Aqui, já tendo absorvido o que Pietro Ubaldi discorre sobre "O Que é Deus" no capítulo 6 do livro "O Sistema", já estamos mais ou menos em condição de ler o que vem a seguir.
Trago o capítulo 7 do mesmo livro, onde Pietro Ubaldi fala sobre "A Revolta":
Capítulo VII
A REVOLTA
Inicialmente,
procuramos entender quais eram os atributos de Deus, depois como
operou a criação e em que consistiu. Procuremos agora compreender
como ocorreu a revolta e como se deu. Começamos aqui com as dúvidas,
as dificuldades, as críticas. Aqui principia a revolta contra a
teoria da revolta.
Resumamos.
Os conceitos desenvolvem-se presos numa concatenação estritamente
lógica. Deus deve ser tudo. Se algo existir além Dele, que não
esteja em função Dele e que não dependa Dele, então Deus não é
mais Deus. Esse algo poderia ser Seu inimigo. E isto destruiria a Sua
Onipotência. Nasceria daí um dualismo que destruiria a Sua unidade.
Se,
pois, nada pode existir fora de Deus, Ele teve de criar dentro de Si
mesmo. Isto significa ser a criação derivada da própria substância
de Deus. Nós podemos criar coisas novas tomando uma substância fora
de nós, porque somos uma parte no todo. Mas se fôssemos tudo,
teríamos de retirar a substância de dentro de nós mesmos.
Não
podemos admitir ser esta substância divina de natureza material, mas
apenas espiritual. Ora, a não ser que admitíssemos ser Deus de
natureza material, o que não poderíamos compreender e não
saberíamos como o nosso universo, constituído em grande parte de
matéria, possa ter sido o resultado direto desta primeira criação
– a espiritual. Assim, uma parte de nosso universo, o espírito,
pode representar uma derivação direta da substância divina, mas
não, de certo, a outra que é matéria. Entre Deus e a matéria há
um abismo. Como preenchê-lo? Dá-se aqui uma mudança de natureza,
só explicável com a intervenção de um fato novo, ocorrido depois,
e tão grave que chegou a mudar as características da primeira
criação originária-espiritual, nas de uma segunda, que tem
qualidades opostas. Espírito e matéria, com efeito, sempre foram
contrapostos um ao outro como dois extremos irreconciliáveis. E eis
aqui despontar novamente, como acima notamos, a necessidade lógica
de um fato novo, sem o qual não poderemos jamais justificar, diante
de Deus, a constituição de nosso universo, se o considerarmos um
produto da primeira criação espiritual. De fato, como poderia um
universo, cindido em tal dualismo, ser a emanação direta de um
Deus, cuja primeira qualidade é justamente – e não pode deixar de
ser – a sua oposta, ou seja, a unidade?
Eis
que a lógica impõe esse fato novo. Qual teria sido ele? Não pode
ter sido o acaso, excluído pela perfeição do Criador e de Sua
obra. Não pode ter sido o capricho de Deus, outro absurdo
inaceitável. O fato novo devia representar a continuação da
concatenação lógica, sempre respeitada até agora. A teoria da
revolta e da queda representa a continuação desta lógica. O
problema é compreender todos os elementos que constituem o fenômeno.
É o que procuraremos fazer agora, nesta segunda parte, da análise e
crítica.
Comecemos
estabelecendo o valor desses elementos. Essa teoria da revolta e da
queda torna-se, muitas vezes, inaceitável porque não se conhecem
aqueles elementos e nasce uma confusão acerca do estado real das
coisas. O problema, pois, para responder a todas as objeções,
consiste em explicar e esclarecer todos os pontos de vista, as causas
e o desenvolvimento do fenômeno. Mas tarde voltaremos à
argumentação e então responderemos mais extensamente a cada uma
das dificuldades que nos foram lançadas por outros ou por nós
mesmos procuradas. As objeções giram em torno dos temas da
perfeição de Deus e de Sua obra, que seriam motivo bastante para
que fosse impossível ao sistema desmoronar; dos temas da onisciência
de Deus, mediante a qual Ele podia ter impedido a ruína a qualquer
momento. Surge, então, o problema da liberdade do ser, de sua
desobediência e o problema de seu conhecimento, acrescentando-se
que, sendo esta criatura perfeita, porque constituída de substância
divina, ela não podia errar, mesmo porque, conhecendo o futuro,
devia conhecer as conseqüências do seu erro. Esta segunda parte é
dedicada à solução destes problemas e de outros semelhantes.
