentido de luta para tornar-se o mais forte e assim vencer a todos.

Esse triste estado deve ser abandonado e supera­do com formas de vida mais altas e felizes. Não mais tantas condenações, que sufocam a vida, mas esfor­ços inteligentes para melhorar, andando ao encontro dela.
 U'a moral amiga, que nos levará ao bem querendo-nos bem, e não u'a moral inimiga, em que o instinto humano de luta e agressão encontra desa­fogo. É preciso afastar-se cada vez mais dos grandes absurdos e aberrações do passado, como as guerras santas, as inquisições., os infernos eternos, a benção das armas e as condenações em nome de Deus, como de toda coação espiritual que leva à aceitação forçada, como substituto da aceitação espontânea, por convicção.

 U’a moral fraterna e pacífica de onde desapareceu a luta, em que, sendo tudo lógico e cla­ro, não pode aparecer a mentira, porque é contraproducente. Para eliminar todos esses efeitos maus é mister eliminar as causas. Não é uma moral para uso dos vencedores, em detrimento dos vencidos, mas uma moral de justiça em que há lugar para os direi­tos e à vida de todos. Então a classe dos rebeldes à ordem social não teria mais razão de existir e desa­pareceriam essa praga, essa luta e esse perigo. Mas, enquanto dominar u’a moral de classe, ao invés de u’a moral biológica imparcial, a humanidade terá de continuar a luta, e não poderá purificar-se de seus elementos mais daninhos.


Estas são as regras do jogo e não podemos sair delas:

 se semearmos justiça, colheremos ordem e paz; mas se semearmos injustiça só poderemos colher revolta e mentira.
 Se, no próximo, quisermos enga­nar a vida, a vida, através do próximo, nos engana­rá. Esta é uma realidade à qual não podemos esca­par, mesmo se tudo fizermos em nome de Deus, da pátria, de um ideal, do bem da humanidade.
Esta é a verdade a que tudo se reduz, para além dos esque­mas filosóficos, religiosos, ideais e sociais. As aparências não contam. Se não formos sinceros, teremos mentira; se oprimirmos teremos revolta; se não sou­bermos mandar para o bem alheio, não obteremos obediência.

* * *

O ponto fraco da moral vigente é sempre o de permanecer imersa no plano da luta, de ser uma expressão dela, de existir em função dela, permane­cendo assim uma moral de involuídos. A causa primeira dos males daí derivados é o princípio do mais forte, que domina nesse plano, princípio que leva à derrota. Segundo esse princípio a verdade é estabe­lecida pela maioria, com suas idéias, para satisfazer a seus instintos e interesses. Cabe-lhe esse direito, porque ela é numericamente mais forte. Mas quais são as idéias da maioria, que certamente não pode representar uma elite selecionada? São as que corres­pondem aos impulsos mais elementares da vida. E é a essa altura, própria dos involuídos, que os evoluídos são constrangidos a nivelar-se. E então, mes­mo que a verdade possa descer do Alto pela revelação, o que a humanidade aceita, aplica e vive, é estabelecido pelos limites impostos pela capacidade de compreensão das massas, que não sabe ir além de um consentimento instintivo do subconsciente, que re­presenta a parte mais involuída, a animal do ser hu­mano. São estas as forças que, através dos fatos, ten­dem a dirigir a atividade humana e com a qual a éti­ca tem de contar, pagando o seu tributo, ainda que, na teoria, essa atividade pretenda justificar-se pro­clamando-se conseqüência e aplicação de princípios absolutos, e sendo praticada em nome de Deus e dos mais altos ideais. A realidade positiva que aparece nos fatos é a satisfação do imperativo dos interesses da vida, que quer atingir sua finalidade. Constrói-se assim o castelo da ética sobre bases escusas, que se enterram nas vísceras do mundo biológico e que pouca afinidade tem com abstrações lógicas e teológicas, onde a ética pretende fundamentar-se para assumir valor absoluto, acima de nosso contingente. Como o homem construiu para si uma idéia toda antropomórfica da Divindade, para seu uso e consumo; como se colocou na posição de único objetivo da criação, num planeta que estava no centro do universo, em função de valores considerados absolutos, por exemplo a imobilidade da terra e a solidez da matéria; do mes­mo modo o homem construiu para si uma ética na ba­se de ilusões psicológicas, que a observação acurada das mentes mais adiantadas vai gradualmente desfa­zendo com a análise, à proporção que, com a evolu­ção, se abre a inteligência humana.


