XVII
O ULTIMO ATO, O HOMEM PERANTE A
MORTE
Neste
mundo, a carne, plasmada pelo espírito para agir e se desenvolver, torna-se
fatalmente, cedo ou tarde, uma prisão onde a alma fica sufocada. Para os organismos
naturais, pertençam ao indivíduo ou à humanidade, só há uma saída para a vida
maior: a morte. (A Grande Mônada, Pierre Teilhard de Chardin)
O Cristianismo afirma
solenemente o fato da sobrevivência do espírito, mas apresenta-nos o fenômeno
de forma racionalmente não admissível. E isto pelas seguintes razões:
1) A alma não pode ter origem numa criação do
nada, porque tal fenômeno não existe, nem pode existir em todo o universo,
seja no estado de S, seja no de AS. Há apenas uma possibilidade de transformação
da substância de uma forma em outra. Aquele conceito de criação é puramente
antropomórfico, admissível somente no relativo, onde o ato de criar,
transformar de um estado em outro, derivando pela criação o novo estado de um
precedente, que em relação a ele é o nada. A lógica confirma o absurdo do
conceito de uma criação do nada. Esta criação produziria qualquer coisa de novo
que se acrescentaria a Deus. Se isso fosse possível, Ele não seria mais o todo,
outra coisa poderia existir fora e além Dele. Então, Ele não seria mais Deus.
2) Com a criação da alma no ato da concepção
física, Deus deveria estar à disposição do homem que a exigisse, obrigado a
criar somente quando e se este quisesse.
3) Dado que Deus não pode ser injusto, as almas
criadas, ao nascer, deveriam ser todas iguais, com as mesmas qualidades e
destino. Ao contrário, sem justificação alguma, os tipos de personalidade e
ambiente nos quais se nasce são diferentes, estabelecidos antes que o indivíduo
possa conhecê-los e, portanto, tornado responsável pela maior parte das causas
e efeitos que lhe vão trazer uma eternidade de alegria ou de dor.
4) A criação da alma ao nascer significa uma
quantidade de tempo infinita no futuro, e nenhuma no passado, a menos que não
se queira admitir nenhuma, também no porvir, negando a imortalidade. O que tem
um início deve ter um fim. E, se este não existe, também aquele não pode
haver. Não é admissível o desequilíbrio resultante de tal desproporção de
partes. A natureza do fenômeno deve ser uma só, a mesma de ambos os lados, e
não apenas na parte de tipo oposto àquela que ela é do outro lado.
5) É absurdo, porque fora de toda proporção entre causa e efeito,
que, com uma vida de uma centena de anos no máximo, se possam determinar as
causas suficientes para justificar como conseqüência uma eternidade de prêmio
ou de castigo, de alegria ou de dor. Uma só vida, conduzida em particulares e
limitadas condições, não é suficiente, para completar a construção de uma
personalidade, não mais sujeita à evolução por ter atingido o estado final desta. Como pode o indivíduo, possuindo somente o
resultado de uma tão escassa experiência, ter alcançado uma forma em que possa
ficar definitivamente fixado para toda a eternidade?
6) Se o mal é devido à queda no AS, sem o que a
sua existência não se explica, pois não pode ser obra de Deus, é absurdo que a
redenção desse mal com o retorno ao S se possa cumprir: ou com o sacrifício de
outros não culpados — neste caso, de Cristo — em vez de o ser com o esforço
próprio, ou de um golpe com uma breve vida apenas, fugindo à longa maturação
evolutiva, que é lenta transformação, a única que pode logicamente permitir o
regresso ao estado de origem no S. Que dizer então, quando essa vida é só de
poucos meses, totalmente insuficiente para experimentar ou aprender? Em suma,
a criação da alma ao nascer exclui a evolução, sem a qual não se pode realizar
uma justa e merecida redenção.
7) A construção da personalidade humana se
explica apenas como resultado de uma transmissão e acumulação de qualidades
adquiridas. Ora, isto é possível somente por via espiritual através da
reencarnação, não podendo acontecer pelas vias da hereditariedade fisiológica,
porque esta se transfere na juventude, quando os genitores não viveram ainda
experiências para transmitir; nem sucede na velhice, quando eles, tendo-se
enriquecido, teriam material para propagar.
8) Em
nosso universo tudo deriva de um seu precedente que lhe é a causa e do qual é o
efeito. Também a personalidade humana é um fato positivo. Ora, se ela existe,
deve ter um seu precedente do qual ela deriva e que é a causa da sua
existência. Se nada se cria e nada se destrói, ela deve preexistir ao
nascimento físico e continuar a existir depois da morte. Sem reencarnação a
personalidade humana seria um efeito sem causa. E esse efeito não é genérico,
mas bem definido nas suas qualidades individuais, que revelam uma história
passada.
Aqui sustentamos o fato de
que vivemos num universo dirigido por uma lógica que exclui a possibilidade de
absurdos que a violem. Eis que o problema da sobrevivência, que estamos colocando,
implica o da preexistência, que o desencarnar traz consigo o encarnar, que a
saída e a entrada na forma de vida terrestre se condicionam reciprocamente,
compondo um fenômeno único, visto em duas posições diversas. Tivemos de
esclarecer estes conceitos, porque, somente desta forma, é logicamente
concebível a sobrevivência do espírito.
Do lado oposto ao das
religiões, vemos que a ciência, depois de ter negado, na sua fase
materialista, a existência do espírito, agora que se pôs seriamente a indagar
no campo psicológico e parapsicológico, permanece ainda titubeante e longe de
saber concluir. É certo que a ciência
tinha o dever de ser positiva, portanto de ficar no terreno objetivo, experimental.
Mas isto tornou inevitável a limitação do seu campo de indagação ao aspecto
material do fenômeno. Ora, o fato de lhe ter escapado a parte psíquico-espiritual
dele, que, realmente, existe, não reduzível ao plano físico, não a deixou obter
senão uma visão unilateral e incompleta.
Além disso, no próprio ato
da observação, é bem estranho ter em conta somente o fato exterior, que
representa a sua metade, e não também a outra, constituída pelo lado interior,
isto é, da visão e interpretação daquela parte exterior obtida em função da natureza
psíquica e espiritual do observador. Portanto, a atual objetividade científica
é incompleta, e uma técnica experimental mais perfeita deveria abraçar ambos os
momentos no ato da observação. A análise do fenômeno psíquico pode-se
logicamente fazer não apenas por via extrovertida, observando uma vasta
casuística, ou recolhendo de fatos acontecidos, ou procurando descobrir as
leis reguladoras do seu funcionamento, mas também por via introvertida, pela
qual o indivíduo pensante observa como nele está funcionando o seu pensamento
enquanto está pensando.
Nos tratados de Psicologia
e Parapsicologia usa-se em geral o primeiro método. No presente escrito usamos
o segundo. Poder-se-ia dizer que, no primeiro caso, vê-se o fenômeno nos seus
efeitos; no segundo, nas suas causas. É natural que a ciência tenha preferido a
primeira via, porque a sua objetividade a torna exterior, enquanto a
subjetividade do segundo caminho a converte em interior. Mas é evidente que se
trata de dois métodos complementares para atingir o conhecimento do mesmo
fenômeno, que será visto na sua totalidade e completo somente se observado de
ambos os lados e penetrado pelas duas vias. Assim, o método do
psíquico-espiritual pode ser concebido de forma cérebro-cêntricas e
psicocêntrica, e uma sua visão total não pode ser dada senão através de uma
observação ampla que os abrace em toda a sua extensão, de um ao outro dos seus
dois pólos.
Perguntamo-nos: por que a
ciência deve limitar-se apenas ao uso do primeiro sistema de observação e, na
pesquisa, não utiliza também os recursos da intuição? É certo que esta deveria
dar somente a orientação, mas com isso teríamos uma investigação guiada, e não
cega como hoje, abandonada à tentativa das hipóteses lançadas ao acaso. Assim
se faria mais completo o método da sondagem do ignoto. Por que se recusar a
ajuda que pode vir deste lado? Por causa do conceito materialista que diz:
mover-nos no campo metafísico nos conduz fora da realidade? É verdade que tudo seria controlado de maneira
que a intuição não se resolvesse em fantasia. Trata-se de juntar duas vias de
pesquisa complementares, de as ligar em colaboração, para funcionar cada uma na
sua justa posição. Não foi dito que a metafísica não seria uma realidade, mesmo
que diversa daquela objetiva e experimental da ciência. Se se trata de dois
pontos de vista e métodos complementares, não há razão para que, com vantagem
comum, eles não devam auxiliar-se reciprocamente: o primeiro ponto de vista
utilizado para a visão de conjunto é abstrata; o segundo, para o exame
particular é concreto. Deste modo, lançar-se-ia a antena que explora o ignoto,
para encontrar, paralelamente, uma confirmação experimental e analítica no
terreno concreto. Faremos a seguir uma aplicação desses conceitos.
O problema da
sobrevivência depois da morte física não é facilmente solúvel, permanecendo-se
na parte externa do fenômeno, realizando-se observações de casos nos seus
efeitos exteriores sem se penetrar na sua íntima estrutura psíquica, por via
extrovertida, em lugar daquela introvertida.
Tomemos como exemplo as recentes investigações de Rhine neste campo. Ele
utiliza o primeiro destes dois métodos. Em seu longo caminho por via analítica,
não chegou senão a conclusões parciais. Limitou-se a confirmar a presença de
uma percepção extrasensorial (ESP) e de uma psicocinética (PC) isto é, de
modificações extramotores no ambiente devidas à energia psíquica (o espírito
que atua diretamente sobre a matéria). Circunscreveu-se, assim, a constatar que
penetrou num terreno que transcende as leis físicas, isto é, extrafísico.
A respeito da
sobrevivência, diz J. B. Rhine no seu volume: The Reach o/ the Mind (O
Alcance do Espírito), Cap. XII:
"A única espécie de
percepção possível no estado de desencarnado seria a extrasensorial (ESP); e a ação psicocinética (PC) seria o único
meio para influir, fosse qual fosse o universo físico" (. . . .).
"Rhine coloca o problema da sobrevivência em função da ESP e da PC e o
enfrenta por essas duas vias. Ele permanece em nosso plano de existência, fora
daquele em que se realiza o fenômeno; assim trabalha em forma sensória
extrovertida, em vez da espiritual introvertida; indaga na matéria, onde
aquele fenômeno não aparece senão incidentalmente, porque aquele não é o seu
meio, nem investiga no espírito, onde o fenômeno funciona normalmente, viste
que este é o seu ambiente natural. Assim, Rhine vê somente o aspecto negativo
do fenômeno, a sombra que ele projeta no plano físico. Desta forma, não vai
além da constatação do fato de que a ESP e a PC revelam que existe, na
profundidade, um funcionamento que não pertence ao mundo material em que
vivemos. Mais além ele não vê, e o aspecto positivo do fenômeno lhe escapa.
Rhine, para ser coerente,
não podia colocar o problema senão no plano da existência humana, isto é, o
material, e não no nível próprio do fenômeno, que é espiritual, porque, se o
tivesse feito, não teria sido positivo como deve ser um cientista. A ciência,
para ser fiel aos seus métodos, neste caso ficou longe do centro do fenômeno,
que, por mais que ela procure agarrá-lo, foge-lhe na sua essência. Aqui vemos
como são grandes os limites da ciência e dos seus métodos positivos de
pesquisa.
Isto nos faz pensar numa
incompetência "a priori , congênita, na ciência oficial, para penetrar na
substância dos fenômenos, o que a constringe a permanecer na superfície deles.
