sexta-feira, 12 de julho de 2013

Holocausto brasileiro em Barbacena - MG

Materia publicada no Jornal O Dia, em 12/07/2013
 Holocausto brasileiro
IG - RENAN TRUFFI


São Paulo - “Milhares de mulheres e homens sujos, de cabelos desgrenhados e corpos
 esquálidos cercaram os jornalistas. (...) Os homens vestiam uniformes esfarrapados,
tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus.
 Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio.
Nas banheiras coletivas havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio,
ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável,
assim como o ambiente, pois os urubus espreitavam a todo instante”.

A situação acima foi presenciada pelo fotógrafo Luiz Alfredo da extinta revista
O Cruzeiro em 1961e está descrita no livro-reportagem Holocausto Brasileiro,
da editora Geração Editorial, que acaba de chegar às livrarias de todo o País.
 Ainda que tenha semelhanças com um campo de concentração nazista, o caso
 aconteceu em um manicômio na cidade de Barbacena, Minas Gerais,onde ocorreu
 um genocídio de pelo menos 60 mil pessoas entre 1903 e 1980.

Apesar de ser uma história recente, o fato de um episódio tão macabro permanecer
desconhecido pela maioria dos brasileiros inspirou a jornalista Daniela Arbex.
“Eu me perguntei: como minhageração não sabe nada sobre isso?”. A obra conta
a história do maior hospício do Brasil, que ficouconhecido como Colônia e leva este
 nome por ter abrigado atos de crueldade parecidos com osque aconteceram na
 Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.

“Dei esse nome primeiro porque foi um extermínio em massa. Depois porque os
pacientes também eram enviados em vagões de carga (ao manicômio). Quando eles
chegavam, os homens tinham a cabeça raspada, eram despidos e depois
uniformizados”, explica a autora. Daniela não foi a única a comparar Colônia
ao holocausto. No auge dos fatos, em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia
visitou o hospício com a intenção de tentar reverter o que ocorria no local. 
“Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”, disse na ocasião.

A Colônia foi inaugurada em 1903 e continua aberta até hoje, mas o período
de maior barbárie aconteceu entre 1930 e 1980, quando pessoas eram internadas sem
terem sintomas de loucura ou  insanidade. Segundo o livro-reportagem, cerca de 70%
das pessoas não tinham diagnóstico de   doença mental. “Foi o momento mais dramático.
 A partir de 1930, os critérios médicos  desapareceram. Em 1969, com a ditadura,
o caso foi blindado. Não gosto de chamar assim, mas (entre 1930 e 1980) foi um
período negro. Foi criado para atender pessoas com deficiência mental,  mas acabou
sendo usado para colocar pessoas indesejadas socialmente, como gays, negros,
prostitutas, alcoólatras”, contou.

Livro conta história de hospício em Barbacena que arrecadou R$ 600 mil com venda
de corpos (entre 1930 e 1980) foi um período negro. Foi criado para atender pessoas
com deficiência mental,  mas acabou sendo usado para colocar pessoas indesejadas
socialmente, como gays, negros, prostitutas, alcoólatras”, contou.

Daniela contou ainda que a ordem para internação das pessoas na Colônia vinha dos
mais influentes da sociedade na época. “Quem decidia é quem tinha mais poder.
Teve pessoas que foram enviadas pela canetada de delegados, coronéis, maridos que
queriam se livrar da mulher para viver com a amante. Não tinha critério médico nenhum.
Tem documento  que mostra que o motivo da internação de uma menina de 23 anos
foi tristeza”, criticou.

Ao chegarem ao manicômio, os internados  tinham uma rotina “desumana”.
Eles dormiam juntos em salas grandes sem cama. Todos  tinham que se deitar sobre
o chão do cômodo, que era coberto apenas por capim. Acordavam  por volta das 5h da
manhã e eram enviados para os pátios, onde ficavam até 19h, todos os  dias.
“Barbacena é uma cidade muita fria. Até  hoje tem temperatura muito baixa para os
padrões brasileiros. Pessoas eram mantidas nuas nos pátios em total ociosidade.
Pensa   bem que condição sub-humana”, disse a  jornalista.