Justifica-se essa forma mental, responsável pelo conceito de verdade absoluta, através do desejo instintivo de atingir a última meta do conhecimento Acreditam assim que a atingiram e a possuem, ao passo que para o homem, situado no futuro, só são possíveis verdades relativas e em evolução. De fato é. isto o que a realidade nos mostra apesar das mais absolutas e dogmáticas afirmações em contrário. Di­ante do transformismo universal, a que nenhum ser pode escapar porque está imerso no fenômeno da evolução, o absoluto imutável só é admissível como distante meta final, ainda não tocada, e só atingível no término do processo evolutivo. Até esse momento, tão distante que escapa à avaliação de nosso concebível, só podemos admitir para o ser uma progressiva suces­são de diversas aproximações da verdade, como eta­pas da contínua conquista do conhecimento. A ética é apenas um dos aspectos dessa verdade e, como tal, também só pode ser relativa e em evolução. Eis en­tão que a ética, como o conhecimento e tudo o mais, é dada pela posição que o homem atingiu ao longo da escala da evolução, e existe em função desta, ou seja, do grau de desenvolvimento alcançado, o que estabelece, em todos os campos, os limites do
conce­bível humano.


Surge, então, na terra, a possibilidade de existi­rem diversas éticas, relativas ao grau de evolução atingido. 
É verdade que a maioria estabelece um ní­vel médio, proporcional à sua sensibilidade e compreensão, adaptado às massas que, nele se encon­tram à vontade. Mas é também verdade que os mais evoluídos podem considerar essa ética como al­tamente imoral, já que encara como lícito e natural o que a eles pode parecer até mesmo um crime.

A mo­ral dos selvagens atinge a antropofagia. A moral do homem civilizado admitiu, até há pouco tempo, a es­cravidão, e ainda admite, em vários casos, o direito de matar o seu semelhante. Quanto mais civilizado é o ser, e ilícitas, muitas coisas que a moral comum permite, mais é evoluído e mais fica horrorizado como os seus semelhantes realizam, sem nenhum sentimen­to de culpa, atos que seriam, para ele, inadmissíveis. 
Esse tipo biológico poderia então fazer uma lista de crimes que a ética comum, tanto religiosa como civil, admite tranqüilamente, sem perceber a sua atrocida­de, com a mesma ingenuidade com que — em pro­porção — o antropófago devora o seu inimigo.


Veja­mos alguns desses casos.

1) Julgarmos não em função da justiça, imparcial­mente, mas em função da força de que o julgado dispõe: seja em posição social, poder econômico, capa­cidades bélicas etc., chegando assim a uma justiça que funciona de modo exemplar apenas para o fa­minto e inerme ladrão de pão ou de galinhas


2) Julgarmos e condenarmos o próximo sem conhe­cer suas condições reais e só em função deles mes­mos. Sermos tolerantes quando nos outros encontramos os nossos próprios defeitos, pelos quais também nós poderíamos ser condenados primeiro, se os 
con­denássemos; e tornarmo-nos desapiedadamente in­transigentes e modelos de virtude, quando nos outros podemos apontar defeitos que não temos, pelos quais, portanto, não podemos ser alvo do retorno de acusação.


3) Servirmo-nos das altas coisas do espírito e de Deus como meio para alcançar vantagens materiais, para vencer na vida e nos afirmarmos no mundo, prostituindo-as até fazer delas instrumento de astúcia de guerra. Em outros termos, servirmo-nos da política para satisfazer o próprio orgulho ou para nos tornarmos uma potência social e econômica, e não para aju­dar a nação; servirmo-nos da religião para assegurar uma posição e não para cumprir a missão de levar o bem às almas; trairmos os princípios que dizemos pro­fessar, usando-os para outros fins, enganando a res­peito dos verdadeiros métodos de vida, bem camufla­dos sob um belo manto de hipocrisia, e, praticando na realidade, sob tão belas aparências, o jogo duplo do Maquiavelismo.


4) Segundo a moral em vigor, é lícito vivermos no desperdício do supérfluo, enquanto outros nossos se­melhantes carecem do estritamente necessário, assim como é lícito entrarmos na posse de bens que não fo­ram ganhos com o próprio trabalho.


5) É lícito roubarmos quando com isto damos pro­va de uma inteligência, que sabe enganar a justiça estabelecida pelas leis. Saber escapar astuciosamen­te, aos castigos, pode até merecer como prêmio a velada estima da opinião pública, que não a regateia a quem saiba vencer e tornar-se poderoso, e que se torna incondicionalmente admirado só por isso, rele­gando ao esquecimento os meios utilizados, desde que atingiu resultados tão brilhantes e invejados.


6) É lícito, com a benção de Deus e as honras da pátria, matarmos quando isto corresponde aos inte­resses do próprio país ou dos detentores do poder. Aos maiores carrascos da humanidade, que realiza­ram as maiores matanças bélicas, foram tributadas as maiores honras da história.


A lista poderia continuar. Estes são alguns dos delitos que a ética humana atual reconhece como lícitos, na realidade, embora os condene teoricamente; delitos que qualquer um pode tranqüilamente come­ter, continuando pessoa de bem e cidadão estimado na sociedade, como bom cristão, ao qual as religiões prometem o paraíso. Assim a maioria cria a própria ética, satisfazendo seus instintos, aos quais obedece de boa fé, acreditando permanecer na verdade e na justiça. Não tendo atingido ainda o nível evolutivo suficiente para perceber o que está fazendo, a pessoa se julga honesta e sincera. Nada mais se pode fazer, então, senão repetir com Cristo: “Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. E para compreender o 
com­portamento desses seres, temos de raciocinar com a inteligência da vida, que os faz movimentar-se por meio desses instintos, sem que eles saibam o porque. Eis que então aparece, além da ética pregada e teorica­mente professada — artificiosa construção do pensa­mento — esta outra moral biológica e realística, em que a vida impõe as férreas leis de seu plano de evolução.


