domingo, 21 de fevereiro de 2016

Os ideiais franciscanos diante da psicologia moderna.


Do livro Fragmentos de pensamento e de Paixão
OS IDEAIS FRANCISCANOS DIANTE DA
PSICOLOGIA MODERNA

(1927)




Seja-nos permitido falar de São Francisco, não como fenômeno histórico ou religioso, mas unicamen­te do Santo de Assis como fenômeno espiritual, como fato psicológico daquilo que não é lenda, erudição, culto, mas drama da alma, a tremenda realidade in­terior, realidade que transcende os limites do ambien­te histórico no qual se manifestou. Realidade sempre presente, atual e vital, o fenômeno que supera o tem­po e situa-se na eternidade. Pode-se chegar a São Francisco utilizando-se, além dos meios usuais da análise histórica e do sentimento coletivo da religião, a via inusitada da intuição pessoal.



São Francisco não é, de fato, filho exclusivo de seu século, mas de todos os tempos; vive também hoje, entre nós, sem anacronismo. Se o desejamos entender, não como pessoa, mas como conceito, sen­tiremos que Ele é permanente, atua em nosso meio como força social cuja função histórica não se exau­re jamais. Existem, na intercadência   das perecíveis formas relativas, postulados eternos e absolutos, que superam a morte e nunca se esgotam completamente. Há movimentos psicológicos, individuais ou coletivos, que volvem em ciclos como se fossem fases da vida coletiva, como se possuíssem um significado biológico, como se fizessem parte integrante do mo­vimento harmonioso e equilibrado das leis evolutivas da grande vida da humanidade. São Francisco, assim considerado, é um fenômeno atual que se acha sob as nossas vistas e que podemos observar diretamen­te. A semelhança de Cristo, é um conceito que jamais morre. Não morre nunca porque o ideal faz parte in­tegrante da vida humana, que tende, através dos sé­culos, a fazer-se cada vez mais espiritual.




Se o materialismo floriu e a civilização mecânica frutificou, não saciaram a nossa alma que, cheia de fome e de nostalgia, esmola entre as velhas muralhas o perfume de uma fé que parece perdida para sem­pre. A humanidade tem fome de ideais e está presa pela preocupação econômica e mecânica. Não é lícito, nem mesmo por inconsciência, esquecer que as leis da vida procuram um equilíbrio e que qualquer abuso é logo corrigido com uma reação. O premen­te mistério da vida ensinou ainda uma vez que a al­ma individual e coletiva, para viver, têm necessidade destas inelutáveis aspirações sem as quais elas não se governam, não caminham e não podem enfrentar confiantes o problema do futuro. A riqueza e a ver­tiginosa atividade dos nossos tempos dissimulam uma dolorosa miséria interior, uma espécie de impotência espiritual para a elevação moral. Afogam-se todos num imenso pântano de materialismo, onde jazem mortas as grandes alegrias da alma. O nosso pro­gresso é aleijado; é hipertrofia econômica e mecâni­ca, que não compensa a atrofia espiritual, o grande mal dos nossos tempos. Diante desse mal agudo, voltamos as nossas vistas para a fé dos tempos distan­tes e tenebrosos da Idade Média, para as austeras e antigas catedrais que parecem, somente elas, depo­sitárias de algum segredo. Triste e bela a humilde e nostálgica procura da fé nos séculos mais bárbaros do que o nosso. Tornamos a exumar avidamente, pa­ra interrogá-las, as desajeitadas figuras trecentescas, formas toscas, filhas de uma técnica primitiva, de cujo estilo talvez nos ríssemos, se não houvesse tanta fo­me de fé. Interrogamos a História e os documentos para reconstruir e reviver aquilo que perdemos. A misteriosa alma distante do Santo de Assis pedimos, sobretudo, o segredo da sua paz que há muito não possuímos.



A figura de São Francisco, assim concebida, não no limitado fundo histórico do seu século, mas no fun­do apocalíptico da História da humanidade, é de uma grandiosidade imponente



Na intimidade desse fenômeno psicológico sen­te-se o drama do espírito, individualmente vivido, an­tes de tudo, pelo Santo de Assis que, num paroxismo de paixão, sozinho, elevou à onipotência a alma humana, fortaleceu a mente e o coração. Seja-nos per­mitido observá-lo, como fato individual, no seu pri­meiro e excelso representante, assim como nas tenta­tivas e reproduções individuais dos sectários e imita­dores. Permita-se-nos perguntar, com aquela fran­queza que os nossos tempos exigem, sem os ornamen­tos da retórica e o peso da erudição, que significado teria, na alma do Santo, a sua psicologia de exceção, e como o entenderá aquele que intente imitá-lo.