É assim que se explica como ela pode chegar, como sucede de fato, a construir
uma técnica praticamente utilitária para desfrutar, para vantagem sua, as leis
da natureza, enquanto não sabe chegar à compreensão da substância dos
fenômenos e a uma orientação universal que resolva o problema do conhecimento.
Com o método intuitivo,
nós não estamos a observar os reflexos que da profundidade do fenômeno irradiam
na superfície exterior em nosso ambiente terrestre e em nossa respectiva forma
mental periférica e analítica, para deduzir o que acontece no interior. Ao
contrário, aprofundamos o olhar e, com outros sentidos e instrumentos mentais,
olhamos o que acontece por dentro e por quê. Isto pode parecer fantasia às
mentes positivas. Mas aqui, aplicando os princípios expostos no capítulo
precedente, explicamos a que conclusões se chega com este outro método
introspectivo e como o mesmo problema é enquadrado e resolvido. Podem-se,
assim, confrontar os resultados dos dois sistemas de pesquisas.
O método da intuição não
nos conduz, através de uma casuística e de um processo analítico, a uma
interpretação do fenômeno em forma de hipótese e tentativas de formulação de
uma teoria. Explica-nos simplesmente como ele funciona, oferecendo-nos o
resultado final da pesquisa com a solução do problema. Trata-se de um
produto-síntese obtido com uma outra técnica de pensamento. Enquanto a comum
psicanálise se ocupa dos fenômenos que acontecem nos substratos do
inconsciente, aqui se trata de uma psicossíntese que lhe observa os aspectos
superiores. Segundo Jung, "a intuição é a função mediante a qual surgem
percepções por via inconsciente (. . . .). Na intuição um conteúdo qualquer se
apresenta como um todo completo. O
conhecimento intuitivo possui tal caráter de segurança e de certeza, que
induziu Spinoza a considerar a ciência intuitiva" como a mais alta forma
de conhecimento
Similarmente Assagioli
admite "a existência de uma função cognoscitiva superior com a qual se
consegue uma direta e íntima compreensão da realidade. Este órgão de
conhecimento direto é a intuição. Ela não é irracional, mas super-racional. Não
obstante a cooperação da mente normal é necessária para o seu correto emprego.
E é bom possuir uma idéia clara do que constitui as justas relações de
cooperação entre as duas. A esse respeito as funções da mente são: 1)
reconhecer a intuição e as suas mensagens; 2) interpretá-las corretamente; 3)
formulá-las e expressá-las em palavras. A Nova Era atestará o florescer da
intuição"
Estas palavras de
Assagioli confirmam plenamente o método da intuição que eu usei na composição
da Obra, exatamente nas suas três fases, como foi explicado no capítulo
precedente. Esta coincidência, de que só agora me apercebi, é uma nova confirmação.
Assim, posso dizer que apliquei, experimentalmente. sem ter conhecido, a teoria
do Dr. Assagioli. O meu caso não é, portanto, mediunidade no comum sentido da
palavra, mas se pode antes definir como penetração consciente na esfera do
superconsciente.
Ora, mesmo que tudo isso
pudesse parecer não científico. poderia ser utilizado de forma subordinada como
método de indagação para formular hipóteses de trabalho, e submetê-la depois a
controle experimental, verificando-se com a observação e os fatos confirmariam
a intuição, concordando com ela. A investigação poderia ser orientada em parte,
não como preconceito, mas como hipótese, o que pouparia o trabalho que a
pesquisa implica quando avança por tentativas. Esta poderia constituir a
primeira parte da investigação, consistindo numa projeção do pensamento
antecipador da solução do problema tomado em exame, projeção obtida lançando
para a frente os tentáculos da intuição, para depois avançar, com mais
segurança, com os meios positivos do normal controle racional e experimental.
Apresentemos agora um
exemplo no qual aplicaremos os princípios acima expostos. Enfrentamos o
problema da sobrevivência depois da morte com o método da intuição, segundo um
caminho diverso do seguido pela ciência. Vamos expor aqui os resultados
traduzidos em termos de raciocínio normal. O fenômeno é, em primeiro lugar,
enquadrado no sistema filosófico exposto e demonstrado em outro lugar,
utilizando dele aqui as conclusões. Assim, o problema é orientado desde o
princípio e isto em relação a pontos de referência estáveis, já fixados em
outros escritos. Já sabemos que nenhum fenômeno é completamente insolúvel, nem
compreensível, se não for visto em relação aos outros. Tomemos, então, para
depois proceder por sucessão lógica, como ponto de partida, o fato de que
espírito e matéria são os dois pólos do ser, opostos e complementares,
interdependentes e comunicantes. Eles são um aspecto do dualismo universal
despedaçado, mas reconstituído em unidade no mesmo ciclo. O pólo espírito
significa também S, e o pólo matéria quer dizer AS, que são os dois extremos do
ciclo involutivo-evolutivo, que solda a fratura do dualismo, tudo reconduzindo
á unidade originária no S.
O método do ciclo é
universal e corresponde ao sistema rotativo, segundo o qual se move o universo
físico. Este é feito de elementos de tipo esférico, de retornos cíclicos, de
trajetórias fechadas, de espaço curvo. Este método do ciclo consegue compensar
a complementaridade e conciliar a oposição dos dois termos do dualismo,
chegando, assim, a reconstruir em unidade a cisão e a pôr de acordo os dois
opostos modos de existir em um dualismo unitário constituído por um circuito
que, fechando-se em si mesmo, reúne as duas metades na unidade oferecida pelo
próprio ciclo. Assim, a cisão se resolve em uma pulsação de ida e volta, pela
qual o afastamento do ponto de partida é compensado e equilibrado por um
movimento de retorno em sentido que lhe é oposto, movimento inverso que, apesar
de ser a continuação do primeiro no mesmo rumo tem o poder de o anular em
direção contrária.
Este modelo universal
repete-se na série vida-morte e morte-vida, na qual ecoa o circuito maior S e
AS. O primeiro período do ciclo, que corresponde à fase involutiva, é
representado pela descida no plano físico, na forma de um corpo, à guisa de
queda na matéria, no AS, para ali realizar o esforço de evoluir e redimir-se,
dele voltando a subir para o espírito e para o S. Deste modo, encarnar-se
representa a condenação do decaído, porque conduz para a matéria, em forma de
vida de obscurecimento do espírito ao nível sensório no plano físico. Ao
contrário, desencarnar-se tende para o lado oposto, isto é, a elevar-se no
plano espiritual, caminhando em direção ao S. A fase terrena da vida é feita de
luta, de provas, de fadiga para subir, deslocando para o alto a própria posição
ao longo da escala da evolução. O período de vida no além é, entretanto, de
tipo contrário. Ele representa a segunda parte da esfera, que corresponde à
fase evolutiva, ou seja, não de queda na matéria, mas de ascensão para o
espírito.
Depois de haver vivido uma
existência em forma extrovertida, é necessário um período de introspecção: 1)
para compreender por que se viveu e o que, num mundo de ilusões, se fez de
substancial, seja em bem, seja em mal; 2) para avaliar o sentido das
experiências atravessadas e apossar-se do fruto, assimilando-o e fixando-lhe os
resultados na própria vida como continuação do trabalho já realizado. Em suma,
nas duas etapas, temos uma mesma elaboração com finalidade evolutiva, a qual se
cumpre de formas opostas dentro do mesmo ciclo de ida e volta, isto é, como
vida que caminha para o plano matéria e como existência que se dirige para o
nível espírito. Temos uma fase de trabalho na matéria, feita de luta, e outra
de trabalho no espírito, composta de reflexão e compreensão.
Estas observações tratadas
pelos nossos escritos precedentes permitem orientar-nos perante o fenômeno da
sobrevivência, fornecendo-nos os princípios sobre os quais ele se baseia. Não
corresponde à realidade considerá-lo isolado no seio da fenomenologia de que
organicamente ele faz parte. É necessário ter resolvido primeiro o problema
maior, se se quiser depois solucionar as questões menores nele contidas. Neste
caso da sobrevivência, trata se de uma oscilação do pólo matéria ao do espírito
e ao contrário Tal flutuação matéria-espírito, que neste caso toma a forma de
vida-morte, é possível, porque, no fundo, neste dualismo, está contida a unidade
fundamental do ser. É essa unidade que permite o trasbordamento do espírito, no
âmbito da matéria, com ESP e a PC. Mas também existe um contato em sentido
oposto, porquanto o pensamento para manifestar-se no plano material tem
necessidade do órgão cerebral. Assim, espírito e matéria são dois aspectos
extremos de uma fundamental unidade de substância, tanto que nesta a involução
constitui o processo de transformação: espírito-energia-matéria, e a evolução o
inverso: matéria-energia-espírito. (V. A
Grande Síntese).
Então, psique e corpo,
isto é, a parte espiritual e o lado material, dos quais resulta constituído o
nosso ser, não são senão duas fases diversamente avançadas do transformismo,
posições entre as quais, ao longo da escala da evolução, está situado e
contido o ser humano. A psique está à cabeça e se move para a conquista dos
estados mais avançados; o corpo fica na cauda, representando um passado do qual
a vida tende a afastar-se, conservando-o, mas retornado em sínteses sempre mais
rápidas e destilado em forma de valores sempre mais concentrados. É sempre a
mesma substância do ser que se transforma ao longo do seu caminho ascensional.
Neste processo a psique representa a parte alta do fenômeno, onde se está
operando a construção futura com a subida em direção ao S, e o corpo constitui
o lado inferior do mesmo fenômeno, o caminho já percorrido nos mais baixos
planos da evolução situados em direção ao AS. Quanto mais tendemos para o alto,
por sermos evolutivamente avançados, tanto mais vivemos no nível espírito,
mais vizinhos do S; quanto mais nos inclinamos para baixo, por sermos involutivamente
atrasados, tanto mais existimos no estágio matéria, mais próximos do AS. Assim,
cada ser, em alturas diversas, ocupa um trecho do caminho ascensional. E,
evoluindo, desloca-o em subida, distanciando-se sempre mais do AS e
avizinhando-se do S. Veremos, agora, como se verifica este deslocamento para o
alto.
Estas observações
permitem-nos focalizar melhor o problema do inconsciente. Por que ele existe?
O que significa a sua presença tão extensa em comparação com a zona muito menor
coberta pelo consciente? Só com a orientação exposta por uma filosofia
universal que se reconstitui nas primeiras origens, como a desenvolvida nos
volumes precedentes, pode-se dar uma resposta a esta pergunta. O ente não podia
ser criado por Deus senão consciente. O inconsciente, ao contrário, é
negativo, está do lado oposto à origem, que, sendo derivação direta de Deus,
não pode ser senão positiva. Eis que o inconsciente só pode ser o produto de um
desmoronamento, inversão ou queda, fenômeno que explicamos larga mente nos
volumes O Sistema e Queda e Salvação. O
inconsciente. então, é um obscurecimento da luz da consciência, uma sua
inversão ao negativo, é o resultado de um desfazimento desta com a queda do S
no AS.