Esta realística moral biológica pode parecer mais livre, porque permite muitas coisas que são proibidas mais acima; entretanto nem por isso é menos dura. Justamente porque mais involuída, está armada com reações férreas, para manter na linha o involuído, menos sensibilizado. O homem comum sente-se livre e por isso acredita que lhe é permitido poder realizar impunemente qualquer desejo, não imaginando que vive constrangido nas malhas de uma rede de ferro, estabelecida pela Lei. Como esta lhe deixa liberda­de de ação ele acredita poder fazer o que quer e não percebe que a cada movimento seu corresponde uma inexorável reação. Assim o homem faz o que quer, mas a lei é um sensibilíssimo organismo de forças que, à mínima violação de sua ordem, responde com um proporcionado e adequado contragolpe, que coloca cada coisa em seu lugar, de acordo com a justiça. Essas forças são como tentáculos que atingem quem errou contra a lei, sem possibilidade de fuga, em qualquer tempo ou lugar que ele se encontre. O ho­mem, acreditando-se totalmente livre, está imerso nes­sa atmosfera de ordem imposta pela lei; faz parte des­se organismo de forças que o vinculam de todos os lados e no qual precisa saber manobrar com sábia retidão, se não quiser depois ser coagido a suportar tremendos contragolpes como reação da lei.


Justamente nesse ambiente — de cuja verdadei­ra natureza o homem não pode tomar conhecimento por causa da ignorância — é que o homem gosta de mover-se, segundo seus loucos caprichos, perseguindo miragens de dominador, que pretende impor-se a tudo. É fácil imaginar que dilúvio de dores daí re­sulte. E é isso que de fato vemos acontecer no mun­do. É como se um aviador quisesse voar sem conhe­cer nem respeitar as leis do vôo, e ao contrário, pre­tendesse impor-se a elas, para dobrá-las, obrigando-as a funcionar segundo sua vontade. O resultado lógico seria que, ao invés de mudar as leis do vôo, o aviador caísse ao solo pagando as conseqüências fatais de sua louca pretensão. Qualquer técnico que conheça aquelas leis poderia matematicamente ex­plicar-lhe a necessidade lógica das conseqüências.


As primeiras características do involuído são a sua ignorância e o instinto de revolta, de modo que, aumentando essas qualidades com a involução, au­menta proporcionalmente a força dos golpes recebi­dos. Mas é justamente desses golpes maiores que a insensibilidade maior do involuído precisa, para aprender a conhecer a lei e a não ofendê-la com a própria revolta. Os meios para educar são enérgicos, na medida adaptada à capacidade perceptiva dos alunos. Estes podem semear a desordem que quise­rem, mas só para si, e para depois pagarem os pre­juízos, à própria custa. Ninguém pode impedir que tudo esteja proporcionado em perfeita ordem, na lei.


O objetivo da escola da dor é ensinar a obediência, ensinar a saber movimentar-se seguindo a ordem da lei e não chocando-se com ela, provocando rea­ções. Todavia o homem é um rebelde por natureza, e julga-se honrado e sábio, quando sabe impor-se a todos, e se gaba da arte de violar a lei, conseguindo depois escapar às suas reações. Entre o involuído e a Lei estabelece-se assim não um regime de consentimento e harmonia, mas como um duelo em que o ho­mem desejaria superar a Lei, a qual lhe aparece não como uma norma de sua felicidade, mas como um inimigo que deva ser dobrado e enganado. Acredi­ta-se desta forma dar prova de inteligência, usando de astúcia ao querer lograr nas barbas de Deus e dos homens. Trágico mal-entendido, que escancara as portas à dor, necessária para corrigir esse erro. A lei não é um obstáculo que valha a pena superar com bravura, mas um guia amigo que quer levar-nos à felicidade que procuramos destruir, quando nos re­belamos contra a Lei. Com a desobediência semeamos dor, onde a lei, se fosse obedecida, faria nascer alegria.


E' assim que, através dos oceanos de todos os so­frimentos, o homem aprende a conhecer os artigos da Lei. É assim que, pagando pela desobediência, se aprende a arte de obedecer. Desse modo a Lei, duplamente sábia, compensa a loucura do homem, im­pelindo-o, apesar de tudo, a realizar a própria evolução. E quanto, mais o homem, na sua luta contra a lei, procura escapatórias para fugir de seu castigo, tanto mais esta o chicoteia para trazê-lo à sua ordem. O jogo que vale para as leis humanas, que é possí­vel enganar, não vale para a Lei de Deus, que não se pode lograr. Nossa ignorância pode ser tão gran­de que nos faça crer seja isto possível. Mas não mu­da a realidade dos fatos. Quando julgamos que fo­mos mesmo sabidos, conseguindo burlar a Lei e es­capar de suas sanções, explode a sua reação maior, com a tempestade corretiva. Aprende-se, então, a li­ção mais salutar, a que nos ensina que o erro maior, que se paga mais caro, é justamente o de jul­gar seja possível impor-se à Lei com a força e escapar das conseqüências da desobediência com a astúcia.