A figura de São Francisco representa, por outro lado, um fenômeno psicológico coletivo; transforma-se em conceito que supera o tempo e é sempre atual; torna-se símbolo de idéias e tendências da sociedade humana, fazendo parte das leis do progresso. Em suma, uma força biológica evolutiva na história da humanidade.



Este exame será conduzido por ministério de conceitos absolutamente modernos e científicos, co­mo se se tratasse de fenômeno eterno e permanentemente verdadeiro, embora "traduzido" na linguagem diferente da psicologia moderna. Somente assim po­deremos atingir o alvo que colimamos: reviver na atualidade a palpitação de um fato distante, mistu­rando o fenômeno psicológico da vida interior de um Santo com a nossa vida interior, individual e coletiva.



Para isto é necessário um trabalho de apuração. É preciso abolir, por um momento, os sete séculos que nos distanciam do drama real; os séculos que o observaram, interpretaram e sentiram, diversamen­te. A nossa interpretação será mais rude, mais fran­ca; sem dúvida, mais profunda. O clarão rápido do gênio foi assimilado durante longos séculos pela al­ma coletiva. A tradição, a literatura, a religião par­tindo de pontos de vista diferentes, construíram um edifício cujo peso a força de um só homem não pode suportar jamais. Façamos abstração, por um momen­to, de tudo isto, porque o monumento grandioso e de imenso valor, nos impede de ver a nudez do concei­to originário, impede-nos de ver com os nossos olhos, de sentir com a nossa alma, de julgar com a nossa mente, por inadaptação às necessidades dos nossos tempos. Examinemos a psicologia do Santo de Assis com o olhar mais penetrante do que o dos séculos passados, e talvez sintamos em nossa própria alma o arrepio de um drama que, posto a nu, será mil ve­zes mais verdadeiro e maior. São Francisco não será o fenômeno histórico ultrapassado, mas um ser que vive conosco, que palpita com os tormentosos proble­mas da nossa alma e os resolve. Observemos a pa­radoxal negação dos instintos humanos, o radical trasbordamento dos valores que, seguindo as pega­das do Cristo, foi São Francisco. Aquilataremos, en­tão, sua influência revolucionaria nas almas indivi­duais e na alma coletiva.



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Quando São Francisco, reeditando o Cristo. acon­selhava a pobreza, a castidade, a obediência, punha neste ideal a negação absoluta dos instintos funda­mentais da vida, dos instintos que o homem não in­ventou para si livremente, mas que lhe são herança da longa evolução biológica. Instintos naturais, isto é, dados por uma lei da natureza — culpas e baixezas de que o homem se deve despojar para ascender. São Francisco substituiu por três renúncias, por três votos e por três negações o programa da vida se­cular, universalmente pregado, em todos os tempos, em nosso mundo. Por que tão radical e sistemática destruição da natureza humana? Podemos revogar as leis da vida, quaisquer que sejam, em nosso pla­neta? Aonde se deseja chegar com isto, e que se po­derá colocar no lugar daquilo que se renegou? Quem é o Santo, e que pretende ele das grandes massas humanas, inertes como montanhas? O que represen­ta na História da humanidade a figura deste pionei­ro do ideal, que caminha na vanguarda do futuro?



Perguntas as quais o homem de outros tempos não sentiu necessidade de responder e que nós nos fazemos angustiosamente. Certamente, é necessário um esforço para sair do dilema da interpretação dos séculos. A figura do Santo forra-se a nebulosidade do misticismo e as concepções tradicionais da fé, pa­ra viver no mundo objetivo e positivo das leis bioló­gicas. Para expor um conceito novo é sempre neces­sário construir desde os alicerces. Vias ousadas, vias perigosas, é evidente, mas vias novas, audazes e mais profundas que terminam na eterna apoteose do Santo.



Firmemo-nos em critérios e conceitos objetivos, cientificamente, a fim de que a nossa fé não seja uma sentimentalidade pessoal e evanescente, mas possua, ao contrário, as bases sólidas da razão e da indaga­ção positiva.



O século dezenove criou, com Darwin, a teoria da evolução, demonstrando-a no campo biológico. O Cristianismo já o havia afirmado no mundo espiri­tual, falando-nos da escola da dor e fazendo objetivo da vida o aperfeiçoamento moral. Os dois conceitos que, no último meio século, foram considerados opos­tos e inimigos, constituindo pomo de discórdia entre duas escolas de pensamento que se guerreavam, o materialismo e o espiritualismo, não são senão o mes­mo conceito de progresso, tão espontâneo e instinti­vo, que se nos imprimiram no corpo e na alma. Bio­logicamente, o homem é o resultado de longa evolu­ção animal. Espiritualmente se afastou do mundo animal do qual emergiu, graças ao sistema nervoso, à psique, ao espírito à alma. Compôs o quarto rei­no — depois do mineral, vegetal e animal, — o reino espiritual, uma raça que possui em si o divino; um divino ainda não emancipado da animalidade, mas que, por esta emancipação, e somente por ela, luta, desesperadamente, todos os dias.