Este fenômeno se explica
em função daquele universal, já admitido: a evolução. Podemos ver todo o
caminho percorrido pelo consciente de origem, seja na sua fase involutiva, de
descida, até chegar à posição de inconsciente total na plenitude do AS, seja no
seu período evolutivo, de retorno, até reconstruir-se na sua originária
situação de consciência e conhecimento total na plenitude do S. Podemos saber
porque existem no ser essas duas posições opostas — uma
ao positivo e outra ao negativo — do fenômeno da consciência. E podemos
responder a quem nos pergunte: por que, com a evolução, muda a amplitude do
campo compreendido pelo consciente em relação ao dominado pelo inconsciente? É
fato que o maior resultado da evolução é a conquista de consciência, isto é, o
desenvolvimento nervoso, cerebral, mental, através do qual ela se dilata sempre
mais, no campo da personalidade, conquistando espaço até sua total inversão,
repelindo gradualmente o inconsciente até eliminá-lo. O período involutivo do
grande ciclo é representado pela descida espírito-energia-matéria até a
plenitude do AS e da negatividade do inconsciente. O oposto período evolutivo
é representado pelo regresso ascensional matéria-energia-espírito até a reconstrução
do S e da positividade do consciente. Sabemos que o trabalho da existência
serve para o desenvolvimento da consciência, que a vida evolui
espiritualizando-se. O grau de evolução atingido é demonstrado pela extensão
da zona de consciência conquistada no campo do inconsciente. Por isso, falamos
tanto aqui de superconsciente, são forças positivas que querem a evolução. O
escopo desta é destruir a zona negativa do inconsciente, levando-nos à sua meta,
que é a plenitude da consciência e conhecimento em Deus. Semente a intuição, e
não a ciência, pode dar-nos esta orientação e nos diz porque existe o
inconsciente e qual é o significado da sua presença e o desenvolvimento do
fenômeno. Sabemos também que o consciente no seu nível atual representa aquela
zona da originária centelha divina que, apagando-se até ao inconsciente total
— na fase matéria, no fundo da involução no AS — foi acordada e reacesa pelo
ser com o trabalho da sua evolução até formar a pequena luz: a nossa
consciência atual, em expansão até retornar à sua plenitude no S, isto é, em
Deus.
Julgo que somente assim
orientados, conhecendo a íntima natureza das coisas que se estão estudando, e
não apenas observando as suas manifestações exteriores, se possa resolver estes
problemas da psique, do espírito, da sobrevivência. Conhecendo, desta forma, o
fenômeno até as suas raízes, pode-se melhor entender-lhe o significado e tirar
suas conseqüências e aplicações. É
devida a esta fundamental unidade do ser, a qual se estende de um a
outro dos seus dois pólos, espírito-matéria, que pode existir u’a Medicina
psicossomática e a capacidade do
espírito curar o corpo com o qual está unido. A psicocinética (PC) prova que
existe uma possibilidade para o espírito de penetrar no campo oposto da
matéria. Há uma força psicocinética no espírito, como existe uma força atômica
na matéria. Mas, se em dadas circunstâncias, entre os dois estados opostos, há
possibilidade de intercâmbio, pelo fato de constituírem os extremos da mesma
unidade, isto não suprime a sua recíproca independência e separatividade no
momento da morte. Tanto mais que essa separatividade é apenas uma manifestação
do viver por turnos nas duas formas contrárias de uma única longuíssima vida,
uma em estado de repouso, enquanto o lado oposto trabalha. Trata-se de uma
oposição de modos de existir em posições diversas, para se permanecer sempre
vivo e ativo em cada uma das duas, ligadas em colaboração, visto que o sistema
é dualístico e único ao mesmo tempo. Há apenas uma bipolaridade da mesma unidade.
O ser humano é precisamente essa unidade bipolar, na qual na fase de encarnado
prevalece o lado inferior ou matéria, isto é, a posição involutiva em direção
ao AS, enquanto no período de desencarnado predomina o aspecto superior ou
espírito, ou seja, a projeção evolutiva para o S. A emersão da parte baixa
realiza-se através desta oscilação por ondas desde o vértice sempre mais
alto Sucede que, em toda encarnação, se
desce cada vez menos para a matéria e, em cada desencarnação, se ascende a uma
posição mais elevada no espírito.
Ora, como negar a
sobrevivência, quando, deste modo, se vê o seu mecanismo em ação, as suas
razões, a sua função equilibradora perante o oposto tipo de vida terrena e,
finalmente, a necessidade lógica de tal sobrevivência, dada a estrutura do
fenômeno vida e sua evolução no seio do organismo do todo? Não será essa
convergência de argumentos mais convincente do que a casuística, na qual se
dilui o pensamento da ciência? Vemos, assim, que tudo tem a sua causa no
esquema geral do ser. As duas vidas, de encarnado e desencarnado, alternam-se,
sustentando-se reciprocamente, para
subir em direção ao S, uma no estado matéria para executar o trabalho
complementar ao que é realizado pela outra em posição espiritual. Cada encarnação
é, à guisa de um recuo involutivo, uma descida na matéria para lhe suportar as
provas, aprender e assim progredir. Cada vida de desencarnado destina-se a dar
um salto para a frente, digerindo e assimilando as experiências vividas. O primeiro
tipo de vida vai para o AS, repetindo em descida, embora sempre de forma mais
fraca em cada encarnação, o motivo da queda e experimentando os castigos numa
forma de vida dura. O segundo modo de existência caminha para o S, como
tentativa de ascensão, colocando-se sempre mais alto em cada desencarnação,
provando as alegrias do novo estado em uma forma de vida melhor. Ora, sem a
sobrevivência depois da morte, não se poderia realizar o longo caminho da
evolução, necessário para que se possa regressar ao S, atingindo, assim, a
salvação final, o que constitui o objetivo da vida. Com estes conceitos tudo
tem um sentido lógico, justo, convincente. Se os suprimirmos, a vida
tornar-se-á um duro esforço inútil e o universo um organismo funcionando com
imensa sapiência, mas sem significado, nem objetivo, no caos. É impossível que
esta sapiência, que os maiores intelectos humanos vão fatigantemente
descobrindo, se resolva naufragando, deploravelmente no absurdo; que a lógica e
a profundidade do pensamento que vemos presente em tantos fenômenos se
desmintam depois no plano geral que deve coordená-los para uma finalidade
única.
É esta visão de conjunto
que nos impede de cair na concepção unilateral do materialismo científico, que
faz do homem um autômato cérebro-cêntricos, permitindo-nos ver também o homem
psicocêntrico, regido por leis de outro tipo, superfísicas, eu seja,
psicológicas, em vez de fisiológicas, não como extensão destas, mas baseadas em
princípios independentes no seu campo. Em suma, opomos uma ciência do espírito
à da matéria e podemos atingi-la com meios próprios de pesquisa, penetrando em
terreno que se encontra além do da matéria.
A este respeito Rhine, no
seu citado volume The Reach of the
Mind (O Alcance do Espírito), Cap. XII, diz-nos: (. . . .) "a telepatia
figuraria como o único meio de intercomunicação do qual poderiam dispor as
personalidades desencarnadas, seja com os vivos, seja com os não vivos . No seu
livro: New World of the Mind (O Novo
Mundo do Espírito), Cap. X, Rhine diz: (....) "qualquer transmissão do
pensamento de uma pessoa desencarnada a outra, ou a uma encarnada, deveria
realizar-se de forma telepática" (....). Então, se o fenômeno da
comunicação com os desencarnados se verifica telepaticamente, ele é
independente do transe mediúnico, não mais necessário para comunicar. Nós
sempre fugimos persistentemente de toda forma de perda de consciência. Isto
porque a maior finalidade da vida é evoluir, e não nos quisemos opor a tal. De
fato, evolução significa cada ampliação, desenvolvimento ou expansão de
consciência, enquanto involução significa cada diminuição, restrição, ou
supressão dessa consciência. Por isso, cair nas trevas da inconsciência é um
retrocesso. A evolução consiste em
fazer-se mais consciente em vez de menos, se possível subindo ao
superconsciente, pelo que abandonar o controle consciente para perder-se no
inconsciente, como sucede no transe, significa descer involutivamente. Quem é
mais evoluído não tem necessidade do transe para se comunicar com os
desencarnados, porque ele, sendo sensibilizado, pode fazê-lo em plena
consciência, sabendo perceber a sua presença espiritual como pensamento e
sentimento. E isto sintonizado, telepaticamente, por afinidade.
Eis, então, que Rhine
confirma as nossas conclusões expostas no capítulo precedente sobre o fenômeno
inspirativo, a respeito do contato telepático com a fonte de pensamento
geradora de nossa Obra, como a respeito da possibilidade de continuar a manter
aquele contato também depois da morte. Pudemos observar experimentalmente,
neste caso, o funcionamento de um pensamento por via não cerebral,
independente do seu órgão físico e da morte deste, em vez de estar ligado à
matéria e à sua decadência senil. Ter experimentado, durante quase quarenta
anos, o funcionamento de um pensamento supercerebral e, agora, constatar que
ele não envelhece com o corpo nos indica que tal pensamento deverá sobreviver,
também, depois do desfazimento do cérebro. É certo que, se este estiver cansado
ou doente, o pensamento não conseguirá expressar-se. Mas isto não implica que
o pensamento seja um produto cerebral. Também um automobilista, se o seu carro
estiver muito usado, não poderá desenvolver muita velocidade. Mas isto não quer
dizer que ele não saiba dirigir, nem viajar acelerado. Ele poderá fazer isso,
logo que dispuser de outro automóvel que não esteja naquelas condições.
Por estas vias chegamos à
conclusão de que a personalidade sobrevive depois da morte. Para quem está
escrevendo estas páginas não se trata somente de fé, de esperança, ou de
simples resultados de raciocínio, mas de uma sensação da indestrutibilidade do
eu pensante. Hoje estamos habituados a querer verificar tudo antes de
admiti-lo. A aceitação pela fé, ou pela autoridade, está fora de moda. Impor
verdades dogmáticas, como durante tantos séculos se usou, sem provas racionais
positivas, já não serve como defesa da verdade. Diz Rhine no seu citado volume:
New World of the Mind (O Novo Mundo do Espírito), Cap. VII: "Se
assim (impor verdades dogmáticas), em vez de um grupo, se comportasse um
simples indivíduo, ele seria julgado louco, dado que se recusa ao contato com
a realidade e se aceitam fantasias não verificadas". As nossas afirmações
aqui expostas respondem à lógica de um plano universal. Foram controladas por
longa experimentação, de acordo com aquela lógica em contato com uma realidade
vivida, e são agora confirmadas por quem aqui as sustenta através de um íntimo
sentido da verdade, dado pela sensação da indestrutibilidade da parte
espiritual da pessoa, não obstante o fim já iniciado da sua parte material. O
resultado a que chegamos não é uma hipótese ou teoria, mas a segurança de que
as coisas são como aqui afirmamos.
* * *
Todos estamos enquadrados
dentro da lei do ciclo vida-morte e não podemos existir senão como
transformismo. Tudo é feito da divina substância incriada e indestrutível. Nada
se cria, nada se destrói, tudo se transforma. Como poderia, então, a
personalidade humana, entidade definida por si própria, e como poderia o espírito,
forma de energia superior, anularem-se com a morte? Como poderia aquela
personalidade, quando aparece na vida, ser um efeito sem causa, um fato sem
continuação e conseqüência? Mas em que outro lugar vemos os fenômenos
funcionarem nesse sentido Não acontece sempre que o sucedido no passado seja
abandonado, esmagado pelo futuro, que surge para lhe tomar o lugar, por sua vez
rapidamente consumido pelo presente para tornar-se subitamente passado e ceder
passo a novo amanhã que se lhe quer substituir? Assim ocorre com a morte. Como
é possível mutilar no seu desenvolvimento o transformismo de um fenômeno? Como
se pode parar o fluir do tempo, que, inexoravelmente, marca o ritmo daquele
transformismo? Como pode existir um fato sem amanhã, fechado em si mesmo,
completo em uma só fase do seu desenvolvimento, ou que se esgota sem deixar
resíduos, traços, conseqüências, ou que detém o seu curso sem qualquer
continuação? A estas leis universais a morte teria de fazer exceção. Por que
este desvio à fenomenologia universal? Que justifica tão flagrante violação da
ordem das coisas? Como pode somente este caso fugir à aplicação dos princípios
vigentes? lá dissemos que o conceito do nada não pode existir senão
relativamente ao modo precedentemente assumido pela substância, que continua a
existir sempre a mesma através de todas as formas.