As estradas de fuga abrem-se diante de nossos olhos, amplas e convidativas. Os ingênuos acredi­tam que fizeram a grande descoberta e encontraram os atalhos da felicidade. Lançam-se a eles aos mon­tões, como moscas ao mel. Que convite: ganhar a bom preço, com pequeno esforço Como resistir a isso. Mas a Lei é justa e não admite se possa obter uma vantagem sem ser conquistada e merecida. Essas soluções cômodas são uma ilusão; esses cami­nhos fáceis que parecem conduzir à felicidade são redes de fundo sem saída, becos cheios de dor, e pa­ra sair deles, é mister caminhar para trás, engolindo o erro e tornando a percorrer a íngreme subida por todo o caminho percorrido na descida fácil.


Há uma estrada que não engana e verdadeira­mente resolve o problema, sem trazer-nos sofrimen­tos. Mas esta é pequena, estreita, lateral, e ninguém lhe dá importância; é íngreme e incômoda, e não atrai os caçadores de vitória, fáceis. Termina numa passagem muito estreita, e para entrar nela é preci­so estar nu, sem nenhuma roupagem de mentiras, despido dos enfeites das coisas terrenas, sutil e leve, espiritualizado e livre do peso da matéria. Aquela passagem estreita é a honestidade. Sé passam por ela os justos, os sinceros, os obedientes à Lei. Seria possível sair por ali sem chocar-se com as reações da Lei, mas é difícil e ninguém pensa nisso. Para con­segui-lo são necessárias qualidades que não se tem e que são duras de conquistar; requerem-se esforços que não são agradáveis fazer. Por isso ninguém olha para esse lado, onde, no entanto, está o caminho de saída a todos os sofrimentos. E são preferidas as ou­tras estradas, amplas e convidativas, mesmo que depois não conduzam, como é lógico, senão ao enga­no. É justo, está de acordo com a Lei, que quem quer enganar seja enganado; que quem se glorie do sa­ber lograr, seja logrado. Depois diz que a vida é ilu­são. Mas esta foi desejada pela psicologia de astú­cia que ilude primeiro quem acreditou poder iludir a Lei.


Quando depois, por obra de seres mais adianta­dos, desce do Alto uma ética, norma de conduta que nos leva a evitar esses males, mesmo assim o homem, como fazia com a Lei, procura todas as escapatórias para lográ-la. O involuído primitivo não sabe respon­der de outra forma. Quando, por maturidade evolu­tiva, falta a consciência das próprias ações, a ética poderá impor normas mecânicas e exteriores, mas não poderá improvisar essa consciência. Nesse ní­vel, a ética reduz-se então, à prática formal daque­las normas e, realizadas elas, o indivíduo sentir-se-á tranqüilo em sua consciência, convencido de que na­da mais se deva nem se possa fazer. Nesse nível não se pode exigir mais que esse cumprimento formal, já que falta a sensibilidade necessária para perceber o peso das coisas espirituais. Para chegar a percebê­-las, os imaturos as revestem de formas materiais, procurando assim segurá-las, ao dar-lhes corpo con­creto, porque de outro modo ficariam inatingíveis, perdidas no mundo do super-concebível. É assim que se pode chegar a uma ética formal exterior, que os involuídos praticam de perfeita boa-fé, julgando-a uma ética de substância, mas que não pode deixar de aparecer aos olhos do evoluído como uma menti­ra e uma traição de princípios. E no entanto não se pode culpar ninguém, porque ninguém pode dar o que não tem, nem ser mais do que é. Não se pode exprobrar a planta de ser planta, o animal de ser ani­mal, nem a qualquer criatura de só saber existir con­forme as qualidades que possui. A condenação ou o prêmio cada um o traz em si, com a própria inferio­ridade ou com a própria superioridade. Aos involuí­dos não se pode culpar se a vida, no seu nível, não sabe funcionar de forma mais adiantada Na reali­dade não há nenhuma vantagem em ser involuído, e quem não sabe viver melhor, merece compaixão pela sua desgraça. Ninguém mais do que o ignoran­te é vítima, e, acreditando mandar, é obrigado a obe­decer a leis que não conhece. Não é a eles mas ape­nas ao evoluído consciente, que se pode pedir que compreenda o mecanismo de seus instintos e rea­ções, que constituem a chave de seu comportamen­to, a verdadeira moral íntima que o ser sente e é le­vado a viver, não lhe importando qual seja a moral oficial que, por outros motivos sobrepostos, teve de aprender a representar, formalmente, na prática. Só assim pode compreender-se o verdadeiro jogo da vida, que, de modo geral, é duplo, porque a primeira coisa que o instinto ensina ao involuído que tem de viver em regime de guerra, é esconder suas próprias e verdadeiras intenções, como ensina o Maquiavelis­mo: parecer sincero e honesto, sem o ser.