Além disso, a alimentação na Colônia era  precária, o que causou a desnutrição e,
consequentemente, o desenvolvimento de doenças em vários dos “pacientes”.
“Eles tinham uma alimentação muito pobre, de pouca qualidade nutritiva.
Muitas pessoas passavam fome. Tem histórias de gente que em momento de
desespero comeu ratos ou pombas vivas. (...) As pessoas acabavam tendo sede
e bebiam urina ou esgoto porque  tinha fossas no pátio. Não tinha nenhuma
privacidade. Até 1979 era assim, faziam xixi e coco na  frente de todo mundo",
explicou.

O fato dos homens, mulheres e até crianças ficarem pelados o tempo todo criava
um clima de promiscuidade no manicômio. Há relatos de mulheres que foram
estupradas por funcionário.

“Consegui depoimentos nesse sentido de (estupro e abuso sexual), mas não consegui
provar. Tem  um caso de uma mulher que disse ter engravidado de um funcionário.
Certo é que havia uma promiscuidade incrível. As pessoas eram mantidas nuas,
dormindo juntas nessas condições.

Crianças eram mantidas no meio dos adultos”, lamentou.

Além das condições insalubres, o hospício chegou a ter 5.000 pessoas ao
mesmo tempo, enquanto a capacidade original era para 200 pacientes.
Nesses períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam todos os dias.
“Não era uma coisa determinada, não existia uma ordem (para matar).
 As  coisas foram se banalizando. Um funcionário via que outro fazia tal coisa
com o paciente e repetia.

As pessoas deixaram as coisas acontecerem. Não tinha essa coisa de vamos fazer
com essa finalidade. Era exatamente por omissão”, comentou.
Venda de corpos  Mas a morte dava lucro. A autora do livro conta que encontrou
registros de venda de 1.853 corpos, entre 1969 e 1980, para faculdades de medicina.
“O que a gente não sabia e conseguimos descobrir, com a ajuda da coordenação
do Museu da Loucura, foi que 1.853 corpos foram  vendidos para 17 faculdades de
medicina do País. O preço médio era de 50 cruzeiros. Dá um total de R$ 600 mil reais,
se atualizarmos a moeda. Tem documento da venda de corpos. De janeiro a
junho de um determinado ano, por exemplo, a Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG)  recebeu 67 peças, como eles mencionavam os corpos”, afirma.

Depois de algum tempo, o mercado deixou de comprar tantos cadáveres.
Os funcionários passaram, então, a decompor os corpos dos mortos com ácido
no pátio da Colônia, diante dos  próprios pacientes, para comercializar também
as ossadas.

O caos estabelecido na Colônia foi descoberto pela revista O Cruzeiro, que publicou
em 1961 uma  reportagem de denúncia de José Franco e Luiz Alfredo, entrevistado
por Daniela Arbex no livro. A  autora conta que, na época, houve comoção em torno
do caso, mas as condições continuaram as mesmas no hospício. “Na época, o
(ex-presidente) Jânio Quadros estava no poder. Ele falou que ia  mandar dinheiro
para a Colônia, falaram que ia fazer acontecer e nada. Não foi feito nenhum tipo
de intervenção que fizessem os absurdos cessarem. De 1961 até 1979,
a situação continuou tão  grave quanto”, explica.

As “atrocidades” no hospício só começaram a diminuir quando a reforma psiquiátrica
ganhou fôlego em Minas Gerais, em 1979. Hoje, o manicômio é mantido pela
Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG) e conta com 160
pacientes do período em que o local parecia mais um  “campo de concentração”.
Ninguém nunca foi punido pelo genocídio.



Um comentário: