Sobre
a fé.
Para
falar sobre a fé, precisamos ter em mente que há algumas
importantes
considerações
a fazer:
A
doutrina espírita nos lembra que a fé cega não deve ser professada
e sim
a
fé raciocinada.
E
o que é a fé raciocinada?
Do
livro Grandes Mensagens, retiro este trecho:
Na
"Parábola do Semeador", Jesus dirigindo-se aos
discípulos, disse:
"a vós vos é dado conhecer os mistérios
do reino dos céus, mas aos outros isso não lhes é dado".
Vinte
séculos depois, Cristo de novo surge para revelar ao mundo, através
do apóstolo Pietro, a
origem espiritual do homem e de todos os seres da criação.
Aqui
entra um trecho do item XVII da Introdução do Livro dos Espíritos,
onde é abordado o cepticismo no tocante à Doutrina Espirita
devendo ser enfatizado que a ciência espírita compreende duas
partes, uma experimental, sobre as manifestações em geral, outro
filosófica, sobre as manifestações inteligentes onde fica
demonstrado que cada efeito tem uma causa e diz a razão que um
efeito inteligente deve ter como causa uma força inteligente
(Prolegômenos - Livro dos Espíritos) e que as comunicações entre
o mundo espiritual e o mundo corporal fazem parte da natureza das
coisas e não constituem nenhum fato sobrenatural. Portanto, o
conhecimento das coisas, do modus operandi, solidifica a fé. É
como crer na existência do ar, sabemos que ele existe porque sua
ausência logo se evidencia.
fé
no Livro dos Espíritos - vide questão 922 , 943, 838 (vide 833 em
diante)
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Livro
A Grande Síntese - Capítulo 1 - Ciência e Razão (Por Pietro Ubaldi)
1.
CIÊNCIA E RAZÃO
Em
outro lugar e de outra forma, falei especialmente ao coração,
usando linguagem simples, adaptada aos humildes e aos justos que
sabem chorar e crer. Aqui falo à inteligência, à razão cética, à
ciência sem fé, a fim de vencê-la, superando-a com suas próprias
armas. A palavra doce que atrai e arrasta, porque comove, foi
dita. Indico-vos agora a mesma meta, mas por outros caminhos, feitos
de ousadias e potência de pensamento, pois quem pede isso não
saberia ver de outra forma, por faltar-lhe a fé ou incapacidade de
orientação para compreender.
O
pensamento humano avança. Cada século, cada povo segue um conceito
de acordo com o desenvolvimento que obedece a leis a que estais
submetidos. Em qualquer campo, a nova idéia vem sempre do Alto e é
intuída pelo gênio. Depois, dela vos apoderais, a observais, a
decompondes, a viveis, passando, então, à vossa vida e às
leis. Assim, desce a idéia e, quando se fixa na matéria, já
esgotou seu ciclo, já aproveitastes todo seu suco e a jogais
fora para absorverdes, em vossa alma individual e coletiva novo
sopro divino.
Vosso
século possuiu e desenvolveu uma idéia toda própria que os
séculos precedentes não viam, pois estavam atentos em receber e
desenvolver outras. Vossa idéia foi a ciência, com que
acreditastes descobrir o absoluto, embora essa também seja uma
idéia relativa que, esgotado seu ciclo, passa; eu venho falar-vos
exatamente porque ela está passando.
Vossa
ciência lançou-se num beco escuro, sem saída, onde vossa mente não
tem amanhã. Que vos deu o último século? Máquinas como
jamais o mundo as teve (mas que, no entanto, são apenas máquinas)
e, em compensação, ressecou vossa alma. Essa ciência passou como
um furacão destruidor de toda a fé e vos impõe, com a máscara
do ceticismo, um rosto sem alma. Sorris despreocupados, mas
vosso espírito morre de tédio e ouvem-se gritos dilacerantes.
Até vossa própria ciência é uma espécie de desespero metódico,
fatal, sem mais esperanças. Terá ela resolvido o problema
da dor? Que uso sabe fazer dos poderosos meios que lhe deram os
segredos arrancados da natureza? Em vossas mãos, o saber e a força
transformam-se sempre em meios de destruição.
Para
que serve, então, o saber, se ao invés de impulsionar-vos para
o Alto, tornando-vos melhores, para vós se torna instrumento de
perdição? Não riais, ó céticos, que julgais ter resolvido tudo,
porque sufocastes o grito de vossa alma que anseia por subir! A
dor vos persegue e vos encontrará em qualquer lugar. Sois
crianças que julgais evitar o perigo escondendo a cabeça
e fechando os olhos, mas existe uma Lei, invisível para vós,
todavia mais forte que a rocha, mais poderosa que o furacão,
que caminha inexorável movimentando tudo, animando tudo; essa Lei é
Deus. Ela está dentro de vós, vossa vida é uma exteriorização
dela e derramará sobre vós alegria ou dor, de acordo com a justiça,
como o merecerdes. Eis a síntese que vossa ciência, perdida
nos infinitos pormenores da análise, jamais poderá
reconstituir. Eis a visão unitária, a concepção apocalíptica
que venho trazer-vos.
Para
que me possa fazer compreender, é mister que fale de acordo com
vossa mentalidade e me coloque no momento psicológico que vosso
século está vivendo. É indispensável que eu parta justamente dos
postulados da vossa ciência, para dar-lhe uma direção
totalmente nova. Vosso sistema de pesquisa objetiva, à base da
observação e experiência, não vos pode levar além de
certos resultados. Cada meio pode fornecer certo rendimento e
nada mais, e a razão é um meio. A análise não poderia chegar à
grande síntese, grande aspiração que ferve no fundo de todas as
almas, senão por meio de um tempo infinito, de que não dispondes.
Vossa ciência arrisca-se a não concluir jamais e o “ignorabimus”
quer dizer falência. A tarefa da ciência não pode ser apenas
a de multiplicar vossas comodidades. Não estranguleis, não
sufoqueis a luz de vosso espírito, única alegria e centelha da
vida, até o ponto de tornar a ciência, que nasce do vosso
intelecto, uma fábrica de comodidades. Esta é prostituição
do espírito, é vergonhosa venda de vós mesmos à matéria.
