domingo, 27 de março de 2016

PAIXÃO

DO LIVRO  ASCESE MÍSTICA  - Pietro Ubaldi

                                          XXVI    PAIXÃO

                                  Assis, Quinta-feira Santa, 1937


Peregrino de dor e de paixão, eu me aproximo de Ti, Senhor.

Despedaçaste todos os meus afetos humanos; um a um; quiseste que somente o Teu amor permanecesse.

E quando o meu coração caiu por terra, ensangüentado, na estrada poeirenta, pisado por todos, Tu então o recolheste e me disseste: "Eu sou o teu amor. Somente a mim podes amar.

Em mordaça de ferro comprimiste minha paixão; quando ela desejava explodir no mundo, Tu lhe fe¬chaste todas as portas e a lançaste dentro de mim, para que, nessa constrição, se tornasse mais profun¬do e mais potente o seu lume e ardesse num incên¬dio sempre maior, e no íntimo inflamasse, chamejan¬do até encontrar-Te, Senhor.

Dosaste o meu tormento, proporcionaste asfixia lenta, quiseste que eu me aproximasse de Ti por minha busca e por esforço meu.

Agora compreendo que ao Teu amor divino eu não poderia chegar senão pela dilaceração de todo amor humano.

A Ti não se chega senão pela tempestade, porque és o turbilhão e o poder, és a essência da força

Sinto que a chama do Teu incêndio se aproxima e lança labaredas sobre mim. De repente, uma delas me toca e se enrodilha  minha alma, aperta-a e agarra-a para atrai-la a si, no centro do incêndio.



Afrouxa, em seguida, a pressão e me deixa recair nas coisas humanas, para retomar-me depois, outra vez, ainda outra, sempre mais forte.

Aquele incêndio me espera e eu nele cairei.

*   *   *

É a Semana da Paixão e aproxima-se a hora santa em que Tu, Senhor, na Tua agonia, lançaste ao mundo o grito da redenção e do amor.

Nestes dias espadelaste minha alma para que também eu vivesse a tua paixão de dor e de amor.

Sobre minha sensibilidade, vibrando e ressoan¬do, passaram o choque brutal e o insulto feroz, e nela se hospedaram, submergindo-se com alegria na minha dor torturante.

Tu estavas presente e próximo, mas, por desgraça minha, eu não o senti.

A nova dor, porém reergueu até Ti minha sensação e nas profundezas do meu desgarre eu Te reencontrei, assim como tantas vezes eu Te perdi e na minha prostração vieste ao meu encontro e de novo me apareceste.

Que desejas de mim, Senhor?

*   *   *

Chego a Assis, ao anoitecer da Quinta-feira Santa. Sete velas e mais sete, em duas ordens bem visíveis, ardem, solitárias, na basílica de Francisco.1

Apagam-se lentamente, uma a uma, com um salmodiar longo e triste, em que chora a Igreja e o munndo suplica; lá fora, tristemente, o dia se extingue, filtrando sua agonia através dos históricos vitrais.

A sinfonia de liturgia, de luzes, de pranto, canta concorde uma lenta sonolência de morte em que se extingue a agonia da paixão.

Quando, porém, com a derradeira luz do dia se apaga a última vela, o último canto do salmo explode tão trágico e dilacerante, interrompido pelo triste batido das vergas no solo,2 que minha alma tempestuosa se abate, parque então ouço em mim gritar a dor do mundo que, súplice, chora com o Cristo que morre.

Já é noite. Ensombram-se os vitrais luminosos. Tudo está apagado nos altares nus. A Igreja, que nesta hora agasalha a dor de um Deus e a dor do homem, depôs seus ouropéis e se abate desnuda aos pés de Cristo.

Nesse ar triste, mas calmo; nessa atmosfera de dor, grande, mas consciente e resignada, escuto o clamor das multidões distantes, que não querem e não sabem sofrer; sinto o espasmo das marés humanas que a dor e a paixão perseguem e atormentam.

Minha alma treme.

Jaz abatida ao pé da cruz e olha, no alto, o drama de um Deus agonizante por amor. Somente o seu olhar me dá força para viver.

Vivo o Teu tormento, meu Senhor. Subi Contigo até a cruz; Tua dor é minha dor. Agonizo e morro Contigo.

Desejaria invocar piedade para todos, mas não tenho coragem. Não tens mais sangue para dar; morrres nu e amaldiçoado e és inocente. Que posso pedir-Te mais por amor do homem?

Eu o sei: dar-me-ás ainda lacerações tremendas; mas, a cada novo rasgar-se de minha carne, eu Te direi: "Por amor de Ti, Senhor

E quando, já sem forças, cair, e vir chegar até mim a carícia sedutora das coisas humanas, minha alma deverá recusar qualquer repouso ou conforto e dizer: "Por amor de Ti, Senhor".

Flagela diariamente meu espírito, para que ele seja desperto e pronto, ao Teu comando.

Com a minha renúncia alimentarei todo dia a chama de meu amor por Ti.

Não! Não é renúncia, não é dor: é expansão e alegria. "É por amor de mim, Senhor".

Que posso eu fazer? Agora, é inútil resistir. Precipito-me em Ti, Senhor; as órbitas se comprimem vertiginosamente; a maturação prossegue no mundo e em mim por caminhos opostos.

A hora é intensa para todos. Não se pode detê¬-la. Preparada, já há tempo, precipita-se. Eu temo olhar.
*   *   *
O cerco se aperta. O drama da Paixão de Cristo se faz intenso dentro de mim; o drama das tempestades humanas acossa quem está lá fora.