Basta isto para integrar em nossa mentalidade cientifica a concepção do fenômeno da santidade. Em que pese a Lombroso ou à medicina moderna, o santo é um ser superior, não um anormal ou um do­ente às voltas com a neurose; não um expulso da vi­da, um pária diante da normalidade medíocre, vil e inepta, que se julga com o direito de decretar as leis da conduta humana. Tal conceito é antivital, é mo­numento da imbecilidade humana. O santo é o su­premo ideal, o pioneiro do futuro, uma antecipação no tempo, uma perfeição ainda não alcançada pela mediocridade humana mas somente pelos maravilhosos e singulares seres de exceção, já no ápice da es­cala evolutiva. O santo é um herói e um mártir, por­que sacrifica todas as suas alegrias e toda a sua vida para realizar de forma concreta as instintivas anteci­pações do futuro, que são os ideais; arrasta, não com palavras vãs, mas com o exemplo de um caso vivido, as grandes massas humanas ignorantes, vis e iner­tes, pela via dolorosa e luminosa do aperfeiçoamen­to e do progresso. O santo é um gênio. Há-os espe­cializados no campo do pensamento abstrato, da arte, da ciência; grandes, mas unilaterais, incompletos. O santo é grande no campo ético, lá onde se alcan­ça à última síntese de todas as aspirações huma­nas individuais e coletivas, o ideal que mais interes­sa à humanidade e comove os séculos, porque é o resumo de todas as conquistas humanas, na peregri­nação para o Alto.



O santo se nos apresenta na ribalta da vida, le­vando consigo uma concepção própria. Vimos o que é o santo em si. Observemo-lo agora em relação aqueles que se chamam, individualmente, os seus se­melhantes, em relação aos homens que estudam a nova e estranha psicologia. Admirando-se por não encontrarem igual ressonância da lei dentro de si, chamam-lhe louco, escarnecem dele primeiro, para depois ficarem atônitos e maravilhados, terminando sempre na veneração. O santo combate todos os ins­tintos e tudo renega para reafirmar-se no mundo su­perior, obediente à nova natureza e segundo nova lei maior e mais livre. O santo ousa, sozinho, rebelar-se contra as forças tremendas que são as leis da natu­reza, as leis da animalidade ainda não superadas e vencidas. Ele, neste sentido, é o maior lutador e tri­unfador, porque não escolhe para inimigo os homens, como o fazem os lutadores da Terra, mas as forças cósmicas. Não conquista os povos, mas muito mais, as leis biológicas. É reformador e revolucionário porque revolve, destrói e reedifica a própria natureza huma­na. É o libertador, no sentido biológico, o único ver­dadeiro; é o redentor da humanidade. O Evangelho do Cristo e a vida de São Francisco não são senão o código e a experiência deste superamento biológico da redenção.



A virtude representa a norma desta redenção, o artigo do novo testamento e da lei nova que conduz à vida superior. O santo realizou-se, enquanto a hu­manidade, indolentemente, prefere vencer distâncias incalculáveis, em caminhos errados. A lei atroz e fe­roz do egoísmo e da luta pela vida é substituída pela lei da bondade e da justiça.



Não mais a força, mas a justiça como irresistível necessidade da alma humana. Não nos damos con­ta da negação cotidiana que a realidade opõe ao ideal. O ideal existe e vive da forma no espírito, po­tente e indestrutível. Não nos preocupamos se a prática desvirtua o significado da virtude. Onde domina a amarga lei do mais forte e as aspirações são muito vãs, cada um exige virtude no próximo, porque a ne­gação e a renúncia constituem nele um estado de de­bilidade, que é para o mal um estado útil à sua ex­pansão. No mundo triste da realidade humana o bem é útil; faz-se da virtude do próximo um alvo para agredi-lo com o melhor proveito, e não como meio de ascensão espiritual. Conforta-nos a esperança ao transformismo do bruto presente. A divina justiça, mesmo no mundo inferior, reina em perfeito equilí­brio; a despeito de tudo, o esforço individual para evolver é sempre possível, e isto basta.