A
ciência pela ciência não tem valor, vale apenas como meio de
ascensão da vida. Vossa ciência tem um pecado original: dirigir-se
apenas à conquista do bem-estar material. A verdadeira ciência
deve ter como finalidade tornar melhores os homens. Eis a nova
estrada que precisa ser palmilhada. Essa é a minha ciência2.
*
* *
Não
falo para ostentar sabedoria ou para satisfazer a curiosidade
humana, vou direto ao objetivo: para melhorar-vos moralmente, pois
venho para fazer-vos o bem. Não me vereis despender qualquer
esforço para adaptar e enquadrar meu pensamento ao pensamento
filosófico humano, ao qual me referirei o menos possível.
Ao contrário, ver-me-eis permanecer continuamente em contato com a
fenomenologia do universo. Importa escutar verdadeiramente essa voz,
que contém o pensamento de Deus. Compreendei-me, vós que não
acreditais, vós céticos, que julgais sabedoria a
ignorância das coisas do espírito e, no entanto, admirais o esforço
de conquista que o homem, diariamente, exerce sobre as forças da
natureza. Ensinar-vos-ei a vencer a morte, a superar a dor, a viver
na grandiosidade imensa de vossa vida eterna . Não acorrereis
com entusiasmo ao esforço necessário para obter tão grandes
resultados? Vamos, pois, homens de boa vontade, ouvi-me!
Primeiro compreendei-me com o intelecto e quando este ficar
iluminado e virdes claramente a nova estrada que vos traço,
palpitará também vosso coração e nele se acenderá a chama da
paixão, para que a luz se transmude em vida e o conceito em ação.
O
momento é crítico, mas é mister avançar. E então (coisa
incrível para a construção psicológica que o último século
imprimiu em vós) nova verdade vos é comunicada por meios que
desconheceis, para que possais descobrir o novo caminho. O Alto,
que vos é invisível, nunca deixou de intervir nos momentos
culminantes da História. Que sabeis do amanhã, que sabeis da
razão por que vos falo? Que podeis imaginar daquilo que o tempo
vos prepara, vós, que estais imersos no átimo fugidio?
Indispensável avançar, mais que isso não vos seria possível.
As vias da arte, da literatura, da ciência, da vida social estão
fechadas, sem amanhã. Não tendes mais o alimento do espírito
e remastigais coisas velhas que já são produtos de refugo e devem
ser expelidos da vida. Falarei do espírito e vos reabrirei
aquela estrada para o infinito, que a razão e a ciência vos
fecharam.
Ouvi-me,
pois. A razão que utilizais é um instrumento que possuís para
prover os misteres, as necessidades mais externas da vida:
conservação do indivíduo e da espécie. Quando lançais este
instrumento no grande mar do conhecimento, ele se perde, porque neste
campo, os sentidos (que muito servem para vossas necessidades
imediatas) somente esfloram a superfície das coisas e sua
incapacidade absoluta de penetrar a essência vós a sentis. A
observação e a experiência, de fato, deram-vos apenas
resultados exteriores de índole prática, mas a realidade
profunda vos escapa porque o uso dos sentidos como instrumento de
pesquisa, embora ajudado por meios adequados, vos fará permanecer
sempre na superfície, fechando-vos o caminho do progresso.
Para
avançar ainda, é preciso despertar, educar, desenvolver uma
faculdade mais profunda: a intuição. Aqui entram em função
elementos complementares novos para vós. Algum cientista jamais
pensou que, para compreender um fenômeno, fosse indispensável
a própria purificação moral? Partindo da negação e da dúvida, a
ciência colocou a priori uma barreira intransponível entre o
espírito do observador e o fenômeno. O eu que observa permanece
sempre intimamente estranho ao fenômeno, atingido apenas pela
estrada estreita dos sentidos. Jamais o cientista abriu sua alma,
para que o mistério encarasse o próprio mistério e se
comunicassem e se compreendessem. O cientista jamais pensou
que é preciso amar o fenômeno, tornar-se o fenômeno observado,
vivê-lo; é indispensável transportar o próprio Eu, com sua
sensibilidade, até o centro do fenômeno, não apenas com uma
comunhão, mas com uma verdadeira transfusão de alma.
Compreendeis-me?
Nem todos poderão compreender, pois ignoram o grande princípio
do amor; ignoram que a matéria é, em todas as suas formas (até nas
menores) sustentada, guiada, organizada pelo espírito que,
em diversos graus de manifestação, existe por toda a parte. Para
compreender a essência das coisas, tereis que abrir as portas de
vossa alma e estabelecer, pelos caminhos do espírito, essa
comunicação interior, entre espírito e espírito; deveis
sentir a unidade da vida que irmana todos os seres, desde o mineral
até o homem, em trocas de interdependências, numa lei
comum; deveis sentir esse liame de amor com todas as outras formas da
vida, porque tudo, desde o fenômeno químico até o social, é vida,
regida por um princípio espiritual. Para compreender, é
necessário que possuais uma alma pura e que um liame de simpatia
vos una a todo o criado. A ciência ri de tudo isso e por esse motivo
deve limitar-se a produzir comodidades e nada mais. Nisto que
vos estou a dizer reside exatamente a nova orientação que a
personalidade humana deve conseguir, para poder avançar.
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LIVRO
"A GRANDE SÍNTESE ''
- capitulo 87 - A DIVINA PROVIDÊNCIA - Por Pietro Ubaldi
87.
A DIVINA PROVIDÊNCIA
Nessa
ordem de idéias pode haver lugar para a inconsciência individual,
mas não para a inconsciência do Criador. Em qualquer caso, mesmo no
mais atroz destino, podeis crer na ignorância e maldade dos homens,
mas jamais podeis acreditar na insipiência ou maldade de Deus. É
inútil criticar aquele que personifica as suas próprias causas da
dor. Trata-se, frequentemente, de instrumentos ignaros, logo,
irresponsáveis e movidos por distantes e profundas causas de vós
mesmos. A vida é gigantesca batalha de forças que temos de
compreender, analisar e calcular. Ninguém pode invadir o destino
alheio, só pode semear loucamente alegrias e dores no próprio
destino. Uma vida, tão substancialmente perfeita, não pode existir
à mercê de um capricho e da louca alegria de atormentar-se
mutuamente. Assim, não tem sentido maldizer-se nem rebelar-se, tanto
mais que isso nada modifica, ao contrário, agrava o mal. É melhor
orar e compreender, porque a dor só cessará depois de termos
aprendido a lição que lhe justifica a presença.