Começemos
pois observando as características do sistema, a fim de descobrir os
precedentes que podiam constituir o terreno sobre o qual teria podido
desenrolar-se a revolta. Da primeira criação espiritual nasceram
muitos elementos distintos. Assim, no seio do sistema eles adquiriram
individuação própria, de tipo egocêntrico, à semelhança do
próprio modelo, Deus. Não foi criada a substância espiritual que
os constituía, porque esta era a substância incriada de Deus. O que
foi criado, como coisa nova, que dantes não existia, foi a
distribuição diferente dessa substância, ou seja, as suas
individuações particulares, isto é, as criaturas como seres
distintos. Devemos a este fato, como todos os seres criados, podermos
dizer “eu”, e como tal existir.
Ora,
vimos que se essa tão grande pulverização do todo podia ameaçar a
sua unidade, o perigo foi vencido com o equilíbrio do processo
divisionista com o processo oposto, em virtude do que a primeira
criação resultou num sistema orgânico, onde todos os elementos do
sistema foram imediatamente enquadrados numa ordem e disciplinados
por uma lei. Deus tornou-se centro do sistema e permaneceu situado no
topo da hierarquia. Esse lugar lhe cabia de pleno direito. As
criaturas, que lhe deviam a vida, não podiam existir senão em
função Dele, devendo-lhe perfeita obediência. Estas eram,
logicamente, as bases nas quais devia apoiar-se a vida de todo o
sistema, tanto quanto de cada elemento componente. Estas eram as
condições indispensáveis para que a criação não se desfizesse
em desordem, despedaçando-se no caos.
Então,
impunham-se dois imperativos categóricos: primeiro, a presença de
uma lei emanada de Deus, reguladora da ordem; segundo, absoluta
obediência a essa lei por parte da criatura. Estas são as regras
fundamentais indispensáveis para dirigir qualquer unidade coletiva,
seja molecular ou astronômica, seja fisiológica ou social, unidade
constituída em forma orgânica. Encontramo-nos logo diante da
necessidade lógica de uma obediência absoluta. A necessidade da
colaboração numa ordem perfeita era tanto maior, quanto o sistema
era perfeito e devia funcionar na perfeição. Que desastre, pois,
resultaria à mínima desobediência e desordem!
Mas
seria possível uma desobediência? Começam aqui as objeções. Num
sistema perfeito, composto de elementos perfeitos, não é concebível
uma possibilidade de erro. O grau de perfeição que a ordem possui,
devia torná-lo invulnerável, pois estava isento de qualquer
defeito. Como tal, o sistema devia permanecer inviolável, acima de
qualquer risco.
Mas,
observemos com maior atenção. Se as criaturas, sobre as quais
pesava o perigo de uma desobediência, eram perfeitas porque
constituídas de substância divina, elas possuíam uma perfeição
relativa. Eram perfeitas em relação à sua posição na hierarquia,
e a função que deviam executar no organismo. Em si mesmas, em
relação às suas posições, eram totalmente perfeitas, mas não o
eram diante da perfeição de Deus, a única absoluta. Esta é a
conseqüência lógica da estrutura hierárquica do sistema, o que
dava lugar a uma subordinação de posições no todo, tanto como
função a executar, quanto como perfeição ou como conhecimento.
Com relação à sua posição e função a executar, as criaturas
possuíam em grau perfeito as qualidades necessárias e o completo
conhecimento. Mas não possuíam as qualidades do Ser Supremo, e
diante de Deus não sabiam tudo. Daí a necessidade da aceitação de
algumas partes da Lei apenas por obediência, nos pontos que seu
conhecimento não atingia, como acontece com as células dos tecidos
musculares que obedecem às células nervosas, embora todas juntas
obedeçam ao “eu” central do ser.
Era
nessa relatividade da perfeição como do conhecimento, –
conseqüência direta da estrutura hierárquica do sistema – que se
aninhava a possibilidade de erro. As criaturas podiam errar todas as
vezes que, fora do campo que lhes fora preestabelecido, se
aventurassem nesse espaço desconhecido; todas as vezes que houvessem
procurado ultrapassar os limites impostos pela obediência à ordem
da Lei; todas as vezes que elas tivessem querido exagerar o próprio
egocentrismo, indo além dos limites de suas funções e de seu
conhecimento relativo.