Desço à  cripta e me abato aos pés do túmulo de Francisco.

Apossa-se de mim, plenamente, o espírito do lugar, tão forte que me lança por terra. Apoio sobre a pedra desnuda a fronte em chamas, para acalmar a febre e abrandar o incêndio.

Conduziste-me até aqui. Para que? Que queres de mim, Senhor?

Começo a balbuciar: "Toma minha alma".

Estou à espera, vibrando, em tensão, sem palavras.

Recordo. Já me disseste numa hora de trevas: “Segue-me, segue-me”.

Paira sobre mim algo de grave e de grande que eu não sei. Sinto solene a hora. Estás perto de mim, é Cristo, eu Te sinto. Francisco é uma força viva, vibrando daquele túmulo, e me contempla e me ajuda.

Algo de potente, de imenso, quer subir das profundezas de meu coração e não pode. É intenso demais para suas forças. A idéia se agita, comprime-se para explodir, busca a palavra que a expresse, que a engaste em sua última forma.

Finalmente, emerge a voz e minha alma grita: "Senhor! Eu Te seguirei até à  cruz!"

Então, sinto dentro de mim, a cantar: "Tu estás no centro de meu coração".

Minha alma, liquefeita  em lágrimas de júbilo de amor e de paixão, prostra-se, sem forças.

Naquele instante, porém, ressoa do alto, do templo superior3, da igreja baixa pintada por Giotto, no cântico que salmodia até ao vértice de sua paixão, ressoa, como raio a ecoar toda a explosão do meu tormento, condensando minha tempestade, ressoa, no clamor da música e das vergas batendo no solo, o grito derradeiro do Cristo que morre.

Esse grito me atinge e me fere. Alguma coisa se dilacera em mim; abre-se uma fenda em minha alma.

O extremo apelo me convoca: é o lamento do Cristo, é a dor do mundo, é uma convergência, em mim, de forças superiores e inferiores; sinto minha alma fugir-me, arrebatada num vértice de forças titânicas, sinto a Voz instar dentro de mim e repito: "Senhor, seguir-Te-ei até à cruz".

Estou esmagado pelo peso de uma promessa solene.

                                    *   *   *

Torno a subir à  igreja média, pintada por Giotto.

Apaga-se a última vela. É noite. Ouço ainda mais perto, dentro de mim, a repetir-se, o grito do Cristo a morrer.

Ele aqui está, no momento, presente.

Rasga-se, então, ante meus olhos, a visão da Ter¬ra e do Céu.

O Céu chora a agonia e a .paixão de amor de um Deus, a Terra treme, convulsa, no pressentimento de um vendaval sem nome

O drama do homem e o drama de Deus se conjugam nesta hora suprema de paixão.

Olho, atemorizado. Vejo um turbilhão de forças que se projeta para a Terra e vejo a Terra sacudida, agitada, submersa num mar de sangue.

É a hora tétrica da paixão do mundo. E parece sem esperança. O cerco estreita-se cada vez mais; bem depressa estará fechado e tarde será para esca¬par à compressão.

A mão do Eterno empunha o destino do mundo; estão prontas a desencadear-se as forças para o cho¬que fatal. Esta próxima a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Feliz quem não for vivo, então, sobre a terra.

O amor de Deus deve retrair-se um momento, para que a justiça seja feita e o destino, desejado pelo homem, se cumpra.

Há algum tempo, eu já disse — preparai-vos, pre¬parai-vos — e não ouvistes. Em breve, será demasiado tarde.

O drama está próximo, eu o sinto, torna-se meu, toco-o, ressoa desesperadamente no mais íntimo de meu espírito.

Repito: "Toma, Senhor, minha alma".

E três vezes repito: "Senhor, ofereço-te a mim mesmo pela salvação do mundo".

"Seguir-Te-ei até à cruz".

Três vezes repito e sinto que Tu, Cristo, me es¬cutas me aceitas e que estou unido à Tua paixão.

Compreendo que me guiaste até aqui, ao templo de São Francisco, para que, sobre Seu túmulo, pró¬ximo Dele, eu Te repetisse esta nova promessa, sole¬ne, decisiva, após a primeira, após cinco anos de duro caminhar.

Compreendo que Tu esperavas esta minha nova dação, porque agora um peregrinar mais áspero se inicia e um esforço mais árduo me espera.

O cântico cessou depois de seu último paroxismo.

Todas as luzes se apagaram. O templo está em silêncio, no escuro.

Minha alma atinge, junto à alma de Cristo no Getsêmani, sua última desolação.

Abala-me o último estalido das vergas batendo no solo.

Naquele instante, verdadeiramente senti a terra tremer.

*   *   *
Como era belo contemplar, lá fora, antes do ocaso, sobre o doce e extenso vale úmbrico e os reflexos do Tescio, os pinheiros ondeando ao vento, contra os diáfanos esplendores da distância!

E, mais tarde, a lua cheia surgindo do Subásio, a mole do templo, irreal entre pálidas luzes, e a imensa campina adormecida.

Hora de doces colóquios de espírito com a alma do criado, no intenso pressentimento de primavera. Hora de ternas recordações para mim, nesta doce terra de Assis, onde tão profundamente tenho vivido e que tanto tenho amado. Hora em que o Céu e a Terra refletem, amigos, um sorriso comum e se estrei¬tam num fraterno amplexo.

Parecem em paz, mas é aparência do momento.

Vive dentro de mim a visão da realidade

Eu senti verdadeiramente a Terra tremer.

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