As virtudes franciscanas são três: pobreza, casti­dade e obediência. São um trasbordamento de to­dos os valores humanos; a renúncia completa, que antes de ser redenção e reconstrução do super-ho­mem, é a negação absoluta do homem. Fazem um vácuo pavoroso lá onde se move toda a psicologia humana e se agitam os mais profundos instintos. O santo pode não sentir a vertigem desse vácuo, mas o que sentirá o homem comum? Este utiliza-se, como a raça animal, dos instintos da fome e do sexo, e, como animal luta pela nutrição (continuação da vida indi­vidual) e pelo amor (continuação da espécie). A sua escola é a psicologia do egoísmo; a sua lei, a feroz e desapiedada luta pela seleção do mais forte, em nível de vida baixo, que não imagina sequer poder supe­rar. O homem neste estado é extremamente lento na evolução. O pendor pelas coisas baixas e a ignorância das altas o tornam indiferente diante dos proble­mas mais substanciais. Eis que aparece o santo e sul­ca o céu como um meteoro luminoso, deixando atrás de si um rasto de luz. Mas quem observa, quem com­preende, quem jamais pode imaginar uma fuga da Terra? O homem observa indiferentemente e volve a olhar para baixo a fim de acariciar a matéria. O pra­to que a pastagem oferece é, para a ovelha, todo o universo.



Então, entra em cena a dor porque, no equilíbrio da vida, necessitávamos de uma força capaz de pro­ver à elevação humana. Dor sapiente que transpõe todos os umbrais, penetra todos os corações, sem que a sabedoria, a riqueza ou o poder possam resistir-lhe. Onde quer que surja, abala e destrói; a sua escola, consegue amadurecer todos sem distinção, pondera­damente, e segundo as forças de cada um! A dor, for­ça providencial, impõe a todos um mínimo obrigató­rio de aperfeiçoamento. É a primeira prática da vir­tude, direi quase forçada, um mínimo de renúncia às alegrias materiais que nos encaminham à grande re­núncia e ao grande superamento do ideal francis­cano.



Daquele mínimo obrigatório a este máximo voluntário existe uma série de lutas e de esforços em todos os níveis, com infinitas gradações de velocida­de, de acelerações sobre o caminho da evolução. Há o que vai lentamente e o que tem pressa. Há o que desejaria voltar atrás para revolver-se na lama e o que segue em marcha forçada, ardente e consumin­do-se na avidez espiritual. Tanto aspira ao Alto que tenta quase forçar as leis da vida para chegar logo Cada um executa o seu trabalho segundo as suas próprias aspirações e recursos.



Observemos um instante a fatigante ascensão do homem curvado sob o peso da própria evolução. O espetáculo desta pobre raça humana assediada por milhares de necessidades, atormentada pelos pró­prios instintos inferiores, sujeita a uma implacável lei de feroz vigilância e que deve, portanto, purificar-se, inspira, algumas vezes, sincera piedade. Constrangi­da pela dor, deve separar-se de tantas alegrias que, em suas mãos, se tornam ilusões. Deve elevar-se percorrendo de novo a via de glória, perdida num átimo de rebelião, tal qual o anjo soberbo no longo cami­nho dos milênios. Que atroz condenação ter na pu­pila o sonho de uma felicidade completa e senti-la sempre imensamente distante. São Francisco, como o Cristo, deseja auxiliar a humanidade a fim de elevá­-la à redenção. Fá-lo porque tem conhecimento da distância que separa o ideal da realidade, assim co­mo a consciência do imenso esforço requerido ao ho­mem, tal como ele é. Este contraste entre o ardor da própria paixão inferior e a resistência passiva da hu­manidade atrasada; este frenético e inútil embate da própria alma veemente contra a apática alma cega das grandes massas humanas; esta humilhação do próprio espírito, humanamente cansado, no limiar da grande redenção, deve ter sido o verdadeiro drama da alma do Santo de Assis, quando na plenitude da luta e no fervor do maior sacrifício. Somente quem viveu tais conceitos e bradou ao vento, inutilmente, o grito de uma grande paixão incompreendida, pode conhecer a razão e sentir a impressão causada pelo drama espiritual, há sete séculos distante de nos.