Nessas
idéias situa-se, também, logicamente, o conceito de uma Divina
Providência, como fato objetivo e cientificamente demonstrável. Se
registrasseis em grandes séries o desenvolvimento dos destinos
individuais, veríeis ressaltar do resultado uma lei em que aparece
evidente a intervenção de uma força superior à vontade e ao
conhecimento individuais. Mas o homem se comporta como se estivesse
sozinho, isolado no espaço e no tempo. Sua ignorância da grande Lei
que governa tudo, fá-lo crer que vive num caos de impulsos
desordenados, abandonado apenas às próprias forças, sendo estas
sua única lei e amparo. Seu egoísmo é um “salve-se quem puder”
de todos contra todos. O homem fica só, um átomo perdido no grande
mar dos fenômenos, no terror de ficar torturado por forças
gigantescas, agitando seus pobres braços para defender-se, pequena
luz em meio às trevas. Refugia-se, então, na inconsciência do
carpe diem, que é a filosofia do desespero; cegueira intelectual e
moral, que uma ciência que não conclui deixou intacta.
Cegueira,
inconsciência, porque num universo em que tudo brada causalidade,
ordem, indestrutibilidade; em que tudo é função, equilíbrio
automático e justiça, tudo está ligado por uma rede de reações,
vinculado ao funcionamento do grande organismo. Tudo tem uma razão
de ser e uma consciência lógica. É absurda qualquer anulação,
tanto no campo físico, quanto no moral, como é loucura acreditar
numa possibilidade de violência, de usurpação, de injustiça, só
porque o homem a quer; pensar que ele, apenas um ponto do infinito,
possa impor sua vontade, modificando a Lei universal.
Com
a demonstração científica da ordem soberana, coloquei-vos, agora,
na encruzilhada: ou negar, aceitando a inconsciência, criando em
torno de vós um mundo caótico, onde estais sozinhos, com vossas
forças contra todos os fenômenos, rebeldes, ridículos e tristes,
perdidos no mar de trevas; ou então, compreender e ir à frente,
enquadrados no grande movimento, como soldados de um grande exército
em marcha. A presença de uma ordem suprema resulta aqui já
demonstrada: o homem só pode existir imerso na grande lei divina.
Isso faz ser absurda qualquer culpa, qualquer baixeza e torna
altamente utilitário o caminho da virtude. Cada coisa que existe
nasce com sua lei, é a expressão de uma lei, só pode existir como
desenvolvimento de um princípio e obedecendo a uma lei. Em qualquer
forma, sempre encontrareis uma lei como sua alma, sua substância,
única realidade constante através de todas as transformações da
ilusão exterior. A forma acompanha sempre essa lei, que a guia e a
modifica, para realizar-se em ato. Cada momento resume o passado e
contém a linha do futuro, tanto nos organismos físicos, quanto no
vosso organismo psíquico. O equilíbrio sustentou-vos até aqui, no
presente, através da viagem pela eternidade e agora vos sustenta e
guia para o futuro, sabendo e querendo, antes de vós, à revelia de
vossa vontade e consciência.
Ao
conceito limitadíssimo de uma força vossa, individual, que dirija
os acontecimentos, é necessário substituir o conceito vastíssimo
de uma justiça que impõe seu equilíbrio e suas compensações ao
destino. Dentro dela, violência e usurpação são absurdas
antecipações de um átimo, que se terão de pagar, mais tarde, com
exatidão matemática. Dentro dela está presente e age a divina
providência. Não uma providência no sentido de um guia pessoal por
parte da divindade, de uma ajuda arbitrária que possa solicitar sem
merecê-la e que possa escapar-vos dos esforços obrigatórios da
vida, mas uma providência que é um momento da grande Lei, permeada
de equilíbrio, aderente ao merecimento, mantida por contínuas
compensações que levantam quem cai se merecia subir, e esmagam quem
sobe, se merecia descer. Trata-se de um princípio de ordem, uma
força de nivelamento que ajuda o fraco e substitui os impulsos da
prepotência humana; uma força com justiça, muito mais sutil, real
e poderosa.
A
providência divina representa esta força maior, a justiça em ação,
não só para levantar, como para abater. Por lei espontânea de
equilíbrio, vereis que ela sabe dosar as provas para que não
ultrapassem as forças; vê-la-eis levantar-se, gigantesca, para
proteger o humilde indefeso e honesto que a opressão humana
tencionava arruinar; vereis que ela dá a quem merece e tira de quem
abusa, premiando e punindo, distribuindo além das partilhas
humanas16.
Tremei
vós, vencedores pela força humana, diante desse poder da justiça,
que impulsiona todo o universo; e vós, fracos, não acrediteis que a
providência seja inércia ou fatalismo, amiga dos preguiçosos; não
espereis que essa força vos afaste do sagrado esforço de vossa
evolução. Conceito de justiça e de trabalho, conceito científico
do mundo fenomênico, não é base de um afastamento gratuito de
sanções de dor e significa direito ao mínimo indispensável às
forças humanas para ascender o cansativo caminho da vida; significam
repousos merecidos e necessários, não ócios gratuitos e perenes,
como quereríeis.
Nada
mais falso que a identificação da providência com um estado de
inércia e expectativa passiva. Isto é invenção de indolentes
iludidos, é exploração dos princípios divinos. Ela está presente
para reerguer o homem que, na luta, perde suas forças, como o está
ao abater o rebelde, mesmo se gigante; ela está ativa sobretudo para
o justo que quer o bem e com seu esforço o impõe. Então o inerme,
sem forças humanas, sem apoio, sem meios, apertará no punho fechado
as forças mais altas da vida; as tempestades do mundo se acalmarão
e os grandes se dobrarão, porque ele personifica a Lei e sua ordem.