Cada um nasce com a sua
personalidade já elaborada e, conforme a natureza desta, escolhe o ambiente e
plasma a sua vida depois, segundo o que escolheu e viveu, tem morte diversa e
enfrenta o além. Assim, cada um realiza a seu modo o princípio geral
transformista do fenômeno vida-morte, e cada tipo de personalidade realiza-se
de maneira diferente. Acontece que, se para os extrovertidos, para quem é fácil
viver projetado para o exterior no ambiente terrestre, faz-se escuro quando o
tipo de vida com a morte se inverte em direção ao interior, para o
introvertido, para quem é difícil viver nas condições oferecidas por aquele
ambiente, faz-se luz quando sai da prisão da matéria, para se lançar no mundo
interior. Colocar-se ao nível da vida humana pode, para um indivíduo
proveniente das proximidades da animalidade, significar um salto em frente, uma
ascensão espiritual, mas para um evoluído pode querer dizer um retrocesso. No
primeiro caso, a existência terrestre pode ser uma alegre expansão vital, no
segundo uma dolorosa sufocação. Por isso a vida pode ter, para os indivíduos,
significados, finalidades e resultados vários. Para quem nascer leva a
ascender. isto pode querer dizer entrar num paraíso, mas para quem nascer
significa descer, isto pode representar ir para o inferno. A alegria da vida
está em seguir a lei da evolução, que conduz ao S. Por isso, quando a vida no
nível humano constitui uma subida, porque se parte de mais baixo, ela pode ser
tida como alegria, apesar de ser alegria de primitivo; porém, quando a vida é
uma descida, porque' se inicia de um nível mais alto, então ela se torna
sofrimento, mesmo que seja padecimento de evoluído. Tudo é relativo à posição
que se ocupa ao longo da escala evolutiva.
Assim se compreendem as
diversas atitudes dos indivíduos. Do comportamento de cada um, conforme a sua
natureza, depende o seu tipo de vida e de morte. Se para o involuído o
nascimento no plano físico pode significar uma melhoria, podendo viver em mais
alto estágio evolutivo e, portanto, constituindo a morte uma perda, para o
evoluído tal nascimento pode comportar condições piores de vida em um mais
baixo ambiente evolutivo, podendo a morte ser considerada uma libertação. É
natural que se encontrando eles em posições opostas, aquilo que para um é
afirmação, para o outro é negação de si próprio, e ao contrário. Para quem é
matéria aqui se acha a vida e, para quem está no plano do espírito, aquele
nível significa a morte. Para quem é espírito a vida encontra-se neste âmbito
e, para quem está na matéria, aquele nível representa a morte. Há um abismo
insanável entre o homem do mundo e o do espírito. O primeiro vive para realizar
no meio terreno; o segundo, no campo ideal. Eles enfrentam a vida de maneiras
opostas. O primeiro quer multiplicar-se na carne para viver satisfeito no
máximo bem-estar deste mundo; o segundo dirige-se para formas de vida mais
altas, superando a terrestre. Para aquele esta aspiração é sonho e utopia, para
o último constitui a mais alta realização, porque corresponde ao maior impulso
da vida, que é a evolução. O primeiro quer gozar no presente, o segundo
pretende ascender, projetado para o futuro. Aquele triunfa em vida, quando se
encontra no seu ambiente, mas é derrotado pela morte, quando tem de sair desta
existência. O último luta e sofre em vida, exilado na Terra, embora vença na
morte, quando pode libertar-se desse mundo E este segundo caso que aqui estamos
narrando.
É lógico e justo, para
quem a vida é positiva no plano terreno e negativa no espiritual, que a morte
se apresente negativa; e, para quem a vida se mostra positiva espiritualmente e
negativa no ambiente terreno, que a morte seja positiva. Esta para ele não é o
fim, mas o início de outra vida maior. É lógico e justo que as posições
favoráveis e contrárias se compensem e que, nas relações entre os bons
oprimidos e os prepotentes dominadores, elas se invertam. Se a existência
atual constituísse toda a vida, o mundo teria razão. Mas seria um absurdo que,
se ela fosse completa, se exaurisse num espaço de tempo tão breve. Então,
vencer na Terra seria algo só momentâneo. Será que a existência pode ser
anulada? Não. E pode-se deter o tempo? Também não. É necessário forçosamente
continuar e prever, preparando essa continuação. Que sucederá a quem não o
tiver feito, ou, pior, tenha-o realizado de modo emborcado? Não queremos com
isso depreciar o homem de ação dirigido a finalidades práticas. Tudo isso não
significa inevitavelmente que ele esteja em erro, mas apenas que o seu campo de
trabalho cobre um espaço limitado, além do qual existem outras possibilidades
imensas em bem e em mal que ele não leva em conta e que lhe escapam, porque as
ignora. Assim, aquele homem permanece fechado no ambiente terrestre, sem
vislumbrar a vida maior que existe além deste.
O homem da Terra
identifica-se com o corpo e prende-se àquilo que este pode possuir, anexando-o
a si O homem do espírito sente-se como personalidade distinta do seu corpo e
daquilo que a este se pode juntar com a posse, a que, portanto, não se liga
como coisa própria. Trata-se de duas formas mentais diferentes. Para o primeiro
tudo aquilo que a vida oferece constitui um fim, para o segundo é apenas um
meio. Para aquele a morte é morte, isto é, o fim, uma anulação; para o último ela
é o início de uma nova vida, uma passagem, uma transformação. Apenas este
sente-se ficar íntegro na sua personalidade, completamente vivo na morte,
porque e impossível morrer. Então, ele se libertará do escafandro que teve de
vestir para poder descer até a profundidade do plano físico, a fim de poder
entrar em contato com ele. O involuído identifica-se com o escafandro e se
interessa apenas por este tipo de vida, como se fosse o único e o melhor. Em
vez de apressar-se a subir à superfície, procura tornar-se mais pesado ainda,
carregando-se de todas as possíveis revestiduras, como riqueza, honras, poder
terreno, sempre mais vastos domínios em todos os campos. Mas estas coisas são
acrescentadas do exterior, portanto destinadas a serem abandonadas com a morte
Com o indivíduo fica somente aquilo que é verdadeiramente seu, as suas
qualidades, ou seja, não aquilo que ele possui, mas o que ele é.
Acreditar que se possa
crescer e se tornar maior só com possuir é uma ilusão, porquanto, em realidade,
a existência é um transformar-se sem cessar. Querer subir é um impulso
evolutivo sadio, mas não é aquele o caminho. Onde tudo continuamente se
transforma, a estabilidade de uma posse definitiva é utopia, um absurdo, porque
se torna uma atadura que paralisa a ascensão, atraiçoando o escopo da
vida. No seio de tal sistema, onde tudo
muda sempre — e se nasce e se morre — pode-se ter apenas ou um usufruto
temporário, ou um empréstimo, não uma propriedade definitiva Somos viajantes ao longo do caminho da
evolução, constrangidos a mover-nos incessantemente em direção ao seu vértice.
As bagagens constituem-se um obstáculo ao avanço; aquelas comprometem, enquanto
este é o que tem mais valor, porque é nele que está a salvação. A prisão às
coisas é produto do AS, precisamente para frear a ascensão ao S. Trata-se de um
método emborcado de crescer, porque se pretende engrandecer aprisionando-se, em
vez de libertando-se para poder voar. O verdadeiro enriquecimento se alcança
pela via oposta. Quanto mais nos livramos de uma prisão particular, tanto mais
nos enriquecemos com a capacidade de possuir universalmente. Seguindo o
primeiro método, as coisas se afastam de nós, porque, desejando agarrá-las,
queremos constrangê-las à nossa vontade, fora da natural corrente das suas
leis. Aplicando o segundo método, as coisas vêm a nós, por nos colocarmos no
fluxo das suas leis, na via do seu natural traçado. A nossa avidez nos afasta
do sucesso, o nosso desprendimento as atrai. A posse de uma coisa qualquer,
enquanto parece que nos engrandece e nos dá poder, de fato tende a fazer-nos
seus servos. Então, isso em vez de ser útil à pessoa para evoluir, prende-a,
paralisando-lhe os movimentos e o progresso.
Aquilo que verdadeiramente
podemos possuir são as nossas virtudes. Elas representam o nosso maior
tesouro, é por meio delas que verdadeiramente podemos ser donos das coisas,
somente sabe produzi-las e conservá-las quem tem aquelas qualidades. Estas são
a nossa única verdadeira propriedade, inalienável, indissoluvelmente ligada à
nossa pessoa, enquanto as coisas vão e vêm à mercê dos acontecimentos. Toda
atividade humana para apropriar-se do mundo se reduz a dispor diversamente o
material que se encontra na superfície da Terra, sem lhe poder acrescentar um
só grama que seja. Depois de nossa temporária intervenção, tudo fica mais ou
menos onde estava, para retomar o curso das suas espontâneas transformações
estabelecidas pelas suas leis. E assim que de todas as grandes obras humanas
não fica outra coisa dentro do homem senão a técnica que ele aprendeu para
construí-las, como se elas fossem só um material de exercitação para aprender.
Das coisas edificadas; de estável restam unicamente as qualidades adquiridas
para construí-las. É por isso que temos o direito de moldar-nos na escola da
vida, mas apenas como meio, isto é, temos o direito de dispor de tudo aquilo
que é necessário para a nossa evolução, e só até aí. Tudo vale e nos é dado enquanto serve de
instrumento para caminhar rumo ao ponto final da evolução, a que tudo tende e
à volta da qual gira o universo, ou seja, serve para o regresso ao S.
Estamos explicando as
razões da renúncia e o justo sentido em que ela deve ser entendida e
praticada. Se isto não acontece, ela pode representar somente um impulso
negativo, dirigido a construir qualidades de ócio e inaptidão. A renúncia pode
ser entendida como uma indiferença em relação a problemas terrenos para nos
eximirmos do esforço de enfrentá-los e resolvê-los, numa santa preguiça,
evitando que nos construamos através da luta pela vida. O ginásio das nossas
exercitações é a Terra, e devemos atravessá-la para depois subir ao céu, e não
fugir-lhe nas solidões do deserto. Ausentar-se da vida com a renúncia não é um
atalho para evoluir, saltando para um plano superior de vida, livrando-se de
percorrer toda a transformação evolutiva. É necessário entrar em contato com as
dificuldades terrenas para lhes suportar as respectivas provas. Portanto,
voltar as costas à Terra, acreditando que basta isso para ganhar o céu, sem
primeiro haver amadurecido por ter aprendido todas as duras lições de nosso
baixo mundo, é leviandade de inexperientes, ignorantes da técnica progressiva
da evolução. Voltar as costas à Terra representa só o lado negativo do
fenômeno, que deve ser completado pelo outro positivo, constituído pelo trabalho
da construção espiritual, de maneira que nos tornemos capazes de saber viver em
um nível evolutivo mais alto.
Pode-se cair nesse erro,
renunciando-se à vida e às suas provas, como acontecia freqüentemente com os
religiosos medievais, que se isolavam em penitências, julgando que se
espiritualizavam apenas com atormentar o corpo. Não basta morrer em baixo. É
necessário saber reviver mais no alto. A ascensão ao céu não é uma fuga, mas
uma lenta preparação através de aproximações graduais. Eis, então, que para ali
entrar faz-se mister ter atravessado e superado todas as fases do caminho que
conduz até lá. Só alguns indivíduos isolados estão maduros para tais
superações. As massas encontram-se no seu elemento, na Terra, proporcionado ao
seu ambiente, onde acham as provas adaptadas, necessárias para evoluírem.