Existe, efetivamente, tão enorme distância entre a psicologia franciscana, que ensina ao homem a conquista de si mesmo, e a psicologia corrente, que a primeira parece utopia, tal o contraste que a sepa­ra. Podemos, todavia, perguntar o que representa a psicologia comum para arrogar-se o direito de infali­bilidade, somente por ser produto da maioria. Pode­mos perguntar ainda se os seus conceitos não são, ao invés, muito relativos e discutíveis, ou pior, se não são, deveras, a codificação dos instintos atrasados, a norma de vida pouco nobre que somente o baixo nível de vida do homem pode considerar conveni­ente. Duvidamos de tudo isto e entregamo-nos ao ceticismo, hoje em moda, destruindo a fé íntima para a queda no nada. Invade-nos, então, o terror do vazio e a necessidade de modificarmo-nos. Permanecemos inertes e vencidos, a olhar de longe, desanimados, a rocha inacessível da santidade. Somente poucos es­píritos gigantes completaram a rebelião total e sou­beram reconstruir, realizando, num salto milagroso, o esforço titânico de superar as leis humanas e viver uma lei de ordem superior. Para nós, pobres mortais, o ideal é belo, fascinante miragem distante que olham os enlevados, emudecendo e suspirando. As férreas leis da natureza estão prontas a nos arrastar no seu ciclo e a nos disputar à angelitude. O homem vacila nesta bifurcação entre humanidade e divindade; ten­ta o vôo e cai dolorosamente na terra. Eis o grande drama psicológico do santo e o drama humano, triste e piedoso



Os dois dramas se olham e se fundem na tremenda luta apocalíptica entre o bem e o mal, sintetizan­do o momento biológico do nascimento do anjo no homem.



As três virtudes franciscanas representam o ciclo da redenção, isto é, a destruição completa do homem e a reconstrução total do super-homem. Elas dese­jam, antes de mais nada, destruir profundamente a animalidade humana, desferindo-lhe um golpe mortal, a fim de eliminá-la. Pobreza, castidade e obedi­ência são para o homem comum uma espécie de mor­te, pois são a negação absoluta dos instintos básicos da personalidade humana. Sobre as cinzas desta destruição se inicia o longo trabalho de reconstrução. A abjuração é apenas transitória, um meio para alcan­çar a mais potente afirmação do eu. A renúncia não é senão a primeira fase que preludia a perfeição. Deve ser, com certeza, bem triste esta negação tão completa de si mesmo para quem não possua no próprio temperamento os recursos espirituais com que preenchê-la e substituir por algo melhor a destruição da própria natureza inferior. Destruir sem saber reconstruir é criar dentro de si um vácuo triste como a morte e que será ainda mais pavoroso se tentarmos preenchê-lo com os mesmos instintos sobreviventes, adaptados pela hipocrisia. O significado da renún­cia está todo na reconstrução. Reconstrução é a cha­ve do enigma; sem ela o ideal franciscano é uma lou­cura. A grande dificuldade e o grande triunfo residem no reconstruir mais alto.



São Francisco, grande senhor de recursos espirituais, foi um mestre de reconstrução. Completa é a concepção que ele viveu; antes de ser crítica ou de­molidora, é reedificadora. Não tanto a negação do humano, quanto a afirmação do divino, um verdadei­ro domínio da natureza. Ele teve a coragem heróica de viver a sua reconstrução de homem no meio de uma humanidade espiritualmente bárbara como a nossa; de viver a lei de ordem mais elevada que os seus semelhantes não podiam compreender e que jul­gavam loucura. Onde nós, pobres mortais, devemos contentar-nos com insignificantes aproximações, ele obtém a plenitude da realização. Não desejou des­truir no homem senão o que havia nele de baixeza e de animalesco; não combateu tanto a atividade dos sadios instintos humanos quanto os seus abusos; não perdeu jamais de vista o objetivo principal que é a reconstrução de um homem melhor. Combateu o amor, mas apenas na sua mais baixa forma de sensualidade, deixando-o sobreviver, fomentando-o mes­mo, como ímpeto de altruísmo em relação ao próximo, como ímpeto de alma para Deus. Combateu do mes­mo modo a riqueza e a propriedade no seu sentido de cobiça, de avidez, como fontes de tantos ódios e de tantas dores, mas jamais no sentido de trabalho. De­sejou, antes de mais nada, a atividade fecunda e depois a distribuição dos bens com probidade e al­truísmo. Adversou desta maneira a expansão da per­sonalidade humana somente no seu aspecto inferior de orgulho, violência, avidez de domínio, deixando-lhe em compensação uma afirmação muito maior e mais completa no campo do espírito. Desejou, em su­ma, a transfiguração do homem.



Eis a importância individual e o significado de cada uma das virtudes franciscanas. Individualmen­te, elas significam progresso espiritual. O superamen­to da matéria, a libertação das formas de vida infe­rior, a emancipação do homem da animalidade e das suas leis cruéis e ferozes de luta pela seleção do mais forte. A atividade, num campo mais alto, a con­quista de uma forma superior de vida mais comple­ta, mais livre e mais intensa. Os ideais franciscanos auxiliam a alma humana a sair da sua crisálida de animalidade, onde se encontra presa, debatendo-se dolorosamente, e guiam-na para o único e real pro­gresso que tende para aquela felicidade superior dada somente pelo domínio das forças inferiores. Uso e gozo de uma consciência vasta e de uma paz mais profunda.