Enquanto permaneceis sozinhos na luta, abandonados apenas às vossas
pobres forças, situado na profunda organicidade do real, recolhe-as
de todo o infinito. Se parece abandonado e derrotado, uma voz lhe
grita: tu não estás sozinho. O inerme pode então dizer a grande
palavra que ribomba em todo o universo: falo-vos em nome de Deus.
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LIVRO
''DEUS E UNIVERSO'' - CAPITULO 19 ( Por Pietro Ubaldi)
A ALMA E DEUS
O
estudo do fenômeno inspirativo nos leva agora a considerar as
relações entre a alma e Deus. Nas páginas precedentes, comparamos
a expansão do pequeno consciente individual no infinito
consciente cósmico, que constitui o fenômeno inspirativo, com o
caso em que uma célula individualizada pudesse alcançar a
consciência de todo o organismo humano. Cabe agora aqui
indagar: serão estas as relações entre o "eu,' individual e o
"eu,' cósmico, isto é, entre a alma e Deus, as mesmas que
ocorrem entre uma célula e todo o organismo?
É
certo que desde o átomo até à molécula, ao cristal, à célula, e
a todas as formas de vida individual e coletiva, se cada
individualização do ser revela saber quanto lhe basta para existir,
não tem, todavia, de modo algum, consciência do Todo. O próprio
homem, que se situa no ápice da evolução biológica, não tem
consciência senão de uma parte mínima da sua vida, da qual só
possui muito limitadamente as diretrizes. Temos, então, que atribuir
ao consciente universal esse conhecimento que as individualizações
isoladas do ser não possuem propriamente. Assim se delineiam as
relações entre o "eu" individual e o "eu',
cósmico, isto é, entre a alma (tomada no sentido lato, inclusive
como a alma das coisas) e Deus. Ora, imaginar que cada uma das várias
individualizações do ser representa a sede de uma íntima imanência
neles, no fundo e além do seu relativo consciente, do consciente do
"eu" universal, que sabe e pensa em cada ser dentro dos
limites de sua natureza, provendo-lhe a vida - imaginar tudo isto é
mais plausível e convincente do que conceber um universo
regido, não se sabe como e por que meios - por um consciente “eu”,
universal que lhe é exterior e estranho. Vimos que Deus não é
exterior; mas íntimo do ser, e concluímos pela Sua imanência
neste. Isto tanto mais se tornará convincente, quanto
atentarmos para que, se parece conduzir-nos à impessoalidade de
Deus e ao imanentismo panteísta, não exclui nem lesa,
efetivamente, o conceito do Deus pessoal e transcendente.
O
consciente universal é, pois, íntimo ao ser, representando o
imenso fundo de sabedoria que guia toda a sua vida, sem que ele se
aperceba de nada. Neste campo se incluem o funcionamento
orgânico, tudo o que é guiado pelo instinto, o desenvolvimento das
alternativas coletivas que constituem a história. Ainda se incluem
a Lei que enquadra os nossos atos livres na férrea concatenação
causal e depois se desenvolve no destino individual e coletivo,
a oportuna intervenção da Providência - guia e ação situadas
além do conhecimento e das forças humanas, e assim por diante. Se o
universo foi gerado, como vimos, por uma Substância pensante, o que
vale dizer, feito de divina imanência, justamente por esta razão
todo ser é dela feito, ou seja, é pensante na sua profundidade.
Se ele não tem disso consciência, não importa. De como ele vive e
funciona devemos deduzir que este pensamento está nele, mesmo que
ele não o note, como está, não apenas nos seres evoluídos,
mas até nas mais involuídas formas da matéria bruta.
E
este pensamento uno, que reconduz as infinitas formas à unidade do
Todo e constitui a universalidade da Lei - una. Então, que
diferença existirá, por exemplo, entre a pedra, a árvore e o
gênio? Ela reside no grau em que a individualização do ser,
segundo seu plano evolutivo, consegue participar desse
consciente universal, isto é, consegue despertar conscientemente, ou
seja, em consonância, no seio do pensamento de Deus. Em outras
palavras, poder-se-ia dizer que o universo é inteiramente feito
dessa primordial Substância conceptual que é o pensamento de
Deus, e qual um infinito oceano vibrante, em cujo seio, porém, cada
individualização do ser não vibra da mesma forma, sendo mais
ou menos desperta e participe, como estado de consciência dessa
vibração. Em tudo o que existe, há a possibilidade de poder
atingir toda a vibração do pensamento de Deus, mas tal
vibração não existe em atividade, ela está latente,
adormecida, à espera de gradual despertar. E a este despertar que se
denomina evolução.
Podemos
agora melhor compreender o significado dos conceitos de
subconsciente, consciente e superconsciente, já expostos no
volume: Ascese Mística. O consciente é a zona de trabalho (com a
experiência da vida) e de despertar do ser para entrar em vibração
no consciente universal. A evolução não é, assim, um avanço
cego, mas um despertar vibratório, segundo esquemas pré-existentes,
por conseguinte pré-estabelecidos, no consciente universal. O
subconsciente é a consonância, a sintonização já adquirida com
esse consciente e estabilizada nos automatismos (instintos, idéias
inatas etc.). Ele abre o campo já explorado pelo ser na experiência
realizada na vida; e tanto é sua propriedade, como expressa suas
qualidades. Ele coincide com o pensamento de Deus,. mas nos mais
baixos planos de sua expressão, sendo, pois, guiado pelo consciente
que já começa a vibrar nos planos mais elevados. O superconsciente
é o pensamento de Deus, ainda latente e adormecido no ser, que ainda
não se pôs a vibrar em zonas evolutivas mais elevadas. Ele está,
pois, para o ser ainda em estado de não-consciência.
Poderemos
dizer com o suave Virgílio: "Mens agitat molem"1, no
sentido de que dentro de cada forma e atrás de toda aparência há
um proporcionado despertar com relação ao divino, de um estado
vibratório que a rege. Veremos, então, atrás da hierarquia
das formas uma interior hierarquia de consciências, constituída
pelos graus de consonância atingidos pelo ser em relação com o
pensamento divino. Desta forma, no consciente do indivíduo vão
surgindo problemas cada vez mais vastos e complexos, à medida que
ele sobe. A uma planta bastará resolver o problema da assimilação
e respiração. O gênio. sentirá necessidade de resolver o
problema do universo.