Entre os dois tipos, maduros e imaturos, é difícil a compreensão. Por isso os
primeiros devem sair da Terra e os segundos ali ficarem para continuar a
construir, com os seus próprios esforços, cada vez mais altas formas de
civilização. Cada elemento tende e acaba por colocar-se no lugar que lhe
compete, conforme a sua natureza, merecimento e trabalho a realizar.
A herança do homem é ser
condenado a construir nas areias movediças, traído pela ilusão e pela paixão de
produzir obras estáveis. A caducidade de todas as coisas é a regra neste
planeta. À sua natural deterioração, para o que necessita de certa manutenção
que lhe conserte o contínuo transformismo, acrescenta-se o instinto de
agressividade e o sistema de luta em que o homem vive para melhor destruir
tudo. Nem o fruto de nosso trabalho é estabilizado e pacificamente nosso. Dele
não resta senão o fato de que tê-lo realizado nos constrangeu a aprender. Esta
é a única coisa que, fixando-se na personalidade como qualidade adquirida,
resta do passado, isto é, ao lado dos escombros e ruínas, uma habilidade
criadora sempre crescente. Ora, o que interessa é o que permanece em nós, não o
que desaparece; o que transportamos conosco não é o que regressa ao depósito
das coisas; é a lição aprendida, não o instrumento usado para aprendê-la. O
progresso, de fato, não consiste em acumular os produtos do trabalho do
passado, mas em aprender a arte de produzi-los sempre mais, melhores e com
menor fadiga. Às vezes as obras do passado e os métodos usados para produzi-los
representam até um obstáculo de que é útil libertar-nos. Aquilo de que
verdadeiramente somos donos não são, portanto, as coisas, que, mais cedo ou
mais tarde, acabam por cair na ruína, mas é a capacidade de saber
construí-las. O progresso consiste não em reunir em posses, porém em
apropriar-se de uma sempre mais rica e perfeita técnica produtiva que,
utilizando os recursos do ambiente, supra o nosso consumo.
Então, a coisa mais
produtiva de que nos tornamos donos é a técnica construtiva, isto é, um bem em
movimento que se enxerta no transformismo universal, na corrente do qual nos
colocamos. O domínio maior consiste em possuir as causas, que geram as coisas,
mais do que estas, que delas são o efeito. E as causas estão dentro de nós. São
as nossas habilidades. Assim, um rico preguiçoso e inepto é mais necessitado
do que um pobre ativo e inteligente, porque o primeiro acabará pobre e o
segundo rico. Que se nasça para gozar, ou que se possa obter seja o que for
não merecido, porque não ganho à sua custa, é algo em que só os primitivos podem
crer. A vida, pelo contrário, é uma escola para os voluntariosos, como pode
ser uma penitenciária para os rebeldes, uma casa de correção onde a Lei de Deus
ensina com os trabalhos forçados e o chicote.
Quem conceber a vida
conforme esta ordem de idéias sabe que a morte não lhe pode levar coisa
alguma, se ele se enriquecer de valores seguros, que são os inerentes à
personalidade. Mas isso pode suceder apenas quando se compreender que o verdadeiro
escopo da vida é construir-se a si próprio. Então, tanto mais se vale e se é
poderoso, quanto mais se sabe e se é melhor, e não quanto mais se possui.
Quando se soube viver, morre-se satisfeito levando consigo o fruto do próprio
trabalho. Quando não se soube viver, morre-se tristemente com as mãos vazias,
sem levar coisa alguma consigo. Em cada vida se aprende mais e, quanto mais se
aprende, tanto mais nos tornamos sabedores e potentes. Quando, no fim do
caminho da vida, chega-se perante a morte, fazem-se as contas e se fecha o seu
próprio balanço, tanto no ativo como no passivo. Se tivermos escolhido as
coisas ilusórias, poucos serão os valores verdadeiros que ficarão conosco. Se
nos tivermos dedicado aos tesouros da Terra, teremos de os restituir todos,
inclusive o nosso corpo, que é parte do material vivo tido em usufruto para a
duração de nossa vida. Tanto maior será a ruptura e o engano quanto maior for
o apego. Mas a dor dessa ruptura constituirá o ensinamento mais útil que
trouxermos da posse das coisas da Terra, porque assim aprendemos a não nos
ligar mais a elas e a libertar-nos da ilusão que elas representam.
* * *
Caminhando, caminhando,
chega-se ao fim da vida. Ela, então, fica pertencendo toda ao passado, onde
permaneceu cristalizada. Doravante ela representa algo já realizado que não
está mais em nosso poder. É que ela se encontra em nossas mãos enquanto
necessitamos dela como instrumento de trabalho, fugindo-nos, uma vez terminada
a construção. Incumbia-nos apenas atravessá-la para realizar algumas
experiências e aprender algumas lições. A jornada terminou, aquela vida não é
mais nossa. É nosso apenas aquilo que ela produziu. Agora já tudo foi feito e
ficou para trás no nível das coisas passadas, de que nos restam nas mãos apenas
os efeitos, semente que é fruto de nossa planta, a qual voltará a nascer para
gerar novos efeitos na forma de outras plantas e frutos.
Àquilo que foi feito nem
Deus pode mudar. É sua Lei que as conseqüências das nossas ações sejam
fatalmente nossas. No final chega a hora em que
escolher e querer não valem mais. Já foi suficientemente selecionado e
desejado em plena liberdade. A saída está fechada. Entra-se no domínio da Lei,
na sua corrente e por ela se é arrastado conforme a posição em que nela nos
colocamos e as reações que provocamos. O que constituiu livre escolha se torna
de agora em diante fatal determinismo, que nos cairá nas costas e nos ligará
como destino em nova vida. Poderemos ainda, livremente, escolher, mas ficamos
dominados pelos impulsos dos movimentos já iniciados no passado e que, por
inércia, tendem a continuar na sua direção.
Caminhando, caminhando,
chega-se ao último ato. Aparece o extremo horizonte para além do qual cai o
pano. Na velhice quem viveu apenas para o presente, na matéria, olha para trás
com saudade, agarrando-se ao passado que lhe foge. Quem viveu em função do
futuro, no espírito, olha para a frente cheio de esperança na direção de nova
vida que o espera. O primeiro é verdadeiramente velho, espírito e corpo O
segundo é velho apenas no corpo, mas é jovem na alma. Para quem viveu preso à
Terra, é o fim. Para quem viveu olhando para o alto, é o princípio.
Na corrente universal do
transformismo evolutivo físico-dinâmico-psíquico, a função da vida é mudar a
energia em psiquismo. É assim que se nasce inexperiente, mas cheio de energias
jovens, ansiosas de fazer experiências; e se morre cansado, porém pleno de
conhecimento adquirido com aquelas experiências. Isto é o que cada um faz no
seu nível: um trabalho de tipo mais elevado para o mais evoluído e de natureza
mais baixa para o menos evoluído. Mas para todos a vida é escola de
experiências. Este é o seu escopo, isto é, cada um realiza, à altura do seu
plano evolutivo, um trecho do seu transformismo dinâmico-psíquico. De fato, na
velhice, executado o labor extrovertido da experimentação, o indivíduo
espontaneamente se prepara para aquilo que depois cumprirá ap6s a morte, ou
seja, o trabalho introvertido de elaboração do material ingerido, para
assimilar e com ele construir a própria personalidade. Por isso, na velhice,
não se traga novo alimento, rumina-se o velho, vivendo não de experiências, mas
de recordações.
A juventude é a alvorada
na qual se inicia a tarefa cheio de forças; a velhice é o ocaso da vida, quando
se repousa, cansado. Na juventude encontramo-nos cheios de energia, com todo o
serviço ainda para fazer. E temos necessidade das coisas materiais para
fazê-lo; na velhice achamo-nos esgotados, mas com o trabalho feito. E
precisamos das coisas espirituais para uma faina em sentido oposto em outro
tipo de vida. Ao nascer estamos ricos de potencialidades, ansiosas de explodir
no plano físico e pobres de conhecimento e qualidades mentais em confronto com
aquelas que adquirimos; na velhice somos mais ricos dessas virtudes, mas
pobres de energia. Este princípio aplica-se igualmente para todos. Os fatos
confirmam a nossa interpretação do escopo da vida. Ela manifesta-se como uma
descarga dinâmica (atividade no plano físico) e uma recarga psíquica (aquisição
de conhecimento). A vida no além deverá ser o contrário, isto é, uma recarga
dinâmica no repouso e uma descarga psíquica na meditação, no sentido de que o
consciente se verá aliviado do material mental acumulado em vida,
transmitindo-o ao subconsciente, depósito de experiências adquiridas. Acontece
à guisa do estômago, que, com a digestão, enquanto se esvazia para enfrentar
outra refeição, leva o organismo a assimilar o alimento, transformando-o em sangue.
Quanto mais o ser é
involuído, tanto mais se sente vivo nos planos que se dirigem para o AS; e,
quanto mais é evoluído, tanto mais se sente vivo nos estágios que caminham para
o S. Para o primeiro a posição de encarnado na matéria aparece positiva e a de
desencarnado, negativa. Para o segundo a situação de encarnado é negativa e a
de desencarnado, positiva. Assim para o encarnado é vivo quem existe no seu
plano físico e morto quem vive só como espírito; enquanto para o desencarnado é
vivo quem existe como espírito e morto quem vive no ambiente físico. Isto será
tanto mais verdadeiro quanto mais o encarnado for involuído e quanto mais o
desencarnado for evoluído. É por isso que a morte inspira tanto mais medo
quanto mais se é involuído e tanto menos quanto mais se é evoluído. Isto também
porque, quanto mais se é evoluído, tanto mais se é espiritualmente forte e,
assim, tanto menos a morte é queda no inconsciente, o que significa perder
consciência isto é, a sensação de viver. E, ao contrário, quanto mais se é involuído,
tanto mais se é fraco espiritualmente.
Consequentemente, tanto mais a morte é queda no inconsciente,
constituindo perda de consciência, ou seja, da sensação de viver. É assim que
potencializar-se espiritualmente, subindo em direção ao S, implica uma progressiva
vitória sobre a morte, no sentido de que ela perde o poder de nos mergulhar nas
trevas do AS, tolhendo-nos a consciência e com isso a sensação de ficarmos
vivos. Se a morte é potente ao máximo no pólo negativo do ser, no AS, o é a
zero no pólo positivo, no S.
No momento da morte, não
há mais nada a fazer senão abandonar-se no seio da lei de Deus, que sabe fazer
e prover para que tudo seja feito em perfeita justiça. Não seremos defraudados
de nenhum mérito. Tudo o que foi ganho nos será pago com exatidão, em bem como
em mal, em forma de alegria ou de dor. Desaparecem, então, as distâncias,
sempre mais débeis e longínquas, os juízos do mundo, os seus louvores e as suas
condenações, que outrora pesavam tanto e que agora não valem nada. O que
presentemente conta é apenas o juízo de Deus, com o qual nos encontramos,
finalmente, sós. Todo o resto não nos serve, não nos interessa mais. Então,
passa-se em revista o passado, que retorna perante a consciência, no fundo da
qual está Deus, que fala e julga, porque a centelha originária que a criou no
S se ofuscou, mas não se extinguiu com a queda no AS. Faz-se, então, a soma do
dar e do haver perante a Lei. Deste modo, cumpre-se espontâneo, automático e
fatal o juízo de Deus por sobre todos os do mundo. Vê-se, então, afastar-se e
perder-se, a distância, a esfera da Terra com o seu formigueiro humano.
Torna-se pequeno o que parecia tão grande e importante: as suas glórias, as
suas riquezas, o seu poder, os seus tribunais! Perante a eternidade, visto em
função de outros pontos de referência, tudo adquire um valor diverso.