Tudo o que age no indivíduo não deixa também de produzir suas repercussões no caráter coletivo. O benefício dos ideais franciscanos é grande até mesmo no campo social. As verdadeiras revoluções são as que partem do coração de cada um; as que atingem a substância e deslocam a posição da alma indivi­dual; as que representam a soma da mudança íntima, individual. Para reedificar a coletividade é preciso antes reedificar o homem. Que sociedade maravilho­sa aquela em que o indivíduo fosse moralmente bem mais forte.



Participamos de uma grei que não pode ofere­cer nenhuma segurança à alegria e nenhuma con­fiança à felicidade. Uma legalidade forçada, mais repressiva do que preventiva, não pode, senão rela­tivamente, dominar a alma humana onde está a fon­te do bem e do mal. O indivíduo não possui, como defesa contra todos, senão o hábito das próprias ener­gias de guerrear. Um instante de fraqueza pode per­dê-lo, tornando tudo sujeito às contingências da vida. Onde não há segurança, que bem pode ter valor? Eis a revolta do Santo. Unicamente o amor ao próximo valoriza todas as lindas e infinitas maravilhas da ter­ra e agita-nos na conquista deste amor, base principal da estrutura social, porque sem ele não pode existir um verdadeiro organismo coletivo. Temos, en­tão, o Santo de Assis, o primeiro Cavaleiro armado pelo amor, encabeçando a nova Cruzada, tendo como lema a Fraternidade, a fim de lutar contra o interes­se, o egoísmo, e tudo aquilo que constitui a traição humana e força desagregante da sociedade.



Do outro lado, o quadro de uma sociedade funda­da sobre princípios diferentes — o sonho do Santo realizado. O primeiro clarão interior é a necessidade de ser pobre, a necessidade de morrer também de fome para não ser preso como escravo na engrena­gem das atrações humanas. O trabalhador livre do ideal afasta-se dos profanos, dos interesseiros, dos negocistas, dos produtores de dinheiro, que atropelam porque não vêem as delicadíssimas flores do pensa­mento e do sentimento. A necessidade de afastar de si a triste população agressiva e sem escrúpulos impõe-se ao homem idealista para que possa dar o fruto da sua vida. É um fruto amadurecido pelos tormen­tos, que a humanidade colheu sem pagar, ou pagou somente com glória póstuma. A grande batalha tem início contra a própria natureza humana e contra a psicologia coletiva, por meio de um exemplo concre­to, uma realização vivida pelo ideal. O mundo, a princípio, olha, depois despreza, e, em seguida, devagar, compreende; liberta-se e afinal se prepara pa­ra seguir o exemplo. Esta assimilação do ideal por parte da alma coletiva é uma prolongada luta se­cular, porque se traduz numa cadeia de grandes ho­mens que se dão as mãos e sucedem-se, traçando a estrada. Há uma série de tentativas e de esforços que a humanidade faz para concretizar o pensamen­to, lentamente, arduamente, até á realização comple­ta. A vitória pertencerá à humanidade futura. São Francisco é ainda hoje o símbolo da sociedade em formação, representando uma tendência, uma espe­rança, uma expectativa, um trabalho a cumprir. Neste sentido, está vivo ainda hoje, como sempre, entre os homens.



Pobreza é a virtude que tende o subtrair da alma humana, onde se encontram as suas raízes, as rivali­dades entre ricos e pobres, estimuladoras de tantos estudos, de tantas tentativas de reformas econômi­cas, de tantas lutas políticas inoperantes e estéreis. A pobreza franciscana é, antes de tudo, um ensina­mento de renúncia aos ricos, o uso parco e nenhum abuso dos próprios bens. Aos pobres, que não são nada mais do que ricos sem dinheiro, aconselha igual renúncia. Nenhuma inveja. Paciência nas pri­vações. Ensina a ambos a vitória sobre a avidez que os separa, armando uns contra os outros, com tanto dano comum; pede a abdicação dos baixos apetites e a formação de valores mais altos que saciam, ali­mentam e são gratuitos. Advoga a destruição de uma fome vulgar e a excitação de um desejo mais nobre, passível de ser saciado.