Assim,
pois, vemos que as posições de subconsciente, consciente e
superconsciente são relativas ao grau de evolução de cada ser.
Para o homem racional o subconsciente representa apenas o
pensamento sensitivo do animal e vegetativo da planta. Para o
animal, é subconsciente este último, enquanto para a planta é
subconsciente o pensamento molecular, isto é, o que preside à
construção e funcionamento dos elementos químicos
componentes; para estes o subconsciente é o pensamento atômico,
isto é, o dos diferentes edifícios eletrônicos componentes.
E
em direção oposta, poderemos dizer que, assim como para o homem
racional o superconsciente é o pensamento intuitivo sintético do
super-homem, também para o animal o superconsciente é o. pensamento
racional humano, para a planta é o pensamento sensitivo do animal,
par' a molécula da química inorgânica é o pensamento celular
vegetativo da planta e para o átomo é o pensamento molecular
da química. Assim se pode compreender o sentido que está no
fundo das palavras de Sertillanges: “na natureza tudo tende a
subir. A apoteose da matéria está no vegetar, a do vegetal, no
sentir, a do animal, no pensar.”
Como
se vê, o ser, da mesma forma que o homem, move-se em um ilimitado
oceano de pensamento, em que o seu próprio avança mais ou menos e
se expande, conforme o estado de consonância que ele,
evolvendo, consegue atingir. O pequeno "eu" individual
tem de se haver sempre com este consciente universal, que é o Deus
imanente, no qual ele está imerso, como em uma atmosfera de
pensamento que ele respira com o seu pensamento e com o qual se
comunica por um contato que constitui a vida. Para o homem, o Deus
imanente é uma zona ilimitada, situada além da sua consciência e
qualquer processo evolutivo, até à fulguração do gênio,
constitui uma aproximação Dele por progressiva consonância.
Estamos circundados pelo mistério. Mas a evolução consiste
justamente na expansão de nosso consciente individual no
infinito consciente cósmico. Poderemos imaginar o primeiro como uma
pequena circunferência que, partindo do mesmo centro, se dilata
no seio da infinita circunferência do consciente universal. Podemos
também representar a Substância pensante do Deus imanente,
constitutivo do Todo, inflamar-se de estados vibratórios mais
ou menos intensos e complexos em vários pontos, que formam, deste
modo; os centros pensantes que constituem o consciente dos vários
“eu” individualizados. O fenômeno inspirativo não passaria,
então, de um índice que nos revela haver o ser executado, através
de um despertar vibratório, mais um lanço evolutivo, uma dilatação
de consciência, expressão de uma catarse biológica.
O
que espera o homem a despertar no superconsciente é o Deus imanente,
o consciente cósmico. Ali já está escrita a resposta a todos
os porquês, feitas estão todas as descobertas, evidentes são
todos os mistérios Segue-se daí que o problema do conhecimento
é sobretudo uma questão de maturação biológica. E
principalmente esta, e não as elucubrações racionais, que
inflama o lampejo ao gênio, porque, sendo evolução, leva o
homem a vibrar harmonicamente mais próximo do pensamento de
Deus. Então, entrando num plano de vida mais alto, nasce uma
nova sensibilização espiritual: o que antes era um superconcebível,
torna-se espontaneamente, inteligível e se revela. Quando não
é o indivíduo isolado que avança (o gênio), mas um grupo ou mesmo
a massa humana, então o fenômeno inspirativo se generaliza, segundo
a potência de cada um, surgindo a era das conquistas do pensamento,
os grandes séculos construtivos, as descobertas em cadeia, como
hoje. Tudo explode assim, em um surto evolutivo em todas as partes do
mundo, quase contemporaneamente, acreditando cada célula da
humanidade haver feito uma descoberta com seu engenho. Todavia,
não se trata senão de uma geral maturação biológica. Esta é a
razão pela qual somente hoje se fizeram descobertas antes julgadas
impossíveis e inconcebíveis pelo homem. E logo chegarão novas
orientações sobre aquilo que atualmente é tomado por
superconcebível. No fundo trata-se tão somente de sensibilizações
progressivas, de que nascem mais elevadas consonâncias ou
sintonizações com o pensamento de Deus.
Toda
a evolução se reduz, assim, a um problema de sensibilização nesse
sentido. As janelas de nosso consciente sobre o mundo hoje são
poucas. E é preciso ser bastante involuído, isto é, adormecido,
para sentir-se bem satisfeito em uma casa tão pequena e escura. A
conquista da verdadeira liberdade não está na liberdade de
mostrar-se animalesco, mas no despertar de consciência que nos
permite sair da tremenda prisão da ignorância e da inconsciência.
Quantas mensagens constantemente o consciente universal não enviará
ao nosso minúsculo consciente individual! Maravilhosos apelos, e nós
continuamos surdos, sem compreender! Tudo vibra de pensamento e freme
de vida em derredor de nós, e não sabemos por-nos em contato com
este maravilhoso universo saturado de Deus, porque não estamos
sensibilizados, não sabemos vibrar em uníssono, para ouvir e
responder. E permanecemos mudos e inertes no vórtice de todos os
esplendores do concebível. Estamos encarcerados na matéria. Em
torno, tudo nos empareda nas barreiras de nossa insensibilidade. E o
involuído não arde senão na ânsia de refocilar na lama das
suas baixezas, porque aí estão os seus atrativos, porque essa é
para ele a vida. Que pobre vida, quando somos feitos de
infinito, para o infinito! Pobre involuído, manobrado como um
fantoche pela Lei a que, enquanto crê comandar, nada mais faz na
fundo que obedecer, porque é ela que o comanda e deve comandar
como a um títere, pois que ele nada sabe, nem pode mesmo dirigir!
