sábado, 26 de março de 2016

A Posição de Ubaldi


DO LIVRO ASCESE MÍSTICA 


                                   XIII  MINHA POSIÇÃO






Chegou o momento de dizer tudo sobre mim mes­mo, até à última profundidade, de assumir a minha posição e a minha responsabilidade. Eu disse em páginas anteriores (Segunda Parte - Cap. III – Dor) como devia dizer toda a minha verdade, dar testemu­nho das minhas afirmações, com a palavra e com o exemplo, dar a certeza da idéia que possuo. E disse (Segunda Parte - Cap. I - Em Marcha) que a mi­nha prudência seria vil se no momento decisivo me calasse ou não dissesse tudo. O meu último volume culminava, nas conclusões[1], na afirmativa de que A Grande Síntese é uma revelação conexa, em sua substância evangélica, ao desenvolvimento gradual, na Terra, do pensamento de Cristo, que é emanação contínua. Então, senti que também me movia sobre a linha da inspiração cristã e percebi com que imensa noúre estava em sintonia. Com isso, defini a signifi­cação daquela obra. Não nos limitemos à moldura, à veste editorial, à colocação humana. O conteúdo ultrapassa estes confins, resultantes apenas da ne­cessidade do momento. Referi-me à gravidade da hora histórica, que justifica métodos excepcionais pa­ra a ressurreição de Cristo no mundo. Então, era cedo para dizer mais Era necessária minha nova matura­ção, que aparece neste volume, para continuar; era necessário este novo testemunho, para que o leitor pudesse compreender melhor. E mesmo agora des­truo as pontes atrás de mim, para que não me seja aberto senão um caminho: o de avançar.



Quanto eu disse de Cristo e sobretudo quanto di­rei nos últimos e mais intensos quadros que se seguem e uma confissão feita em termos tão sentidos, tão gra­vemente cheios de empenho diante de Deus, que não se pode admitir a mentira. O equilíbrio deste estudo exclui qualquer enfermidade de consciência. Nem tais afirmações se fazem com escopos humanos, porque elas representam um gravame terrível para quem assume por elas, como eu o faço, plena responsabilidade. Este é o testemunho que eu devo dar hoje, por absoluta ordem interior, da verdade de A Gran­de Síntese. A íntima ligação de minha alma com Cristo, aqui exposta, confirma hoje e revalida as mi­nhas graves afirmações de ontem, num caminho de tenaz e inflexível coerência. É o testemunho de seu conteúdo cristão, motivo central no renovamento da civilização. Disse-o inequivocamente; é preciso que compreendam também em alguns de meus silêncios terrivelmente eloqüentes. A minha meta e construir; nunca me verão aqui acusar, agredir, demolir. O meu escopo é o bem, é unificar e não semear dis­sensões, irritações e antagonismos, polemizando. O meu método tem de ser, necessariamente, o método de Cristo — o sacrifício, o perdão, o amor. As dificul­dades e os dissabores são apenas para mim. A ver­dade vale por si, não por mim. A verdade é que tem valor, e não eu.



Mas, perguntar-me-ão que significa tudo isto, que e que eu desejo e aonde pretendo chegar. Não o sei precisamente, hoje. Certamente não se diz tudo quan­to eu disse apenas para se lançar um livro. Sei ape­nas que atras de mim há uma força imensa, à qual obedeço e sigo, sem saber, eu mesmo, dos futuros de­senvolvimentos. Eu semeio, mas não colho. Devo ser inteiramente desligado do fruto do meu trabalho. A minha recompensa está em outro lugar, está apenas em Cristo e em Sua aproximação. Não aprendo o meu caminho humano senão dia a dia. Assim tem sido até agora. Não se me atribuam, portanto, per­feições e méritos, pois não os tenho e se faço alguma coisa — não é minha. E perguntar-me-ão: trata-se de um movimento? Tranqüilizem-se todos. Não é um movimento no sentido humano. O homem é muito apegado as suas distinções, divisões e organizações humanas, porque incluem interesses. Eu lhes deixo todas estas coisas que tanto lhes agradam e que pa­ra mim nada valem. Nada se muda do que é externo, porque o exterior não conta. Dir-se-á: é utopia. Não. As verdadeiras forças estão no Céu, as forças que renovam a Terra. Nós vimos e sentimos seu maravilhoso funcionamento. Um homem não pode realizar certos movimentos mesmo através de seu heroísmo e de seu martírio; eles despontam na hora histórica, no sangue das povos, no equilíbrio da civilização. Estas forças que tudo operam, se o quiserem, lançarão o ho­mem além de sua própria vontade onde ele não saberia chegar, como um expoente que parece elevado mas que, substancialmente, pode ser insignificante. É um fato que certos movimentos substanciais do espírito não descem sobre a Terra, mas estão fora de qual­quer recinto, entre o mundo e o Céu e nunca se de­senvolveram valorizando categorias humanas. Não se cuida, pois, de qualquer propriedade: tudo é dirigido tão-somente pela força do espírito. O homem pensa por demais em corrupções. Por isso, não que­ro nem casas, nem sedes, nem cargos, nem a larga pestilência das organizações humanas. Nada que possa atrair os baixos instintos ou estimular as sem­pre rápidas reações dos impulsos inferiores do homem comum. Nenhuma fetidez de dinheiro que tanto atrai os ávidos e sombrios aduladores.