Assim, o sistema da luta, índice seguro que esta­belece a inferioridade do plano evolutivo humano, não é eliminado pela ética para dar lugar a um regi­me de justiça, como se presume; mas é apenas escondido nos subterrâneos da vida, onde a luta con­tinua mais exacerbada que nunca, mais sutil e astuta, e nem por isso menos feroz. Esta é a ética verda­deira, com a qual é preciso, em última análise, fazer as contas, a que rege o mundo e constitui a substância de todos os problemas. Enquanto permanece no campo teórico e, embora muito alta, não lesa interes­ses concretos; enquanto não aborrece e nada custa respeitá-la, é respeitada. Se por isso pôde formar-se e dominar uma ética feita de altas teorias e belas práticas, sem tocar na substância da vida, porque aí a coisa muda de figura e recrudesce a luta. Mas logo que a ética quer tocar na realidade dos interesses tangíveis, que todos sentem, então afloram aquelas verdades que são na prática as verdadeiras verda­des da vida, acima das belas aparências. Acaba então o jogo das belas palavras e chega-se aos fa­tos. Se aparece um interesse ou um prejuízo concre­to, toca-se na realidade da vida, que reage, e surge o verdadeiro jogo. O outro, o das belas teorias e das exterioridades formais, pode continuar imperturbá­vel, pois todos sabem que não é o verdadeiro. Mas se tocarem no ventre e no sexo, nos bens e nas satis­fações materiais, todos compreenderão que se age seriamente. Não são os problemas do conhecimento, mas estes é que constituem os grandes problemas do subconsciente das massas, aqueles segundo os quais caminham as correntes da psicologia coletiva, aque­les de que mais se ocupa o pensamento da maioria — o que estabelece a verdade dominante. Só quan­do, alem das palavras e práticas convencionais, sou­bermos ver esse outro recôndito pensamento escon­dido entre as dobras da aparência, só então podere­mos compreender a verdadeira natureza do jogo da vida e da ética, e a verdadeira razão das ações humanas.


A ética do mundo faz muita questão de distinguir um grupo do outro, seja por fé, religião, partido etc., e não a distinguir honestos de desonestos, onde quer que estejam. Isto justamente porque o maior interes­se destes últimos, que são os mais espertos, é perma­necer misturados em todos os grupos com os hones­tos, que são os mais fáceis de serem subjugados.

Assim, sob outras aparências, pode fazer-se o verda­deiro jogo da vida, que é o de vencer na luta, e pode aplicar-se a verdadeira ética vivida, que é ética de guerra, pela qual os mais fortes e astutos podem atingir os altos postos, dominando os mais fracos e simples. Eis a verdadeira ética, que vigora sob as aparências da moral oficial, ética que oferece a pal­ma do vencedor a quem souber fazer o jogo da vida as expensas de quem não sabe fazê-lo.


Essa é a verdadeira face da verdade na terra. O honesto faz todas as despesas e parece injustiça. Mas nem tudo acaba aí. Os melhores são expulsos do ambiente da terra, o que constitui, em última aná­lise, uma grande vantagem para eles, pois lhes per­mite tornar-se cidadãos de mundos mais evoluídos, enquanto os piores, que se acreditam vencedores, continuam empilhados no pântano terrestre, para agredir-se mutuamente, segundo seu instinto de luta, fazendo assim com as próprias mãos o seu inferno. Saber triunfar no mundo, pela força ou pela astúcia é, na verdade, o maior prejuízo, porque significa fa­zer parte de planos inferiores de vida e ser condenado a permanecer aí, suportando todos os seus ma­les E eis que, em última análise, quem vence na vida é a justiça de Deus, pela qual cada um volta se­gundo o seu lugar e merecimento. Quem acredita chegar em melhor situação que antes, por seguir vias transversas, na realidade, chega em pior condição. Quem pratica o mal, acreditando com isso vencer, faz mal na realidade a si mesmo e perde, devendo ainda por cima pagar o próprio dano. Só a igno­rância do involuído pode acreditar seja possível tal absurdo uma derrota para Deus, pela impotência de sua Lei de justiça ou que Ele pudesse ser vencido pe­la prepotência ou pela astúcia da criatura.