Mas
observemos ainda as relações entre o "eu" individual e o
"eu" cósmico. Já idealizamos o consciente individual,
sediado no consciente universal, como as células no organismo
humano. Já conhecemos a estrutura hierárquica piramidal dos seres,
pela qual, consoante o principio das unidades coletivas, se passa a
um número crescentemente reduzido de individualizações sempre mais
sintéticas, partindo de uma incomensurável quantidade de
individualizações, tanto mais particularizadas e analíticas,
quanto mais descemos na escala dos seres. Assim, da célula se desce
à molécula, depois aos átomos, aos elétrons etc., ao passo que se
sobe para o órgão, para o organismo completo, para o grupo
familiar, nacional, para a humanidade etc.. O mesmo se dá no plano
da matéria inorgânica, na construção dos universos estelares.
Esta, em cadeia, é a técnica construtiva dos edifícios do ser.
Ora,
dissemos que, por de trás dessa estrutura física, existe uma
outra mais real que a rege - a espiritual, animadora dessas unidades,
uma outra estrutura hierárquica piramidal, feita de pensamento.
O universo não será inteligível se, atrás da hierarquia exterior
das formas, não enxergarmos essa outra hierarquia de motivos
conceptuais ou de modelos abstratos que são aqueles segundo os quais
as formas se plasmam. Por trás dos planos biológicos existem planos
conceptuais que se sobrepõem e se escalonam ascendentemente
numa hierarquia de princípios espirituais que culminam em Deus -
vértice da pirâmide ou centro da circunferência. Segue-se daí
que, com o progresso da evolução, se a forma muda é porque,
sobretudo, muda a natureza do pensamento que ela expressa e muda
a consciência do ser em conseqüência da elaboração do viver.
Eis, pois, o que existe de substancial no substrato da evolução
e no que a rege: o progressivo despertar do "eu" em um
estado vibratório cada vez mais elevado.
Estamos
agora em condições de encarar a evolução de um modo mais
substancial, isto é, mais correspondente à verdadeira realidade,
que é a interior à forma. A evolução não é, pois, um
aprimoramento de organismos, a não ser como última conseqüência
Ela corresponde, contrariamente, a um conceito metafísico: o
despertar do espírito, a mobilização das qualidades adormecidas e
latentes no inconsciente e, com isto, a reconstrução através da
experiência na matéria, do sistema espiritual desmoronado, até
que o Deus imanente, nele incorporado, retorne ao estado de origem,
para coincidir com o Seu aspecto transcendente. Assim, a
formação das unidades coletivas em dimensões cada vez mais vastas,
não constitui apenas uma agregação de elementos, mas uma
organização dos mesmos, de modo a que cada unidade superior
represente uma perfeição maior, conseguida por efeito de mais
profunda manifestação do espírito, e mais profundamente desperta.
Não
se trata, pois, de ver no universo somente um infinito oceano de
pensamento, uma infinita atmosfera pensante, de que tudo vive. Isto é
verdade mas é insuficiente. Nela se formaram, como dissemos, núcleos
de consciências individuais, como no espaço cósmico paralelamente
se formaram núcleos de matéria. Ora, este e mais precisamente o
aspecto do Deus imanente em nosso universo, isto é, não pode
ser uma uniforme e informe atmosfera pensante, mas o de se ter
individualizado em infinitos núcleos de consciência ou "eu"
pensantes.
Eis
no que consiste a imanência de Deus em nosso universo: ter
querido, por Amor, seguir o sistema no seu desmoronamento! Eis
no que consiste a maior paixão de Deus por todo o Seu universo: a
Sua encarnação e crucificação além do Gólgota! Eis como se
explica o "Tu habitas in me", como a presença de Deus
é íntima a nós e às coisas! Eis porque Cristo pôde dizer: "Vós
sois Deuses". Poderá parecer audaciosa esta concepção,
mas é a única que tudo aclara em profundidade.
Vemos,
efetivamente, que cada unidade coletiva superior não representa
somente a soma das suas unidades componentes, mas alguma coisa a
mais. Nela há coordenação e organização da atividade dos
elementos constitutivos, criação, por conseguinte, de qualidade que
eles não possuem isoladamente, execução de encargos que eles,
sozinhos, não poderiam realizar. Com a fusão das unidades
menores em unidades coletivas, nasce algo de novo, que antes não
existia em nenhuma delas e que elas conseguem somente com essa união.
Isto tem um profundo significado. Antes de tudo, o nascimento dessa
qualquer coisa dê novo não pode deixar de ser um desenvolvimento do
latente, como vimos, porque de outra maneira ele seria
inexplicável. E desenvolvimento do latente não pode significar
senão maturação evolutiva no espírito, isto é, o despertar
do ser no seio do Deus imanente, como vimos. Mas há mais: é que
tudo isto só se verifica com a técnica das unidades coletivas.
Logo, esse desenvolvimento do latente e o despertar do Deus imanente
no espírito de cada ser não ocorre senão por reunificação dos
fragmentos de um sistema desmoronado, senão por irmanação e fusão
em organismos superiores mais vastos e orgânicos dos diversos
"eu", em que o Ser-Uno se fragmentou originariamente.
Podemos então dizer que a lei das unidades coletivas, por nós
algures mencionada e demonstrada, nos prova que a reunificação é o
sistema de reconstrução e que, quem se reunifica, se
reconstrói. Eis, portanto, a técnica do retorno do anti-sistema ao
sistema.
Concluímos
agora com esta grave afirmação, levando até às últimas
conseqüências os motivos acima assinalados: as diferentes
almas individualizadas são fragmentos do Espírito e constituem cada
individualização decaída em toda forma existente. O que anima
o ser e sem o que não pode haver existência é a doação por Amor
do Deus Criador, Que não abandonou a criação, mas nela permaneceu
no Seu aspecto de Deus imanente. Foi dessa doação por Amor que
nasceram os diferentes espíritos, não apenas os incorruptos do
sistema, mas igualmente os corruptos do anti-sistema. E estes, no
plano humano, somos nós, homens, como almas. Quando, pois,
chamamos a estas: centelhas divinas, devemos subentender
fragmentos de Deus. E, enquanto os espíritos incorruptos
permaneceram unidos em Deus, nós, espíritos rebeldes, ficamos
isolados. Cada espírito entre nós é um fragmento do
Espírito-Deus Que, pulverizado em nós no anti-sistema, se
precipitou conosco na forma. Eis em que sentido nós somos
Deuses. E o somos.