Castidade é a virtude que tende a suprimir da alma humana os mais degradantes instintos, a explo­são cega das forças naturais, tudo o que nivela o ho­mem à besta. A castidade franciscana é, antes de tudo castidade no espírito, que confere ao indivíduo a posse de si mesmo, o domínio sobre as leis da natureza, o uso inteligente das forças biológicas. Esta virtude não propende à destruição do amor, desta grande força de coesão que domina o Universo. Não impõe a morte do amor, mas a purificação de suas formas inferiores. Torna-se mais consciente, mais ele­vado e mais profundo. Perde a significação de fun­ção animal com objetivo de reprodução, como ato individual de expansão egoística, para ser um ato consciente das finalidades da raça, consciente das exigências da coletividade, um amor disciplinado, moral e subordinado a ideais superiores. Sublimá-lo significa ainda mais: significa consciência das neces­sidades e das exigências alheias; respeito pela liber­dade do vizinho; altruísmo, amor ao próximo, frater­nidade, coordenação da atividade individual. Eis o milagre: evolução do amor; fê-lo força imensa de coesão social. Mas isto não basta. Elevado ao má­ximo de altruísmo, de universalidade, de dedicação é de sacrifício, elevado aos mais altos vértices da per­feição, o amor é o amplexo da alma a todas as cria­turas. Deixa de ser a negação separatista represen­tada pelo egoísmo: é a expansão completa do eu em tudo o que existe, a fusão da alma com Deus.



Obediência, no mais amplo sentido, é humilda­de; é a virtude que suprime a exagerada consciência e expansão do eu, o qual propende a lutar, sem es­colha de meio, contra a expansão da personalidade do próximo. Neste mundo em que ninguém olha o próprio semelhante como a um irmão; em que a in­felicidade alheia possui em si a medida da própria expansão, em que a agressividade inconsciente e mú­tua tende a expandir-se ao infinito, a virtude da hu­mildade franciscana é o mais enérgico e salutar cor­retivo. Antídoto de toda a desordem, de toda a insubordinação, de todo arrivismo; canalização do indi­víduo nos moldes da reciprocidade social, exercício de cada um para eliminar instintos atávicos de agres­sividade que retornam cada vez mais débeis, mais coordenados com o organismo coletivo, tornando-se mais aptos a viver na sociedade. As células do orga­nismo coletivo tornam-se mais aptas a viver na socie­dade. As células do organismo social não possuem coesão sem aquele cimento psicológico — a consci­ência que o indivíduo tem da coletividade. Apenas a superior virtude franciscana nos pode dar a subor­dinação do eu ao todo, a extinção do fermento deliqüescente do egoísmo, a realização de uma consci­ência coletiva. Não mais um sistema de agressão, mas de coordenação, tão indispensável ao progresso social.



Eis o grande mérito das virtudes franciscanas na coletividade. Todas elas tendem ao mesmo fim — a formação das mais harmoniosa e elevada estrutura social. Elas, antes de tudo, agem sobre o homem, me­lhorando-o, transformando-o em cidadão de crescente dignidade para uma sociedade mais digna. Agem também desta maneira sobre a coletividade, transfor­mando-se em força de progresso social. O indivíduo, por sua vez, encontrará sempre mais facilmente a posição que corresponda às próprias necessidades e ao valor intrínseco que ele representa, isto é, uma porção sempre maior de felicidade. As virtudes fran­ciscanas, como tudo o que é progresso, conduzem à realização deste grande sonho humano, a felicidade.



É consolador, diante da dolorosa realidade da vida, considerar esta concepção de uma humanidade superior, bem mais civilizada e bem mais consciente, dona de si mesma e das forças que contém. Jamais devemos ser pessimistas, porque a vida é um orga­nismo que funciona de modo sabiamente complexo; alimenta-nos a esperança de ver realizada aquela concepção. A humanidade pode e deseja subir. As leis biológicas o exigem. Havemos de subir, com ou sem São Francisco, em obediência a leis inflexíveis da vida. Em qualquer estado social, em qualquer momento histórico, agora e sempre, somente nos ele­varemos através da experiência que nos herdaram as virtudes franciscanas.



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Acabamos de analisar os ideais franciscanos de aperfeiçoamento moral sob o ponto de vista indivi­dual e social, interpretando, através da nossa menta­lidade moderna, a grande psicologia de exceção, na qual encontramos uma afirmação lógica, racional e profunda. Repousemos a nossa mente na contempla­ção da sua grande beleza moral, uma criação estética inteiramente do Cristo e ignorada pelos requinta­dos gregos. São Francisco é uma figura maravilho­samente complexa, figura que resume em si todo o homem, feita de pensamento e sentimento, de cérebro e coração. Observemo-la com aquela paixão e aquela pureza próprias das almas simples.



São Francisco é cérebro, São Francisco é cora­ção. É profundeza de conceito, é intensidade de pai­xão. Ele é a grandeza completa. Não é, como muitos gênios, o unilateral, o hipertrófico, ou do intelecto ou o sentimento. O pensamento é luz fria que pode ilu­minar esplendidamente a estrada mas opera sem o calor do sentimento, que reconforta, aquece e con­sola.