Caminhando, caminhando,
também estou chegando ao fim do percurso terreno. A longa vivência está para
terminar. O meu trabalho está feito. A Obra está chegando ao fim Cumpri a minha
promessa e realizei a missão. Por mais de oitenta anos, até hoje, tive de
ficar imerso no pântano do mundo. Mas, finalmente, chegou a hora da libertação.
Cada um andará pela sua estrada, conforme as suas obras. Os aproveitadores do
ideal continuarão nas suas façanhas. Eu me retraio ao seio da fonte de
pensamento que me iluminou por toda a vida. Cada um conforme o destino que
desejou. Afasto-me sempre mais do mundo. Cada um pela sua estrada. A qualquer
um deixo a Obra. Por isso foi feita a oferta. Fiz a minha parte. Cada um é
responsável apenas pelas próprias ações.
A Obra é um plano de
trabalho que pode ser usado como recurso para subir, ou como um ideal a
explorar. No primeiro caso, será um precioso instrumento de evolução; no
segundo, para quem quiser usá-lo emborcado, um perigoso meio de involução. Tudo
na Terra pode ser usado em duas direções: ao positivo, caminhando para o S,
como ao negativo, aproximando-se do AS. A Obra não é um cômodo ascensor para
nos elevarmos sem esforço, mas é o traçado que mostra a escada que cada um tem
de subir com as próprias pernas. Todas as tentativas de desfrutar a Obra para
finalidades humanas recairão em cima de quem quiser fazê-lo, para seu dano.
Isto já ocorreu e continuará a verificar-se. Com isso não se realiza senão o
que a própria Obra explica quando demonstra o funcionamento da Lei. Quem quiser
manejar esta Obra terá primeiro de a ler toda e a compreender, para não cair
nos erros e danos de que ela própria nos adverte. Esta será uma conta dos continuadores
com Deus, na qual não entro. Cada um é livre, mas deve depois recolher
conforme as suas ações. Será perigoso, como se costuma fazer com os ideais e
como já foi tentado, emborcar para outras finalidades a função da Obra. Quantos
já foram jogados ao chão ao longo do seu caminho! É perigoso ignorar e desafiar
a potência invencível dos defensores das coisas do espírito.
A Obra está aí escrita. As
pessoas têm quanto tempo quiserem para compreendê-la. Isto já não é trabalho
meu, o qual era apenas expor tudo para que pudesse ser compreendido. Tarefas e
responsabilidades estão bem definidas. A cada um o seu. Eu vou-me embora, com
o meu esforço realizado, para recolher o fruto em outro lugar. Os outros ficam
com o seu trabalho para fazer, se lhe quiserem recolher o resultado. No final
se dividem os campos, e cada um permanece só diante da Lei, na posição que lhe
compete. Os princípios expostos na Obra não são somente teorias. A Lei não
pode ficar em vão e, também, neste caso, põe-se logo a funcionar. As minhas
contas com Deus são coisa minha, e ninguém pode imiscuir-se; delas ninguém pode
retirar nem acrescentar coisa alguma; bem assim as contas do mundo são com
Deus e delas ninguém pode também subtrair ou adicionar nada. As contas do mundo
são com Deus, não comigo, como as minhas não são com o mundo, mas apenas com
Deus. O momento histórico é grave para todos, e cada um deve chamar a si as
suas responsabilidades.
Nestes volumes conclusivos
da Segunda Obra, falei também do Cristianismo, dos seus deveres e destinos,
examinando as suas responsabilidades perante o problema moral e espiritual que
o espera em nossa civilização ocidental. O primeiro impulso espontâneo de quem
ama uma religião é defendê-la. E estranho, porém, como fui mal interpretado.
Foi tomado por alguns como um assalto contra a religião aquilo que constituía
uma defesa da mesma contra os falsos religiosos — e são tantos! — para que ela
fosse levada a sério num momento tremendamente crítico, sobretudo para a cristandade,
no qual se prestam as contas e, portanto, se devem pagar tantos erros e abusos
acumulados no passado, dos quais ela é responsável.
Em virtude deste
mal-entendido, quem observar aonde fatalmente conduz o desenvolvimento da
trajetória deste fenômeno deve antes calar-se. E isto porque os bem pensantes,
falsos crentes, cobertos de religiosidade e com isto persuadidos de terem
sabido conciliar Cristo e Evangelho com as suas comodidades e negócios, não
desejam ser perturbados Eles sentem-se
ofendidos por quem lhes parece ter a intenção de descobrir as suas mentiras
para os denunciar, quando, na verdade, a preocupação é, apenas, a de salvá-los.
Que fazer então? Salvá-los
não se pode: 1) porque não o querem e o impedem reagindo, como se se tratasse
de resistir a um ofensor; 2) porque se trata de grandes fenômenos históricos
sobre os quais um indivíduo isolado não representa nada; 3) porque a respeito
deles não espera erigir-se em juiz e condenar, mas somente perdoar e tolerar;
4) porque incumbe só a Deus fazer justiça. Estas grandes responsabilidades não
pertencem a quem não tem os correspondentes poderes e autoridade. O indivíduo
não é obrigado a responder além dos limites do seu caso e posição individual.
Conclui-se daí que assim
ele está proibido de cumprir o dever de intervir, enquanto lhe é imposto o de
abandonar os irmãos ao juízo de Deus e à reação de Sua Lei. Será esta uma dura
fatalidade imposta pela tremenda justiça daquela Lei? Dependerá isto do fato
de que Deus não permite uma fácil e gratuita evasão das conseqüências
merecidas, pelo que tudo deve ser pago por quem o mereceu? É assim que Deus
torna os homens surdos aos conselhos com que desejaria salvá-los, de modo que,
quando for chegada a hora do ajuste de contas, eles não possam fugir, não
usufruindo de ajuda alguma.
A minha posição, então, é
respeitar, calar, deixar os responsáveis entregues ao seu destino,
permanecendo imparcial, antes benévolo espectador, mas separado da
responsabilidade deles. Dado que avisar pode ser mal interpretado, devo, sem
me envolver, ficar só a olhar como Deus disporá as coisas, como acontece com a
dura lição da dor. É triste não poder gritar que a casa está pegando fogo,
para salvar quem lá habita. Mas, em consciência, não se pode fazer de outra
maneira. Portanto, constitui dever o mais completo respeito pela liberdade de
escolha do próximo.
De minha parte a Obra foi
feita e oferecida. O que restar ficará para os outros. O trabalho de a
compilar foi executado nas mais difíceis condições, porque a Terra não é lugar
para contemplações idealistas e realizações evangélicas. Aqui domina a lei da
luta pela vida. O mundo é um campo de batalha, onde para sobreviver se torna
indispensável possuir uma forma mental adequada completamente diversa da que é
necessária para saber executar um trabalho espiritual. Quem é feito para este
trabalho deve adaptar-se a viver em tal ambiente, que não o poupará por isso. O
homem votado às coisas do espírito, se quiser sobreviver, deve entrar em guerra
e fazê-la como todos, porque, se ele se distrair olhando para o céu, o mundo
aproveitará para devorá-lo. Eis o que espera quem se perde na visão dos grandes
problemas e esquece a realidade torturante de cada dia. Esta exige capacidade
de assalto e defesa, muito mais do que qualidades intelectuais e morais.
É lógico que tudo seja
assim. Na Terra são negativas as virtudes evangélicas, que, num plano superior
de organicidade, são positivas, enquanto são negativas neste último nível as
qualidades do animal lutador e egoísta, as quais, neste mundo, são positivas.
Isto porque o nosso planeta ainda gravita, em grande parte, em direção ao AS,
baseando-se, portanto, em princípios e métodos involuídos deste, em vez de se
fundamentar nos mais evoluídos do S. Assim, para viver no ambiente terrestre,
está mais adaptado o involuído egoísta e lutador do que o evoluído altruísta e
pacífico.
A Obra foi escrita no meio
dessa tempestade, aproveitando os momentos de trégua em que ela afrouxava para
golpear noutro lugar, mas sempre vivendo em estado de tensão. Isto implicava
um desperdício de energias, subtraído à produção. Que rendimento maior não
teria sido, se tivesse trabalhado num ambiente de tranqüilidade, como seria
necessário para poder pensar! Talvez o fato mais prodigioso fosse que a
composição da Obra pudesse ter sido levada a cabo em tais condições. Daí se
pode ver em que dificuldades deve encontrar-se submergido na Terra quem luta
pelas coisas do espírito, e como é justificada a sua alegria ao avizinhar-se a
hora da libertação. É lógico e biologicamente justo o sistema da luta pela vida,
como sucede no plano humano, por um biótipo que deve realizar a seleção do
mais forte ou astuto, porque esta, no seu nível, é a forma de evolução
proporcionada que ele deve executar. Mas é absurdo tal sistema
contraproducente, já que paralisa o trabalho de quem quer realizar uma tarefa
de outro tipo, porque lhe é mais adaptada.
Todavia, quase como
conforto em hora de desalento, chega-me, enquanto escrevo esta página, uma
carta de uma pessoa capaz de julgar[1],
e emite o seu julgamento sobre o primeiro volume da Obra, A Grande
Síntese, do seguinte modo: "Ao finalizar a leitura desta
Obra (A Grande Síntese), temos a impressão de haver ressurgido,
no século XX, um dos grandes profetas bíblicos. Igualá-la é difícil.
Superá-la, impossível. Negá-la,
absurdo. Discuti-la, loucura. Mas
aceitá-la e senti-la são a prova de que em nós há uma centelha da divindade.
Merece realmente ser encadernada no mesmo volume que o Novo Testamento, como
coroamento das obras dos grandes e primeiros apóstolos. A força e a segurança
fazem desta Grande Síntese uma continuação natural das
Epístolas e do Apocalipse, nada ficando a dever a eles (....). Quanto à
confirmação de sua Obra, a cada dia que passa sinto que cresce em todos os
pormenores. Realmente a sua Obra é toda inspirada na espiritualidade maior,
filtrando com fidelidade o pensamento crístico, que constitui a noosfera mais
elevada do nosso planeta".
Permanece, no entanto, o
fato de que a diminuição de produção representa um dano ao interesse coletivo,
que assim obtém uma produção útil menor.
O indivíduo que executa o
trabalho, porque tem de realizá-lo em condições tão adversas, devendo vencer
dificuldades, fortifica-se espiritualmente, o que o torna mais apto a ascender.
No final da vida, termina-se a partida, e a Lei se apossa de nosso destino qual
o quisemos construir. Então, já não podemos funcionar como causa determinante
de acontecimentos. Devemos antes, fatalmente, continuar como conseqüência de
nosso passado. Termina a hora da livre experimentação, uma vez que está
exaurido o seu escopo. O passado retorna a nós, vivo, gigante, mas agora já
imobilizado na forma em que foi vivido, e nele ficamos suspensos como se
estivéssemos fora do ciclo da transformação. Parece que o tempo tenha parado,
porque não sabe criar mais nada de novo. Inclinamo-nos sobre o passado, e ele
agora pleno de outros significados recônditos, antes não suspeitados, enche a nossa vida. Vivemo-lo de novo, mas agora
interiormente; não mais nas vicissitudes materiais, mas no seu significado; não
mais como conquista terrena que já não nos interessa, porém como construção de
personalidade. A vida assume, então,
outro sentido. Fazem-se as contas do que realmente produziu o tanto que se
correu. E, se não derivaram valores construtivos em sentido evolutivo, mas
somente sucessos terrenos, que agora são abandonados, não resta outra coisa
senão um vazio e o sentido da inutilidade de tanta fadiga. A vida só será plena
e bela no seu final, se a tivermos enchido de valores substanciais, os que
servem para evoluir. E será oca e triste, se a tivermos recheado de falsos
valores de tipo AS, que servem para descer involutivamente. No primeiro caso,
sentimos que nos dirigimos para a luz, no segundo, que caminhamos para as
trevas.