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A pior moral é a de não acreditar no que se pre­ga e, consequentemente, não o praticar. Com isto se engana a Deus, incorrendo-se em culpa, e a nós mes­mos acarretando prejuízo. A hipocrisia é a pior conclusão de todas as morais. Então os mestres ensinam e os discípulos ouvem, mas na realidade tudo se faz por outras razões. Pode formar-se um acordo tácito, porque de ambas as partes se sabe que a vida é outra coisa. Os primeiros partem o pão da verdade, os segundos o aceitam segundo as regras estabelecidas, e tudo fica na mesma. Respeita-se a tradição, acredita-se no que se deve, cumprem-se as práticas regulamentares A Que mais pode exigir-se? Todos sa­bem por experiência própria que a vida, na reali­dade, é bem diferente da teoria que se prega, e, na prática, domina outra verdade, pela qual não é o me­lhor, e sim o mais forte que vence. E desta verdade não se fala, porque é muito mais honroso aparentar-se um ser superior, cheio de qualidades nobres. Assim os ideais na terra podem oferecer uma utilida­de na prática. Podem conciliar-se as duas exigências opostas, ou seja, salvar o espírito, continuando a pra­ticar a outra lei do mundo.


A culpa não cabe toda aos dirigentes. Sendo a minoria, tiveram que adaptar-se à maioria, que representa o maior impulso. A maioria suporta de má vonta­de os moralistas, procurando expulsá-los, e não os su­portaria de modo algum se eles quisessem agir de ver­dade. Durante séculos realizou-se, assim, a seleção dos que perturbam menos, por terem achado a fórmula da convivência, resolvendo o difícil problema por meio de acomodações. Nem isto constitui toda a cul­pa. Se pode parecer traição de princípios, este é o único modo que torna possível certa dose percentual de sua aplicação, que em sua totalidade seria impos­sível num mundo assim. Desta forma, uma parte da conduta humana está entregue à hipocrisia. Mas que fazer, se a realidade da vida na terra está nos antí­podas dos ideais?


As próprias religiões partem do princípio de que o mundo é composto de pecadores. As leis civis tam­bém partem do pressuposto de desonestidade do ci­dadão, e ao lado de cada norma colocam de imediato o castigo pelo não-cumprimento. O ponto de partida é sempre a presunção de que se trata de um rebelde, cuja vontade de desobediência é admiti­da implicitamente e presumida a priori. Tudo isto é a conseqüência lógica da lei que vigora no plano biológico humano, lei de luta de todos contra todos, baseado no ataque e na defesa. Se existem essas pre­sunções, porque a maioria dos indivíduos é feita efetivamente de pecadores e de cidadãos que gostariam de não obedecer. Eles são, portanto, proporcionais a tal pressuposto e relativo tratamento, são adequa­dos a tal mundo e selecionados na arte de defender-se, o que é indispensável à sua sobrevivência. Pro­va-o o fato de que estes, se não são como se presu­me que sejam — isto é, se são verdadeiramente bons e honestos — são rapidamente liquidados na realida­de. Quaisquer que sejam os princípios teoricamente proclamados, a lei vigorante, de fato, é a da luta, do ataque e da defesa, pela qual a reação do indivíduo contra qualquer autoridade pode explicar-se com o instinto, como legítima defesa, provocada pelo fato de que, quem tem em mãos o poder, costuma usá-lo pa­ra vantagem própria ou da classe, e não como uma função social para o bem de todos. Jamais se poderá impedir que a vida reaja em defesa própria, ao sen­tir-se atacada em qualquer ser. Reaparece aqui o conceito já desenvolvido, da reciprocidade das po­sições entre autoridade e dependentes, que não po­dem deixar de influenciar-se mutuamente; e o concei­to de que não se podem alegar direitos, se antes não se cumpriram todos os deveres próprios, em relação àqueles de quem se reclama. Mas se esta é a nova moral, a atual move-se ainda num terreno de luta. Então as condenadas acomodações, que escandali­zam porque propiciam o não-cumprimento dos deve­res, podem aparecer-nos sob uma luz diferente, e se­rem justificados diante da sabedoria da vida que as permite. Isto aconteceria, de fato, porque elas cum­prem biologicamente uma função útil, isto é, a de tor­nar possível uma convivência relativamente pacífica num ambiente de lutas, o que é utilíssimo para dar tempo a que o novo seja assimilado e a que a evo­lução possa amadurecer, para subir mais um pouco


Contra todas as morais, persiste o fato de que a vida humana é um contínuo estado de guerra. Esta é o estado normal, ao passo que o de paz é constituí­do de intervalos, necessários para preparar outra guerra. O que mais liga os homens pela amizade, a força de amor que mais os une, é o ódio contra um inimigo comum. Então os inimigos se abraçam, mas só para que unidos possam vencer o outro. Se a men­tira floresce, é porque na guerra ela é útil. Pode con­vir mostrar-se bons, porque assim se atrai a estima e a confiança e, com a veste do cordeiro, pode melhor desarmar-se o próximo e obter-se mais. As virtudes podem tornar-se ótima astúcia de guerra, para enga­nar e assim vencer o inimigo. Desse estado não nas­ce uma ética única que irmana e une, mas uma éti­ca de agressão e uma de defesa, conforme se perten­ça à classe dos deserdados ou à dos já poderosos. Cada um forja para si a própria moral, segundo seus interesses e posição social, e muda essa moral ao mudar sua posição. Há a moral dos vencedores e a dos vencidos, a moral dos ricos e a dos pobres. Mas quando estes se tornam ricos, e penetram nas altas classes sociais, assumem a psicologia delas, os cos­tumes e a ética respectiva.