Explica-se,
desta forma, por que essas centelhas têm tanta fome de unidade,
atraindo-se e rejubilando-se, quando, superadas as resistências
do anti-sistema, conseguem irmanar-se, como recomenda o
Evangelho. Justamente esta é a razão: por mais que a rebelião do
anti-sistema queira o contrário, elas se sentem dispersas,
insuladas, e procuram na união recuperar a potência, a
inteligência, a vida. Por isso, a unificação é criadora,
pois ela é, e só agora podemos entender, a reconstrução do
universo desmoronado, ou seja, do Deus-Uno, fragmentado em infinitos
"eu" menores e que, do Seu aspecto imanente reconstrói,
até atingir novamente o Uno, representado por Deus no Seu aspecto
transcendente. Todo o grande drama do ser decaído pode, assim,
resumir-se em duas palavras: fragmentação e reunificação.
Fragmentação,
reunificação! A potência reconstrutora do Todo é dada pelo mesmo
Amor que caracterizou a primeira gênese, mesmo quando, na
reconstrução, ele devesse assumir o aspecto negativo de
sacrifício. Este, de fato, representa para a criatura decaída a
única forma de verdadeiro amor construtivo. O amor-gozo é apenas
uma recordação da sua origem: gozo limitado, fugaz, ilusório,
quase que somente tolerado com mera introdução ao amor-sacrifício,
que não efêmero nem ilusório, mas o único verdadeiro e
construtivo. Fragmentação, reunificação. Deus está sempre
presente, é sempre o Todo. Reunificar-se é o grande propósito
de todo o universo; porque no fundo de todas as formas há um
pequeno fragmento de Deus, que tem fome de voltar a ser Uno. Se
o universo é todo um desencadeamento de antagonismos, desde o plano
físico ao espiritual (repulsão-ódio), ele é também um anseio de
amplexo em todos os planos (atração-amor). Fragmentação significa
a revolta e o desmoronamento, terminando no caos. Reunificação
significa a obediência e a reconstrução, terminando na ordem do
Uno.
Este
é também o caminho de nosso mundo. Se descermos os graus e tempos
mais involuídos da humanidade, encontraremos aí o politeísmo. Deus
estava fragmentado também como concepção e vinha sendo, desde os
tempos da Grécia e de Roma, adorado por fragmentos. Mas deu-se a
superação na unificação, passando-se ao monoteísmo. Então a
humanidade volveu a olhar mais para o alto, deixando a dispersão
divina pelo Centro-Uno e, mais amadurecida, pôde compreender
melhor a unificação. Mas não basta. O politeísmo está para
o monoteísmo, como este para o monismo. Atentemos para este
fundamental conceito do Uno e não apenas para o significado que se
pode dar a esta palavra por ter sido usada por esta ou aquela escola
filosófica. Monismo aqui significa ter compreendido não
somente a unidade de Deus, mas também a unidade do Todo, pela qual
tudo o que existe forma um sistema único, do qual Deus é o centro.
A
vida do indivíduo se torna grande quando ele compreende que é,
no sentido exposto, o filho de Deus. Grande coisa se torna a
organização da sociedade humana, quando é concebida como um
momento do processo de reorganização do universo, que se está
reconstituindo para retornar a Deus. Eis o grande sentido teológico
que se pode conferir à política e ao Estado moderno. O indivíduo é
uma célula sua e esse Estado é uma célula da humanidade, que
é célula da vida. E ai de quem falsear os valores substanciais
e usurpar, perante a hierarquia que se inicia em Deus, uma posição
que não corresponde aos valores intrínsecos. Permanece para todos,
crentes ou ateus, a imanência de Deus, e quem forja mistificações
ou falseamentos experimenta nas próprias carnes o punhal da dor. Mas
nem por isso a reconstrução estaca. Perde-se o indivíduo, mas o
sistema se reconstrói da mesma forma, porque esta é a Lei. E ser
tem de se reconstruir plano por plano. E quando dizemos ser, dizemos
a nossa alma, ou seja, centelha de Deus em nós imanente. E sofremos
juntamente com Deus, porque em sua profundeza o nosso espírito
é Deus. A alma sofre em Deus e Deus sofre na alma.
Mas
cada vez que uma alma se irmana a uma outra, é um fragmento de Deus
que se uniu a outro fragmento, e um passo foi dado para a
reunificação . O incêndio originário começa assim a reacender-se
aqui e acolá pelas fagulhas semi-extintas. Cada duas chamas que se
unem não ardem, por duas. mas por quatro. Satanás, força do
anti-sistema, desesperadamente lança água no fogo com a cisão,
procurando frenar a reconstrução, porque esta significa o fim
do seu reino, que é o caos. Mas assim ascendendo, com a elaboração
de cada célula e a fusão com outras células, as consciências
individuais se reorganizam para reconstruir o "eu"
cósmico, a consciência do universo. Cada consciência
inferior, dissemos, em face da superior, é sempre de caráter
analítico; a superior, diante da inferior, é de caráter
sintético. A superior adquire funções de coordenação para fins
mais elevados, antes ignorados. Uma célula se torna diferente quando
faz parte de um organismo, assim como um homem quando integra um
exército ou qualquer organização social. Ele então age e produz
de outro modo. Há uma sublimação e valorização do seu “eu”,
assim enquadrado em funções mais altas, flanqueado por outras
funções que o completam na colaboração. Colaborar é muito mais
do que trabalhar, quer pelos fins, quer pelos meios, seja pela
unidade coletiva, seja pelo indivíduo. Quanto mais orgânica se
torna a vida, tanto mais altos, vastos e poderosos são os fins
que se podem atingir.