São Francisco é cérebro. O seu idílio, o seu sonho, a sua paixão são baseados numa concepção profunda, potente, audaciosamente projetada no tempo Ele foi, acima de tudo, um grande pensador, precisamente porque não se estendeu pelas vias da análise, alcan­çando tudo, rapidamente, pela intuição. Foi um pro­dígio do pensamento, justamente porque apanhou as conclusões num átimo. Das mesmas conclusões que a ciência moderna tarda muito para alcançar deu-nos ele a síntese no início de sua vida. Os san­tos, que são os trabalhadores do ideal, no exercício de suas elevadas missões, devem possuir, ao contrá­rio da nossa ciência, a segurança e a rapidez das conclusões. A sabedoria da intuição é a sabedoria simples e profunda das grandes almas, a que resolve, inocentemente, e com a simplicidade de uma criança, os maiores problemas da vida, diante dos quais a ciência se cala e o homem abaixa a cabeça, desanima­do. É grandioso agir desta maneira, sem ostentação e sem erudição, humildemente e quase sem aparecer, com os problemas mais altos e mais profundos. São Francisco, humildemente, apoderou-se dos problemas dos povos e dos séculos; viveu conceitos universais; solucionou questões de psicologia coletiva, de ordem moral, econômica e social, questões que os grandes homens, na prática, ainda não resolveram definitiva­mente. Tudo isto São Francisco viu e sentiu; brindou-nos com as suas conclusões; viveu-as, sobretudo.



São Francisco é coração. É muito mais do que um grande conceito: é uma grande paixão. O traba­lho do cérebro precedeu claramente ao do coração, es­pecialmente no período juvenil da crise psicológica. Foi um trabalho intuitivo, rápido e conclusivo, uma breve síntese posta à frente de uma vida de realiza­ções. Quando, tempos depois, numa triste tarde de inverno, cheio de júbilo, entendia-se com aquela flor, e assim, em toda a sua simplicidade, quase sem dar conta, lançava a concepção mais ousada que a hu­manidade conhece, esboçava e explicava também, numa forma sublime, a natureza da sua grande paixão de elevar-se e de amar, exaltada na sua veemência e capaz de consumir as forças insuficientes do or­ganismo humano. Esta paixão lhe proporcionou a força tremenda para impor-se às leis inferiores da na­tureza, para subordinar-se às necessidades de uma lei superior, mostrando-nos realizada a altíssima con­cepção do ideal. Esta paixão fê-lo viver e morrer; proporcionou-lhe o frenesi de elevar-se; tornou-o san­to no sofrimento; fê-lo triunfar do grande terror dos homens — a dor — e depois consumiu e destruiu o débil arcabouço humano. Andou sempre cantando o seu sofrimento interior na forma mais doce e mais gentil de sua primorosa sensibilidade; perfez a sua vida dolorosa, em nossa terra, cantando sempre. A sua paixão era amor. Quando o amor é muito gran­de, as formas humanas não lhe bastam mais, o ponto de vista comum não mais satisfaz e a alma o rejeita com repugnância. Procura abraçar todas as criaturas, mesmo o bruto, mesmo o inimigo. Esforça-se por achar alegrias mais profundas e uma união que so­mente pode ser completa se existir o amplexo supre­mo da alma com Deus. Ele levou sempre consigo este amor tão vasto e tão novo, padecendo e esmolando, de porta em porta, um pedaço de pão. Não sentia, todavia, fome de pão, mas do amor puro e verdadei­ro da alma que, para ele, existia em pequena dose sobre a Terra! Viveu com a sua paixão num mundo repleto de ódios e cobiças, tão diferente das necessi­dades da sua alma e que, num dia de sua juventude, se lhe devia afigurar venenoso ou envenenado. Vi­veu num mundo frio e hostil que não oferecia nenhu­ma oportunidade aos seus desejos mais ardentes. Mundo incompreensível e divorciado dele, onde to­dos facilmente apenas se encontram a si próprios. Neste mundo não se lhe deparou outro trabalho a não ser o heroísmo do sacrifício. Faminto de amor, com o qual revestia cada ato de sua vida, implora­va-o humildemente por esmola. Vestiu-se de pobre­za, nutriu-se de renúncia, até a apoteose do Alverne e ao sacrifício da vida, até a extrema abnegação e ao máximo de doação de si mesmo, até o êxtase su­blime, no amplexo sobre-humano no qual a alma se funde com Deus.




16 Intercadência: Falta de continuidade; interrupção.

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