Estes fogem, graças a Deus, em face de um pra­to onde não há senão fadiga, dor, paixão de espírito. Esta é a minha segurança.



Ai das crenças que não exalam somente o per­fume da renúncia!



Esta é a minha força diante do mundo: a idéia pura e nua como desce do céu e atirada como semen­te ao vento, para que germine sob o impulso secreto das leis da vida. Só a imaterialidade é garantia de invulnerabilidade. A força da idéia que desenvolvi e sempre segui, não se desmente e confia só e sempre unicamente nela mesma. Atrás dela estão as forças do infinito, e elas me joeiraram tremendamente a princípio. Agora se desenvolvem, como verifico, com método e lógica.



O movimento é espiritual. A meta é um reino que não é da Terra: o Reino dos Céus. A forma é aristocrática: enfrenta a intelectualidade e a cultura, porque são a aberração do século. Não se tocam os estratos inferiores, mais densos e menos maduros para a compensação. Tudo desce, depois, automaticamente, por gravitação, na assimilação e também, ofuscando­-se, na realização. Ficamos em uma atmosfera pura, pelo menos, no momento da gênese e da concepção. As forças substanciais não agem do exterior, mas vão diretas ao coração do homem; incrustam-se nas motivações e estas forças cósmicas estão aqui presentes, em ação. 

Aqui tudo é forte porque é imaterial; é in­destrutível porque é imponderável.

Quem está na matéria, se desejar destruir, encontra o vazio e não sabe o que agarrar.

Quem está no espírito compreende e não pensa em destruir.

Este é um germe tão espiritual que não toma forma humana; é a substância da fé, é um dinamismo puro que em toda parte cairá e em qualquer divisão humana poderá frutificar. É uma paixão de bondade que pode existir em cada casa, em cada instituição, em cada opinião; é um princípio de honestidade do qual cada autorida­de não poderá senão se regozijar. É uma pureza e uma sinceridade em que cada alma se sentira renas­cer. É a luz de Deus que se dá a todos acima dos monopólios humanos: é pura destilação de força e bondade alcançada na fonte, antes que atinja a ca­nalização e as impurezas humanas. Parece nada porque não desceu ainda à forma fixa e concreta. Flutua no ar como um perfume, como o orvalho ain­da. não denso. Mas este é o estado mais dinâmico, o estado da gênese.

É o espírito do Evangelho que volta na sua esplêndida fase primordial. Ele nada possuía, senão mártires.


Na sua origem, o fogo do espírito era líquido e jorrava em abundância, das grandes crateras aber­tas. Hoje o homem está imerso na matéria; um século de ciência volatilizou o evanescente perfume do céu. Hoje recolhemos as últimas fagulhas semi-extintas e conservamo-las religiosamente nas lâmpadas acesas, cansado e pálido reflexo do incêndio origi­nal. Mas, isto não basta para desfazer as trevas que se tornam cada vez mais densas e ameaçadoras. Não basta o monumento das verdades escritas, conservadas num invólucro imponente que se formou através dos séculos. O espírito é uma força viva que habita no coração do homem. É uma força, não uma pala­vra escrita, e como força, se difunde e se exaure; não pode ser fechada no imóvel; extremamente móvel, ele se nutre de vida, é uma radiação que desce do Alto, e um calor que se dissipa se não se recebe continua­mente novo calor para comunhão da alma com o Céu. “Litera Occidit spiritus autem vivificat". (II, Cor. 3.6)[2].