Com
esta orientação cósmica podemos apreciar o valor de cada ato
nosso, quer como indivíduos., quer como sociedade. Tudo evolve e nós
evolvemos como indivíduos e como sociedade, em demanda de sínteses
mais vastas, profundas e compreensíveis. Nós, centelhas de Deus,
somos os operários de Deus para a reintegração do Deus imanente. A
nossa vida não pode ter significação a não ser quando nos pomos
em função desta reconstrução. O Deus imanente dorme em nossas
profundezas. Despertando nós ou ressurgindo Ele - o que é a mesma
coisa - na profundidade do nosso espírito, reconstruir-se-á no
estado. de consciência aquela do universo (o Espírito), que agora
jaz no estado de inconsciência que o homem agora se encontra. Isto
não significa que o ser, o nosso minúsculo "eu" se torne
Deus, mas que Deus volta a ser qual era antes do desmoronamento
do sistema. Não somos nós insignificantes homens, que de novo nos
devamos encher de orgulho, mas é Deus que em nós deve despertar
cada vez mais, a fim de que o nosso "eu" desapareça
reabsorvido Nele. Por isso, nos capítulos precedentes insistimos na
atitude a assumir e que o místico assume, pela qual o
desenvolvimento do "eu" humano consiste na sua
anulação em Deus. Isto porque, compreendamo-lo bem, não é o nosso
"eu" egoísta e separatista, filho do anti-sistema,
cindido e rebelde a Deus, que devemos desenvolver, mas é
justamente o nosso outro "eu' divino que devemos despertar e que
dorme nas profundidades de nosso espírito. Se agirmos noutra
direção, caminharemos, ao invés, para a destruição e não
para a reconstrução. Em lugar de seguir a via: "fragmentação,
reunificação", seguiremos a oposta: "fragmentação,
fragmentando-nos mais ainda".
Concluindo,
procuremos penetrar esta estupenda realidade: em profundidade
todos os seres são uno, isto é, na íntima essência espiritual de
todas as individualizações existe uma substância que as funde
em unidade, pela qual todas elas retornam ao centro comum que
tudo irradia e tudo atrai - o Centro - Uno - Deus. No fundo de todos
os seres. está esse seu centro, no qual cessa qualquer distinção,
e a infinita pulverização dos "eu" separados na periferia
do sistema reencontra a sua unidade em um só "Eu". Por
isto, amando o seu próximo, o indivíduo caminha para Deus e esta
via que o conduz a Deus é a da unificação. Tanto mais o ser se
avizinha do centro - Deus, quanto mais sente que a sua alma é a dos
outros seres são uma só coisa. Assim, pois, evolução,
espiritualização e unificação caminham paralelamente; hoje, quem
ama a Deus, O ama em todas as criaturas, e quem vive em todas as
criaturas, vive em Deus, ao passo que quanto mais egoisticamente se
vive, tanto mais se vive distanciado de Deus.
Não
se deveriam dizer estas coisas abertamente ao mundo involuído de
hoje, porque ele está sempre pronto a dar-lhes uma interpretação
às avessas, satânica. Não se deveria dar ao público a solução
dos mistérios aqui obtida por intuição, inacessível pela via
racional, solução que deveria ser, pois, naturalmente proibida.
Poder-se-ia repetir: “não atireis pérolas aos porcos, a fim de
que não as pisem com os pés e se voltem contra vós para
dilacerar-vos”2. Por isto tais coisas são ditas em livros de
complexa concepção, que os cérebros preguiçosos e ignorantes
repelem e que a maioria dificilmente penetra, justamente para que
poucos as conheçam, mas as possam encontrar prontas quando hajam
amadurecido. É, ademais, necessário deixar o mundo de hoje
entregue às suas ferozes exercitações evolutivas, já que menos
ferozes ele não sabe praticar, e as atuais são as de que ele
necessita, sendo elas proporcionadas ao seu grau de inconsciência.
Porém, quem tem ouvidos de ouvir que ouça e quem tenha intelecto
para compreender que compreenda, pois que o quadro da visão do ser
está completo e é chegada a hora em que a verdade será dita
abertamente sem véus, pelo menos aos mais evoluídos, que podem
compreendê-la.
Quem
chegar a compreender tudo isto, sabe que é uma eterna, indestrutível
centelha de Deus. E sabe também que, no Seu aspecto imanente, Deus
está presente em nosso universo, até em nossas menores coisas e que
nós não só podemos senti-Lo espiritualmente, mas igualmente vê-Lo.
Se não nos é dado conceber o Deus transcendente, podemos, no
entanto, ver o semblante do Deus imanente, pois que toda forma
de existência é uma expressão do pensamento e da vontade Dele, é
uma manifestação do Seu ser. Certamente sendo Ele um infinito,
nós não podemos limitá4o no relativo de uma forma particular.
Ele permanece um infinito, tem, pois, infinitos rostos e o
veremos expresso em tudo o que é beleza, bondade, floração de vida
e de alegria. Esta e, efetivamente, a manifestação do sistema no
lado positivo do ser. Esse sistema, apenas floresce, é minado pelo
anti-sistema, negador e destruidor de beleza, de bondade, de vida, de
alegria. É assim que tudo se estiola, corrompe-se e morre. Mas
o Deus imanente, sendo a alma das coisas, do íntimo delas
continua a manifestar-se numa incessante floração e, assim, embora
tudo feneça, corrompa-se e morra, tudo de novo refloresce e revive.
Desta forma, o sistema, não obstante os contínuos assaltos do
anti-sistema, venceu, vence e vencerá sempre, sendo o mais forte.
Esta
é a significação de tudo o que existe em derredor de nós, de tudo
o que nós mesmos vivemos. E quando o homem peca, ele se coloca no
campo do anti-sistema, ao sabor das suas forças, das quais nada mais
pode esperar, senão dor. Toda vez que praticamos o mal,
renovamos a primeira revolta com as suas conseqüências. E temos de
subir até nos havermos reequilibrado na Lei, reingressando na sua
ordem, por ter seguido as suas normas de harmonia e de amor.
Somente
o homem que sabe tudo isto, compreendendo a vida, orientou-se no
Todo, não sendo mais um cego entregue a forças ignotas, mas se
tornando senhor de si e do seu destino.
1
"O espírito move a matéria". ENEIDA, VI: 727. (N. do T)
2
Mateus, 7:6 (N. do T.)
...................
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