Esta luta se desenrola sub-reptícia, escondida sob as aparências obrigatórias de paz e amor, é a substância da vida humana na terra. A moral, em sentido lato, torna-se um meio para enganar os sim­ples que acreditam nas aparências. Infelizmente, da­do que no plano humano a vida tende à seleção do mais forte e astuto, isto não poderá terminar enquan­to o biótipo do ingênuo não for eliminado. Se psicologicamente ele é um fraco, que pode fazer a vida — segundo a lógica da lei vigente no nível terreno — senão procurar liquidar esse biótipo, se ele não souber evoluir conquistando inteligência? Aqui estamos ainda nos primeiros degraus desta, e tudo con­siste em astúcias de guerra. No entanto é necessá­rio percorrê-los, para chegar aos superiores, nos quais se compreenderá a estupidez da guerra e de suas astúcias. Entretanto, enquanto os ingênuos não apren­derem, nada mais lhe resta senão servir de pedestal aos astutos que sabem emergir, escapando às san­ções das leis humanas, que ficam reservadas aos simples que não sabem defender-se. Isto é injusto e horrível. Mas, dados os princípios segundo os quais funciona a vida no plano animal-humano, não pode­mos ter resultados diferentes.


Não pode negar-se que seja bela a moral que o mundo apresenta na vitrine. Em teoria tudo é excelente. Mas seria mister que ela conseguisse fazer o homem subir a um plano superior de vida, onde essa teoria se tornasse prática. Resta a realidade biológica, pela qual o homem vive num nível que não satisfaz o seu ideal. Então, num ambiente de luta, é na­tural que os princípios superiores fiquem torcidos e invertidos, se tudo, ou quase, existe nesse ambiente em função da luta. Fala-se muito de bens espirituais, mas o que vale na terra são os bens materiais, tanto que, para ser compreendido o valor espiritual do homem superior, é necessário que ele seja demonstra­do exteriormente pela riqueza de um monumento ou de um templo, se ele morreu, ou de alta posição so­cial, se está vivo. Se Cristo aparecesse hoje na terra, sem nenhum apanágio terreno, talvez ninguém o per­cebesse. O homem comum carece de um sentido próprio para julgar as coisas superiores e só adquire por imitação o julgamento que o mandam repetir e que circula pela maioria.


Encerremos este assunto com uma anedota signi­ficativa, que resume vários conceitos já expostos. Um missionário que se achava na África, para civilizar os selvagens, explicara com cuidado a um grupo deles o sentido do bem e do mal, para fazer nascer neles o senso moral, base do cristianismo. Para assegurar-se de que havia ensinado bem e que tinha sido compreendido, tomou à parte um dos mais inteligentes e perguntou-lhe: "diga-me então o que é o bem e o mal".


O selvagem pensou algum tempo, e depois for­mulou claramente a sua resposta: "mal é quando o vizinho rouba a minha vaca". O missionário apro­vou. Sem dúvida, roubar é mal, e o ato é moralmen­te reprovável. E acrescentou: "E o bem, que é?" O selvagem respondeu muito depressa, convictamente: "Bem é quando eu consigo roubar a vaca do meu vizinho".


Que vergonha diz, a essa resposta, o homem ci­vilizado, que certamente não teria respondido assim, porque conhece o conceito de bem e de mal. Mas, por que o civilizado não a teria dado? Certamente não seria porque não estivesse convencido de que o selva­gem, do ponto de vista individual, tivesse perfeitamen­te razão. O africano respondeu assim porque era um simples e falava com a ingenuidade do primitivo, que ainda não sabe esconder o próprio pensamento. En­tão a diferença está apenas no fato de que o homem civilizado — que bem gostaria de fazer como o sel­vagem — já aprendeu a não dizer o que lhe atrairia as sanções da lei e a condenação do próximo. A di­ferença não está no fato que o civilizado pense diver­samente do selvagem — tanto que o imitaria de boa-vontade — se o próximo lesado, organizado em so­ciedade, não o fizesse pagar por isso, anulando a indiscutível vantagem dessa ação.