Muitas vezes nós trocamos o continente pelo conteú­do, tocamos o invólucro pensando tocar o fogo, mas em verdade ficamos frios. O hábito acostumou-nos á forma: ouvimos palavras incendiárias e permanece­mos indiferentes. Que pesado fardo humano tem a Igreja de arrastar no seu caminho divino! 

Tanto es­fregamos nossas almas impuras nas coisas santas que, em lugar de nos santificarmos, tornamos estas impuras. Abaixamos tudo ao nosso nível, a fim de podermos carregar tudo conosco, para nosso uso e consumo.


Mas a verdadeira fé é um incêndio que se situa com dificuldade no círculo das coisas humanas. É um perfume que não se pode fechar em frascos. É to­da uma espontaneidade festiva e, se deve ser codifi­cada em lei, é pela triste necessidade de ser adaptada à vida dos cegos. Esta fé é hoje necessária, ne­cessária é esta erupção espontânea e direta das for­ças do Céu, necessária esta explosão de energias ir­refreáveis como o raio e a tempestade. Pergunto que coisas poderia fazer um punhado de homens fortes, poderosos pela disciplina do espírito, armados desta psicologia heróica, dirigida à renovação da civilização — que coisas poderiam fazer diante da massa inerte, das maiorias jocosas e cegas que não pro­curam senão o prazer, sem paixão por ideais nem. vontade de martírio, sem saber nada dos grandes desígnios da vida. É necessário, como para as plan­tas em cada estação, em cada encerramento de um ciclo de civilização, uma brotadura nova e fresca, que atinja diretamente as fontes da vida, e um flamejar de sol que amadureça a messe. Outrora, em tempos de calma, de inércia espiritual, era possível ficar ca­lado e viver de acomodamentos — mas não hoje, quando o inimigo está às portas. 

Estamos diante do dilema: ou ressurgir no espírito, ou morrer na maté­ria.

A História prepara uma tremenda convulsão de dor. E a voz de Deus para os surdos, é a via da re­denção É o batismo da tempestade que faz voltar a pureza; é paixão de alma que faz subir novamente. Não é destruição — é renovação.


Não temamos, Cristo se aproxima, não apenas como justiça, mas também como salvação. Nos sé­culos de tranqüilidade, também o céu fica tranqüilo. Mas nos momentos de tempestade, o céu se abre e entre os raios lança relâmpagos de luz. Quando os tempos estão maduros, uma ferida se abre na Histó­ria e jorra sangue e linfa vitais, sem o que parece a humanidade não teria forças para continuar seu ca­minho. O inimigo está chegando ao centro da forta­leza. Cristo tem de recomeçar do princípio. Nos mo­mentos supremos e decisivos, não resiste quem não for substancialmente forte e não estiver abastecido de espiritualidade, e não apenas de habilidades huma­nas. Mas o mal, se destrói, também purifica e nas mãos de Deus é guiado para os limites do bem.


O mal é cego e não o sabe — mas o bem, que o guia, sabe-o. As tempestades reedificam e são bem­-vindas.


Deus escolhe os Seus meios em toda parte mas bem raramente entre as fileiras oficiais, entre os po­derosos e os sábios. Os pobres seres que se fazem admitir neste movimento, arriscam-se, a cada instan­te, a ficar pulverizados. Eles terão de fornecer sozi­nhos, sem apoio, o testemunho supremo de sua ver­dade. E esta não poderá pairar senão mais tarde, so­bre um consenso de almas, que não se pode formar senão lentamente, por maturação e por vias interio­res e só por experiência completa e quando a vida encerrar-se, isto é, quando aquele consenso não pu­der mais levar a quem agiu, nenhuma ajuda e nenhum conforto.



Mas também o Alto é avaro de auxílios, não dá sinais nem provas. Estas seriam uma espécie de pa­tente de autorização para o exercício pacífico da pró­pria missão. Não. Ele deve ser exposto a todos os ventos, golpeado por todos os assaltos. A sua alma deve ser atirada nua na poeira das estradas, onde todos possam pisá-la. Nada de posições protegidas e seguras que adormentam e ensoberbecem — mas humilhações, lutas, incerteza; não a alegria da colheita, mas a fadiga da sementeira.


Muito mais rude que o da Terra é o selo do Céu! 