No fim eis-me sozinho
perante a Lei. Refugio-me nos braço S de sua justiça. Através de toda a Obra
observei o funcionamento dessa Lei. Sinto-a operar à minha volta, dentro de
mim. Ela me expressa o pensamento e a vontade de Deus. Estou imerso plenamente
nesta atmosfera feita de vida, da qual se alimenta o respiro do universo. Os
sentidos físicos se extinguem, fecham-se as portas que eles abriam para o
exterior, rompem-se os contatos com o mundo da matéria, e eu continuo a sentir
e a pensar. O cérebro envelhece e desaparece. Eu fico. O corpo morre. Eu vivo.
A minha vida se desloca do plano físico ao espiritual e se concentra na sua
parte mais alta, que não morre. O meu ser se enfraquece em um nível e se
fortalece em outro, no qual sobrevivo. Quanto mais o corpo definha, tanto mais
me fortaleço no espírito. Morro de um lado para ressuscitar do outro. Tenho a
sensação de morrer só na parte inferior de mim mesmo. E uma separação que não
dá nenhuma sensação de perda, porque vale mais a parte que se adquire. Como é
belo morrer quando se viveu assim! Fica-se na parte mais profunda e vital do
próprio ser!
Ao concluir o meu ciclo
terrestre, depois de tanto pensar e escrever para executar o trabalho que me
tinha sido confiado, volta a amiga voz interior, que agora já bem conheço, a
fazer-se diretamente sentir como no início da Obra. Sinto esta voz emergir da
profundidade da alma e dizer-me: "Permanece calmo. Sabe que eu sou Deus.
Sou Deus dentro de ti, como dentro de todos e de todas as coisas. Quem segue a
Lei não tem nada a temer. Confia no meu poder. Seja qual for o assalto do mal,
Eu tenho o poder de salvar-te
Pergunto o que essas
palavras significam e como aquilo que elas dizem seja possível. E ouço a
explicação. A universo está em evolução, o que dá a entender que ele não é
perfeito e que se move em busca de perfeição. A meta é Deus, no centro do S; a
evolução é o caminho do retorno, depois de ter havido o afastamento. A
imperfeição é o estado de ruína devido à queda; a evolução é o trabalho de
reconstrução da perfeição perdida. O homem encontra-se situado na periferia do
S; poder-se-ia dizer no seu exterior, isto é, na matéria ou forma que envolve
o espírito, no plano da ilusão sensória. Várias são as imagens com que se pode
expressar esta idéia. Tal periferia, que é o AS, é feita de caos, mas, no
interior, no centro, no S, ficou a ordem, íntegra, indestrutível. O homem
encontra-se do lado do caos, mas dentro deste existe aquela ordem que o rege e
lhe guia os movimentos, dirigindo-os para a reconstrução da mesma. É por este
fato que o caos, embora feito de negatividade — e, naturalmente, por isso não
poderia conduzir senão à autodestruição — é animado, contra a sua vontade, de
um impulso de positividade que o leva por fim a reconstruir-se na ordem. Esta
é a razão pela qual o mal, nascido como contradição, porque representa o
emborcamento do bem no AS, é constrangido a continuar sempre a seguir este tipo
de trajetória, isto é, a contradizer-se, pelo que no fim acaba por um
instrumento de bem nas mãos de Deus. É evidente que, mesmo assumindo uma
posição emborcada da revolta, ninguém pode fugir ao poder de Deus, centro e
origem de tudo. Deste ponto, que permaneceu vivo e ativo também no mais íntimo
do AS, deriva o impulso da evolução que leva todos a ascender.
O AS não está só. Dentro
da sua casca podre reside uma alma sã e potente que o sustenta e o guia para a
salvação. Ele não é senão um membro corrompido de um grande organismo que permaneceu
sadio, o S, que continua a irradiar saúde para a parte doente, a fim de
curá-la. O AS não se separou de Deus, fonte primeira do existir. Os raios
divinos chegam também aonde a criatura quis colocar-se em posição emborcada. E
tudo o que existe os recebe. A grande consolação do indivíduo condenado ao
retrocesso espiritual, com ter de se encarnar no ambiente terrestre, é reencontrar
esta íntima ligação sua com Deus, é rever na profundidade das trevas do AS um
raio da luz divina, é ouvir a voz de Deus e sentir a Sua presença.
Vão-se embora as formas instáveis, ultrapassadas
pela corrente do transformismo batido pelo ritmo do tempo, acossadas pelo
contínuo movimento do relativo, à volta do absoluto, eterno, imóvel. A
evolução não avança ao acaso. Dirige-lhe o desenvolvimento, regendo-a
interiormente, o pensamento de Deus, fio condutor do transformismo, ao qual é
dado um desenrolar-se lógico desde um ponto de partida até outro de chegada. É
feliz, mesmo que esteja mergulhado na profundidade dolorosa da vida terrena,
quem compreendeu que um Pai celeste nos espera no final do longo calvário da
evolução redentora. É feliz quem sabe vê-lo vir ao nosso encontro com os
braços abertos, incitando-nos a ascender, para reencontrar Nele a felicidade.
"Eu sou apenas uma
gota num oceano e, por isso, não sou nada no oceano; no entanto, faço parte
dele e, por esse motivo, sou um seu elemento constitutivo; eis de que maneira
sou oceano". Isto é o que cada um de nós pode dizer, aquilo que somos
perante Deus. Mas não basta sê-lo. O problema é sabê-lo e senti-lo. Ora, se
Deus está dentro de tudo o que existe, sem o que nenhuma coisa poderia
existir, Ele lá está de modo tanto mais evidente e perceptível, quanto mais o
ser é espiritualmente evoluído, isto e, no regresso, que lhe é mais vizinho,
libertando-se dos invólucros obscurecedores, produto da involução. Eis que a
fundamental unidade da natureza entre criatura e criador é diversamente
sentida por aquela, conforme o grau de evolução alcançado. É indiscutível que
esta unidade existe e constitua uma qualidade indestrutível que ficou escondida
no mais profundo do ser, capaz de resistir a qualquer erro ou revolta deste.
Ela era indispensável para que se pudesse cumprir o ato da criação, com a qual
Deus gerou a criatura extraindo-a de Si próprio, isto é, da Sua própria
substância, dado que de outra maneira não podia fazer, porque Ele era tudo. É
assim que o evoluído, espiritualizado, às vezes pode encontrar na profundidade
de si mesmo, emergindo do inconsciente em que ficou sepultado, um eco daquele
pensamento divino originário de que derivou a sua existência. O fato dele não
ser percebido é devido à surdez do ser, por motivo da involução e não porque a
voz de Deus silencie. A involução podia mudar o que pertencia ao ser rebelde,
mas não aquilo que é de Deus.
Ora, dado que tal é a
estrutura do fenômeno, é evidente que ele não pode ser senão de tipo
introspectivo. Eis que só podemos encontrar Deus dentro de nós, e isto em
proporção ao grau de espiritualização atingido. A sensação da presença e do
pensamento de Deus, centro de todas as coisas, encontra-se interiormente, na
alma, na raiz do nosso ser, e não exteriormente, por meio dos sentidos.
Trata-se de escavar nos estratos mais profundos do ser, onde deve ter ficado
qualquer recordação das primeiras origens. Do contrário, não se explicaria
como seres provenientes dos planos baixos do AS, onde não se conhece senão
morte e dor, procurassem com tanta paixão a felicidade, que, de outra maneira,
dever-lhes-ia ser desconhecida. Tal impulso proveniente das profundidades do inconsciente
prova que ele se recorda e faz presumir que se trata de coisa conhecida. Então,
que se faça uma pesquisa profunda dentro de si mesmo, mas não no inconsciente
inferior ou subconsciente, que contém os produtos dos mais baixos planos
evolutivos em direção ao AS, percorridos no retorno, porém além deles e mais
em profundidade, isto é, no inconsciente superior ou superconsciente. Isto no
sentido de ali procurar as bem longínquas reminiscências de outro tipo de
existência no altíssimo nível evolutivo do S, as que este tenta fazer
reaparecer em forma de pressentimento do maior futuro que nos espera. Religião
e espiritualidade vêm a ser, então, um ato de profunda auto-análise psicológica
que investe sobretudo no superconsciente. Assim, elas significam um trabalho de
alta intelectualidade, e é neste sentido que aqui as apresentamos. Elas assumem
um caráter mais racional e positivo, o que as torna mais acessíveis e
aceitáveis pela ciência.
Quanto mais o ser evolui,
tanto mais ele reencontra estas realidades profundas e se liberta das ilusórias
do mundo. O ser humano é uma reprodução em escala microcósmica do grande modelo
macrocósmico do organismo universal. O nosso espírito eterno está dentro de
nosso corpo sujeito a contínuo metabolismo, como o S é imutável no íntimo do
AS, submetido a transformismo constante. Depois destas explicações podemos
compreender o significado daquelas palavras: "Sabe que Eu sou Deus. Sou
Deus dentro de ti". E "permanece calmo" quer dizer: faze
silêncio, porque a voz interior é sutil e difícil de ouvir. Isola-te, portanto,
dos rumores do mundo que te percutem do exterior e aguça o ouvido para ouvir
esta outra voz. O homem ainda ignora o universo interior, que é tão vasto
quanto o exterior, do qual não conhece os confins.
Há outro fato que justifica
e confirma aquelas palavras. E que São Paulo - Primeira Carta aos Coríntios,
3-16 - diz: "Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito
Santo habita em vós? E (id. 6-19): "Não sabeis vós que o vosso corpo é o
templo do Espírito Santo que está em vós (. . . .)?" São Lucas, no seu
Evangelho, acrescenta (17-21): "O reino de Deus está dentro de vós".
Então, se esta é a realidade, como impedir que ela às vezes aflore e que alguém
se dê conta da sua existência?
Perguntamo-nos se tudo isso pode ser
entendido como o desejo de tomar uma atitude orgulhosa de superioridade. É
certo que, neste caso, se trata de um crescimento, que, naturalmente, não pode
deixar de abrir uma distância. Mas é um crescimento positivo de tipo S,
portanto não simulado, egoísta, separatista, ou seja, antivital para os outros,
mas verdadeiro, generoso, unitário, isto é, vital para todos, porque implica um
amplexo para elevar juntamente consigo os próprios semelhantes. De tal
crescimento a sociedade não poderá sentir senão vantagem A humanidade, toda inclinada para conquistas
do mundo exterior, tem necessidade de quem se dedique à obtenção dos
ilimitados continentes do espírito. O ateísmo é simples miopia mental. As
construções mitológicas das religiões ameaçam não se manterem mais. Para que
elas possam sobreviver é necessário saber ver com outra mente as profundas
verdades que elas contêm.
O homem, como qualquer molécula do todo, traz dentro de si,
impressos na sua própria natureza, os sinais do todo, isto é, a sua estrutura bipolar.
Sabemos que o dualismo, que está na base da estrutura de nosso universo, é
derivado da revolta que despedaçou em duas a originária unidade do S. Porque o
homem se encontra em um todo bipolar, ele pode avançar por evolução e retroceder
por involução; elevando-se espiritualmente, pode projetar-se em direção ao S,
como, seguindo os seus baixos instintos, inclinar-se para o AS. A função da
evolução é justamente levar da cisão dualista à unificação de tudo em Deus,
através de progressiva reaproximação que tende a encurtar as distâncias entre
criatura e criador. E, quanto mais elas diminuem, tanto mais se podem ouvir e
compreender aquelas palavras: "Sabe que eu sou Deus. Sou Deus dentro de
ti". A altura da evolução não é espacial. O alto é o anjo, o baixo é a
besta. A ascensão se realiza transformando neste sentido a própria
personalidade.