O utilitarista, mais refinado, compreendeu que e muito mais fácil buscar o próprio interesse sem dizê-lo, isto é, sem descobrir os próprios planos, revelan­do a sua estratégia de guerra. Então, a habilidade pode consistir em esconder, e a virtude em falsear, ao invés de dizer a verdade. Nesse caso, a culpa do selvagem seria a sua ingenuidade, que o civilizado não lhe perdoaria porque não a possui, já que se está mais pronto a condenar as culpas que não se tem, do que as que se tem. Estamos num ambiente de lu­ta e não pode impedir-se que tudo exista em função desta. É natural que os ideais também sejam utiliza­dos para esse fim, sendo transformados num manto de hipocrisia, para melhor enganar o próximo. Se esta está tão espalhada na terra, deve haver uma razão; é que nesse plano de vida, ela pode ser van­tajosa, ao passo que, nos planos mais evoluídos ela não é praticada porque é contraproducente. Assim, na terra, a sinceridade pode ser julgada ingenuidade de tolo, inábil para a luta. Acontece, pois, que na prática, a culpa que mais se condena não é a menti­ra, mas o fato de ser tão tolo que se deixe descobrir a mentira; não é não ter defeitos, mas o não saber escondê-los, mostrando assim o ponto vulnerável on­de se pode ser derrotado. Pelo involuído plano bioló­gico em que isto ocorre, não se trata de maldade, mas de afloramentos do subconsciente animal na luta pa­ra sobreviver.


Acha-se o homem numa fase de transição entre a animalidade e a espiritualidade. É natural que, em seu mundo, a teoria que se prega da moral, da bon­dade e justiça, se ache em contraste com a prática, da moral de força e astúcia. Com efeito, o que mais se pune é o erro de deixar-se apanhar em erro. As leis humanas não punem quem seja tão hábil que não se deixe apanhar. A verdadeira justiça é só aquela da qual não se pode fugir, como a justiça de Deus. A humana é uma luta entre legislador e réu, entre acusador e acusado, entre juiz e julgado e ao contrário, na qual vence o mais forte e o mais hábil. Na prática, o maior valor do indivíduo não consiste naquilo que é proclamado em teoria, ou seja, em obedecer à lei, mas na habilidade de saber escapar dela. Lógico que num ambiente de luta, onde reina o culto da força, seja fraqueza obedecer, e valor o rebelar-se.


Como pode uma moral ideal, feita para um mun­do orgânico de ordem, ao qual ela quer levar o nosso mundo humano por meio da evolução, não ser inver­tida neste, que é um mundo caótico, feito de competições? Em nosso ambiente humano, como no caso do selvagem acima narrado, o bem e o mal são conce­bidos apenas em função do próprio eu, ignorando o próximo (o bem é a utilidade própria, o mal o prejuí­zo próprio); ao passo que no plano superior ao qual pertence a moral oficial, o bem e o mal são concebidos em função de toda a coletividade, levando-se em conta o próximo (mesmo o bem alheio é utilidade própria, e o prejuízo alheio é um prejuízo próprio). Também o desenvolvimento mental, nos dois planos ocorre em sentido diverso. Em nosso mundo a inteligência mais apreciada é a que dá fruto imediato na luta, a que serve para. vencer, e não a especulativa, que procura o conhecimento e leva à consciência da Lei. Quem a possui é considerado em geral um ho­mem que vive nas nuvens, um simples que não co­nhece a realidade prática da vida. Esta exige astú­cias para resolver os problemas imediatos e não sa­bedoria que resolva problemas altos e distantes, sa­bedoria que não oferece nenhuma utilidade imedia­ta para a defesa da vida.


O estudo de u'a moral positiva, racionalmente demonstrada, presa aos princípios da vida, não po­dia deixar de revelar-nos também esses seus lados negativos. Tínhamos que analisá-los imparcialmen­te, para compreender a realidade em toda a sua am­plitude. Fizemo-lo para explicar o nosso mundo e compreendê-lo em muitos de seus aspectos, não pa­ra condenar, o que é inútil, já que não modifica nada e não é útil a ninguém, gerando apenas reações. A condenação está em nossas dores. Neste livro, ao invés dos problemas altos e distantes que tratamos nos outros, nós estudamos a realidade de nosso mun­do, tal qual é. Não devemos escandalizar-nos com essa realidade, que tem suas razões biológicas de existir sob essa forma. Cobrir tudo com belas apa­rências é o que menos serve para curar o mal. Ter visto claro, quer as razões pelas quais tudo isto exis­te, quer a grande vantagem de melhorar-nos, pode ser um meio de levar-nos ao bem. Os fatos são fatos. Não podem ser mudados mesmo se forem escondidos, nem pode impedir-se que produzam os seus efeitos.


Não é esta hora de sentar-nos à beira da estra­da, dando-nos como vencidos. Certamente a salva­ção está nas mãos de Deus, mas o homem deve contribuir com todo o esforço para a sua salvação. Não devemos concluir com o desencorajamento e o pessimismo. Assim como o presente superou o pas­sado, que era pior, assim como um futuro melhor su­perará o presente. Vimos que ninguém jamais pode­rá deter a grande marcha ascensional da evolução, dirigida aos objetivos supremos. Onde tudo evolui, também a moral não pode deixar de evoluir. E assim que um dia teremos de chegar à realização vivida da ética ideal, que hoje, na terra, luta para levar o ho­mem a um plano superior de vida, em que triunfará a nova civilização do espírito.


Transcrito do livro "Evolução e Evangelho" - por Pietro Ubaldi.