Esta exceção, que é péssimo exemplo para a medio­cridade ignorante, deve sofrer os mais severos con­troles, para que a estrada não seja escancarada pela rebelião e pelo erro. A lei é que, cada superação de normas não seja lícita senão quando se entra em normas humanamente mais rígidas, moralmente mais elevadas. Quem vive protegido pela autoridade, ce­dendo a esta o peso de sua responsabilidade, cairá por este caminho. Quem for escolhido, terá uma soma muito maior de deveres e apenas com a ajuda de Deus poderá resistir e vencer. Ele o sabe. 

Uma missão é um caminho que se restringe cada vez mais, às vezes até ao martírio. Ele o sabe e não foge. Ele de­ve dar testemunho. Se Deus não estiver próximo, tal caminho não se poderá percorrer. Só quem está ao lado de Deus concorda em arar semelhantes campos. Neste clima, nenhuma motivação humana resiste. O verdadeiro chamado se faz reconhecer pela ausência de qualquer motivo terreno, por um particular método de luta, por uma cor psíquica inconfundível. E só então ele corre e avança, quando os instintos humanos foram destroçados pela raiz e nenhuma outra coisa senão Deus pode estar nele. Tudo isto é uma peneiração cotidiana, é um controle contínuo de correspondência de capacidade, é um permanente exercício, é um equilíbrio de forças que levam a alma até aquele ponto de sua missão que ela é capaz de su­portar, e não além, porque então ela seria abando­nada e cairia.


Sinto, afinal, levantarem-se menores objeções as quais, ocupado com outros problemas, não tenho até agora considerado, mas que devo considerar.
Tudo isto, pode parecer, não é senão o eu humano que grita em mim, que se ensoberbece e se agita. Modéstia, modéstia.
O verdadeiro místico é sobretu­do humilde e este é o livro do orgulho.
Que é isto de subir à cátedra, podem dizer-me, e fazer vaidosas afirmações de altíssimos contatos de espírito, não provados pelos outros e que implicam numa gratui­ta posição de superioridade e autoridade decerto não aceitável pelos demais.



Pense-se, porém, no que é este livro. 
Ele é uma desesperada invocação a Deus, de uma alma que, vendo o que é o mundo, e o que o espera, oferece pa­ra salvá-lo, não tendo mais que dar — a si próprio. (Ver capitulo XXVII PAIXÃO).
Mesmo que seja ameaçado de destruição. A psicologia comum dos críticos move-se em outro plano; não seria possível contentar a todas as pessoas e divergentes exigências. Mas aqui eu sinto bem diferente: sinto a que imensa incompreensão vou de encontro e, no entanto, não posso deter-me. Isso assinala o início do meu mais inten­so sacrifício. Falo forte e alto, perturbo os que che­gam, desfaço os acomodamentos, semeio o incêndio nos ânimos. Sou violento no espírito porque devo abalar e salvar. Não me iludo: devo pagar pelas mi­nhas afirmativas. Antes morrer que pensar não pos­sa mantê-las. Não são coisas que se afoguem no si­lêncio ou possam desaparecer na indiferença.
Che­gará a hora do testemunho ainda mais evidente, não já de palavra, mas de ação e de dor. O meu caminho se estreita, e não posso retroceder. A depuração de­ve ser severa e exigente na proporção da massa de afirmativas feitas.

Qualquer um na terra tem o direi­to de enfrentar quem assim fala e dizer-lhe: "Exijo provas". E eu devo estar pronto E bem sei que a so­ciedade moderna, que evita o sangue, sabe triturar um homem de forma sutil muito mais dolorosa.



E diante deste pressentimento foi que senti não poder renunciar ao dever de dar testemunho de mi­nha verdade. Não cumprir esse dever seria para mim trair minha missão. Não posso. E aqui estou pa­ra sofrer as conseqüências. Não há alternativa.

Es­piritualmente, o mundo já está em chamas.
Não é lí­cito, neste momento, cruzar os braços e ficar como espectador, porque a tempestade vem para todos. Qualquer absenteísmo espiritual é hoje culpa e vila­nia. O mundo deve decidir e escolher seus valores, um princípio deve vencer. Os neutros serão arrasta­dos e se tornarão servos. E as palavras que eu digo não poderiam ficar apenas nos altos céus mas distantes da universalidade. Devem descer, também, à for­ma precisa de luta e de conquista que o momento histórico impõe, momento de ação tremenda e deci­siva. 