Na Terra vemos os dois pólos flanqueados em
expressões paralelas. Nos velhos castelos e cidades as duas realidades encontravam-se
vizinhas. Havia as muralhas, os fossos para se defenderem e fazer a guerra e a
Igreja para falar com Deus. Em escala maior, temos o Estado e a Igreja, o
primeiro representando a Terra, isto é, a realidade da vida, a segunda
simbolizando o Céu, ou seja, o ideal. Estes são os dois pólos que, coexistindo
no mesmo terreno, disputam entre si o homem.
As formas da conduta do
idealista perante o mundo podem resumir-se em três fases:
1) a do jovem que,
cheio de fé e de entusiasmo, crê sinceramente nas belas coisas que lhe ensinam;
2) a do homem que, colocado em contato com a realidade, descobre como, nos
fatos, o mundo está longe dos princípios ideais que proclama,
escandalizando-se, portanto, e reclamando contra a mentira, para que os
princípios sejam vividos a sério;
3) aquela em que se compreende a inutilidade
dessa boa vontade e desse esforço honesto que o mundo considera como
agressividade e contra a qual reage, porque os acomodados não querem ser
perturbados. Assim, resolve-se aquela boa vontade recaindo na luta geral pela
vida. Então, o homem honesto termina separando-se do mundo, do destino deste e
cuida de se pôr no seu caminho para ir viver em ambientes superiores, longe da
Terra.
Quando se chegou a esta
fase final, não se perde mais tempo em fazer o trabalho negativo de condenar o
mundo, tanto mais que, se se devesse fazer o livro das acusações, não bastaria
um milhão de páginas. Trabalha-se em outro sentido, para se desprender de
baixo, afastando-se da Terra. No final da vida, isto é lícito, quando o
trabalho a executar foi devidamente cumprido. A libertação está na superação.
Quanto mais se estiver vizinho do S, tanto mais se tem a sensação com segurança
de ser indestrutível e impossível uma anulação. A imortalidade com a evolução
não pode levar senão para uma maior felicidade. Que se pode desejar mais? Apenas
por ignorância de primitivo pode-se acreditar que cair na inconsciência seja
tombar no vazio, só porque ele é nada como sensação de vida. Isto é natural
para quem confunde o existir com a percepção do existir, erro em que caem os
extrovertidos, que vivem da vida dos sentidos. Para eles a inconsciência é o
nada. Mas não há razão para que o existir não deva ser sujeito ao dualismo, em
que tudo se encontra cindido em nosso universo. É assim que esse existir pode
oscilar do estado de consciente ao de inconsciente e ao contrário, dado que
estes são os seus dois pólos: positivo e negativo. E absurdo admitir, porque
um fato ou fenômeno entra na sua fase negativa, que ele deva cessar de existir.
Evidentemente, trata-se de um erro de percepção, que a lógica descobre e
elimina.
Com este conhecimento do
fenômeno vou ao encontro da morte. Não se trata de fé ou de esperança, mas de
convicção racional e de segurança positiva. A voz de tudo isso que existe me
grita que nada pode ser anulado como verdadeira morte. Vejo-a, assim,
avizinhar-se para me abrir as portas de uma vida maior. Não a sinto como
negação, porém como uma mais potente afirmação. O seu verdadeiro conteúdo é:
libertação. Restituirá à Terra tudo
aquilo que ela me deu, inclusive o meu corpo dentro do qual fiz tão longa
viagem. O que pertence à Terra é justo que fique aí. Mas o que pensei, desejei
e fiz neste trajeto é meu e o levo comigo. Como o avizinhar-se da hora suprema,
aproxima-se sempre mais a figura de Cristo, que me sustentou neste longo
esforço. Sei que o verei na hora da morte, ao cumprir a minha missão, chancela
final do meu trabalho, para tudo confiar nas Suas mãos. Ele apareceu no começo
desta Obra. Reaparecerá no fim. Com Cristo se iniciou a narração deste volume
e com Ele se fechará.
Há pouco falei de Deus, agora falo de Cristo.
Poderiam perguntar-me como entendo estes dois conceitos e que relação vejo
entre os dois, se distantes ou unificados, isto é, se creio em Cristo só como
homem, ou em Cristo-Deus. Não tenho dúvida alguma sobre a divindade de Cristo,
fato lógico, racionalmente sustentável quando seja entendido no seu justo
significado. Perante o homem, Cristo e Deus representam a mesma meta a
alcançar, a mesma direção do caminho evolutivo, o mesmo ponto final deste com a
solução do ciclo involutivo-evolutivo, o S. Neste sentido unifico os dois
conceitos de Cristo e Deus. Mas os distingo enquanto entendo Deus como o Pai, o
Criador, que permaneceu no centro do S, e Cristo como seu derivado, como diz a
própria palavra filho, a saber, a criatura que aquele Criador gerou. Mas o
unifica de novo o fato de que o Filho é constituído da mesma substância do Pai,
de modo que Cristo é também Deus.
Ora, se Cristo é o Filho,
o fruto da criação do Pai, o conceito de Cristo coincide com o de S, porque a
criação do primeiro volta a entrar na do segundo. O nosso universo é tão
imperfeito que seria loucura acreditar que ele tivesse saído das mãos de
Deus como Sua obra direta. Assim, a primeira criação foi espiritual e perfeita,
como é Deus, feita de puros espíritos extraídos exclusivamente da Sua
substância, porque, além do Todo-Deus, nada podia existir. Deste modo, nasce a
terceira pessoa da Trindade, o Filho ou S, sendo a primeira o Espírito ou
pensamento, a segunda o Pai ou ação, a terceira o Filho ou a obra realizada.
Eis que, na lógica da estrutura da Trindade e do processo criativo, Cristo não
pode estar situado senão no S. O resultado da criação foi um só, que se pode
chamar Filho, Cristo, Sistema.
Tudo isso é Deus, porque
construído com a divina substância do Criador e dela é constituído. O S
representa a substância do Pai, transformando-se, com a criação do
indiferenciado, em organismo ou unidade coletiva, composta de muitos
elementos, que formam aquele organismo, o S, do qual o Pai ficou como centro,
como o nosso espírito está no cerne de nosso organismo. Se se pudesse fazer
uma comparação demasiado grosseira, poder-se-ia dizer que, na encarnação de
Cristo na Terra, sucedeu como se Deus tivesse deixado que uma célula do Seu
corpo se destacasse Dele para fundir-se com a nossa carne e, assim, agir em
nosso mundo.
Aqui desponta outra
diferença. Enquanto os elementos do S, incluindo Cristo, que ficaram isentos da
revolta e da queda, permaneceram na sua pureza originária, as criaturas de
nosso universo caíram no pólo oposto e se corromperam no AS. Eis o que nos distingue
e nos separa de Cristo. Ele permaneceu verdadeiramente Deus, porque a
substância do Pai que o constitui ficou íntegra como no momento da criação,
idêntica àquela da qual derivou. É assim para os outros elementos do S. Também
as referidas criaturas decaídas tiveram a mesma origem e foram feitas da mesma
substância; esta, no entanto, ofuscou-se com a queda, e a divina centelha se
aprisionou no ciclo involutivo-evolutivo, no processo do transformismo
necessário para retornar purificada ao S.
Não obstante esta imensa
distância que nos separa de Cristo, a que vai do S ao AS, há um fato que nos
avizinha Dele: todas as criaturas, mesmo as decaídas, são filhas de Deus. Esta
qualidade de origem não se pode cancelar. Então, se o ponto de partida do
nascimento é igual para todos, na base da existência de todos os seres há uma
fraternidade universal que liga em parentesco, como dentro de uma mesma família,
as criaturas do S às do AS. Eis o fato que nos aproxima de Cristo. Assim, temos
de um lado, no S, as criaturas sem mácula, que ficaram unidas a Deus, e, do
outro, em nosso universo, ou AS, as criaturas culpadas e decaídas, separadas de
Deus. Porém todas as criaturas saíram da mesma criação, ainda que se depois,
num segundo tempo, tenha surgido a cisão entre as que permaneceram com Deus e
as que se afastaram Dele.
Os cidadãos do S são, no
fundo, irmãos dos do AS. Também Cristo é nosso irmão. É esta fraternidade que
nos explica o que provocou e como foi possível a aproximação Cristo-humanidade.
Foi assim que a presença ou imanência de Deus se pôde realizar de modo
tangível em nosso mundo, como a descida no AS de um dos irmãos não decaídos. A
sua função ou missão, como no caso de Cristo, consiste em descer nas várias
humanidades dos decaídos, cada vez para um tipo diverso de trabalho, como seja
de poder, de inteligência ou de amor, mas sempre para funcionar como ponte
entre as criaturas decaídas e o Pai, mantendo, assim, o contato sensível e
incitando à solução do separatismo com o regresso do S, através da evolução
redentora. Eis como entendo o Cristo, como um grande irmão que nos salva,
fazendo-nos voltar a subir ao S e reconduzindo-nos a Deus.
Falei de diversos tipos de
trabalho. Isto é possível, porque, sendo o S um organismo, ele resulta
composto de elementos especializados em várias funções complementares,
integrando-se reciprocamente. É assim que, através das diversas criaturas do
S, Deus pode realizar-se assumindo inúmeras formas de manifestação, nas
diversas humanidades dos decaídos, empenhado com a evolução no caminho do
retorno ao S. Para mim Cristo representa o ser ideal, o modelo que a evolução
me apresenta e propõe que se realize no retorno ao S. Poderei dizer: é o meu
tipo, como para outros indivíduos existem outros padrões, adaptados cada um ao
próprio temperamento e especialização pessoal. Estes modelos não são abstrações
fora da realidade. São criaturas de Deus que existem de verdade, mesmo que
apenas espiritualmente, e são cidadãos do S.
O impulso evolutivo em
direção ao S leva o indivíduo a avizinhar-se sempre mais do seu próprio
paradigma. Isto até porque a evolução é um processo de unificação. A vida maior
que nos espera não é mais a do eu separado, mas a do eu unificado. Transforma-se,
então, a visão da vida e se opera como uma transfiguração. A medida fechada de
nosso pequeno eu, para nós tão grande,. dentro da qual vivemos, torna-se um
tipo de existência restrita, como se fora um cárcere, isolada do pulsar imenso
da vida toda do organismo universal. Quanto mais se evolui, tanto mais se sente
que todos os seres são verdadeiramente irmãos. Em nosso baixo nível, as outras
formas de vida são nossas inimigas, porque estamos do lado do AS, onde domina o
egoísmo que divide e a luta entre rivais. Mas, em plano evolutivo mais
alto, em direção ao S, prevalece a unificação, pelo que aquelas outras formas
de vida são nossas amigas e nos ajudam a viver. E, quanto mais se sobe, no
sentido da amplitude desta união em amor recíproco, tanto maior e mais bela se
faz a vida. Quando se é lançado nesta direção, a morte vem a ser libertação do
estágio inferior da vida terrena, de tipo antiunitário, libertação de uma
existência de prisioneiros do separatismo. Entra-se, então, na vida maior que
se espraia no Amor universal. Esta não é mais um viver como fragmento da humanidade
despedaçada, mas representa o existir unificado como elementos conscientes da
organicidade do todo.
[1] Prof.
Carlos Torres Pastorino, diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colégio
Internacional S. A, M. Zaccaria, em Roma; professor titular de Latim e Grego
da Universidade Federal de Brasília. (N. do A.).
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