As palavras que eu digo devem saber precisar, no seio da universalidade evangélica, o pensamen­to que temos hoje o dever de lançar ao mundo, e neste pensamento específico, feito de vida, devo ofe­recer minha contribuição. E se este livro puder parecer um imperdoável ato de orgulho e de audácia, é justo que eu pague. Aqui estou para isso. Para mim, existe um outro pré­lio no céu, onde a terra não chega e estou a postos. Que os sonolentos sejam abalados. O sono é hoje a pior das posições.


Compreendo que, para quem vive no plano normal, no qual o movimento histórico é menos sensível, a minha atitude possa parecer, desde logo, exalta­ção, perigosa audácia, pretensão absurda, estranha megalomania, efeito de desmedido orgulho. Mas, eu não posso viver, na hora premente de hoje, de acor­do com as medidas e as prudências humanas, que são proporcionais a fins humanos. Confesso, sim, que sinto tudo isto como um grande dever, um encargo de grande responsabilidade. Não se veja em tudo isto, e especialmente na unificação de que falei, uma posição elevada e de vantagem conquistada para sem­pre. Veja-se, ao invés, uma posição de trabalho na qual me devo manter a custo de uma contínua tensão de espírito e. que posso perder apenas dela deixe de ser digno. A unificação não é um agigantamen­to do meu eu humano, coisa que tantos temem, mas é o eclipsar-se deste eu numa unidade maior. Não é au­to-exaltação falar deste novo eu em que meu ser desaparece. Para mim é, ao contrário, um ato de supre­ma consagração. Examino-me e me confesso sem pretensão de infalibilidade. E isto é tudo o que sinto agora na minha consciência. Não tenho culpa se assim é, por sua natureza, para quantos o vivem, o fenômeno místico — se eu me encontro a vivê-lo ago­ra e se isso está fora da experiência normal e além da compreensão.



Algumas coisas não se dizem — poderiam ainda objetar. Mas, eu tenho o dever de dar o exemplo, de devolver o que recebi, de dar aos outros a alegria conquistada, o dever de indicar o caminho e de tes­temunhar minha experiência. Tenho o dever, pesado e gravíssimo, mas necessário aos que dormem, de in­quietar as consciências. Cumprido o dever, silêncio. O fenômeno, naturalmente, fica e vivíssimo, mas, acabada a necessidade de manifestá-lo para um fim benéfico aos outros, minha boca se fecha e tudo fi­cará fechado sob o selo do meu silêncio, simples fa­to pessoal presumível apenas por suas conseqüências. Mas, fazer-me compreender primeiro é hoje par­te de meu dever. Era necessário explicar e esta sin­ceridade pode ser uma prova capaz de sacudir as almas. Não vejo outro meio de fazer isto. Que pode importar, ante a urgência da hora e a perfeição da meta, diante do bem de tantos, se para tudo isto um só se deva expor às críticas e ao sofrimento? À na­tureza humana normal repugna a idéia nua e abs­trata. É necessário que essa idéia se materiali­ze num ser que a vida aqui, lutando, sofrendo, testemunhando. O homem comum exige esta mate­rialização para contra ela bater a cabeça — é pre­ciso dar-lha. Eu, porém, tenho aqui a sensação hu­manamente penosa de uma pública confissão, a sen­sação da última espoliação da minha personalidade que assim não tem mais ângulos seus, nem segredos, nem refúgio, porque tudo deu, toda se expôs e toda, já agora, pertence aos outros.



Digo-o e repetirei para que também o leitor dis­traído perceba: por caridade, não se me atribua qualquer coisa de excepcional e de superior como homem. Nada seria mais falso e mais nocivo para o meu trabalho. Não se esqueça jamais o quão profun­damente estou mergulhado nesta natureza humana, contra a qual tanto luto dia a dia. 

Faço uma decla­ração. Se não a quiserem compreender, a culpa não é minha. Não poderei, por isso, mudar o meu cami­nho. Faço de uma vez e para sempre esta bem cla­ra distinção: não se me atribua nada de bom que eu possa fazer. Isso não é meu. Esta é a verdade. Atri­buam-se-me, ao invés, todos os defeitos, as fraquezas, as culpas que possa ter o meu trabalho. Tudo isto, sim, é verdadeiramente meu.




[1] As Noúres, cap. VI (Conclusões). (N. do A.)

[2]  “A letra mata, mas o espírito vivifica”. Palavras do Apóstolo Paulo, em sua Carta aos Coríntios. (N. do T.)

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