Dada
a estrutura orgânica do sistema, não podia ser concedido a cada
elemento componente o conhecimento absoluto, que só podia caber a
Deus. O mesmo ocorre em nosso organismo, no qual cada célula sabe e
executa o seu trabalho e não pode entrar no campo de trabalho e de
conhecimento das outras células, de outra natureza, adaptadas a
funções diferentes. Cada uma, em perfeita obediência, permanece no
seu posto diante do “eu” central, que dirige todo o organismo. Em
cada sistema orgânico há necessidade absoluta de todos trabalharem
de comum acordo. Todos os elementos sabiam disso, conheciam o dever e
a utilidade imediata da obediência. Mas sabiam também que acima de
cada um, acima de si, na hierarquia, havia alguém que sabia mais,
até chegar a Deus que sabia tudo. E o egocentrismo em que se baseava
a sua individualidade, é, por natureza sua, expansionista e depois
centralizador. Cada um teria podido permanecer no posto a si
designado, em sua perfeição e conhecimento relativos, limitados,
mas completos em relação à posição ocupada e ao trabalho a
executar. As posições mais altas eram mais ricas de poder, mas
também de deveres, e todas igualmente dignas e honrosas. Só assim,
todos coordenados, pode existir um belo edifício, onde os menores
tiram proveito do poder e sabedoria dos maiores.
A
hierarquia não constituía uma injustiça. Representava apenas uma
distribuição de funções e de trabalho. Com relação à própria
posição todos eram igualmente perfeitos, sábios e poderosos.
Obedecendo a essa ordem, todos aproveitavam essa distribuição de
trabalho, ajudando-se reciprocamente. Tudo podia assim funcionar com
perfeição, se fossem respeitadas as regras estabelecidas. Podemos
constatar quanto sejam verdadeiros estes princípios, porque ecoam em
nosso mundo, onde tudo caminharia na perfeição se fossem aplicados.
Mas a verdade é haver necessidade absoluta de respeitar a ordem
estabelecida, pois ela é indispensável ao funcionamento de qualquer
coletividade organizada. Por isso, havia uma lei do Sistema e como
primeira condição, o dever de obedecer-lhe com perfeita disciplina.
Mas,
se de um lado, existiam elementos que impeliam à manutenção da
ordem, de outro lado havia elementos que impeliam em direção
contrária. Se havia de um lado, para o ser, uma zona de conhecimento
completo com relação à própria posição na hierarquia e à
função a executar, além dessa zona, havia para cada um, também
uma zona que em relação a eles era de ignorância, onde a criatura
não podia penetrar, por incompetência, falta de conhecimento e aí
era possível o erro. A obediência do ser fazia parte da disciplina
compreendida no Sistema de ordem, na qual estava construído todo o
organismo do Tudo-Uno-Deus. O ser possuía a sua zona de domínio
próprio. Estava assinalado o limite além do qual não podia passar.
Além dele estava a zona tabu, proibida, que, por obediência, devia
ser respeitada. Isso tudo não constituía uma imposição caprichosa
ou irracional do Chefe, mas era uma conseqüência lógica e
necessária da estrutura do Sistema; não era uma prisão ou
escravidão do ser, pois este permaneceu tão livre, até lhe ser
possível desobedecer: era apenas uma medida de defesa para sua
própria vantagem.
Entretanto,
permanecia sempre diante dos olhos das criaturas essa zona
inexplorada, na qual, em verdade, não se deveria entrar, mas que, de
fato, escapava ao seu domínio não se sabendo o seu conteúdo. Podia
representar uma zona de domínio ainda maior e uma vantagem a
conquistar. Esse impulso de autocrescimento, que impelia a explorar o
desconhecido para ampliar o próprio domínio, derivava da própria
natureza do ser, criado à imagem e semelhança de Deus, como
individuação egocêntrica, e portanto tendente ao expansionismo. E
era esse o impulso fundamental do ser.
Entre
esses impulsos contrários, a criatura estava perfeitamente livre
apenas cabendo-lhe a escolha. Tendo-a criado de sua própria
substância, Deus lhe havia transmitido as mesmas qualidades que lhe
eram próprias, e em primeiro lugar a liberdade. Essa também foi uma
condição lógica e necessária na construção do Sistema.
Baseava-se esta na ordem e na disciplina, mas numa disciplina
espontânea de seres livres e convictos, e não naquela escravidão
forçada ou inconsciente de autômatos. Sendo livre a criatura, a
obediência devia ser o resultado de uma escolha livre, que
concluísse numa adesão espontânea à ordem da Lei, expressão da
vontade de Deus. Sendo livre o ser, ele devia obedecer
espontaneamente, mas podia também não obedecer. Ninguém o podia
impedir. Permanecia tudo em poder da livre aceitação da criatura.
Tratava-se
de uma verdadeira prova de verificação, de modo a só poderem vir a
participar definitivamente do Sistema os seres que a tivessem
superado. Os elementos que não tivessem sabido superar o exame,
deveriam aprender a lição de forma mais dura e forçada, para
atingir o estado perfeito em que tinham sido criados e em que teriam
podido permanecer, se tivessem obedecido. Tratava-se como de um
segundo curso, mais lento e cansativo, para os mais duros e rebeldes,
a fim de os trazer ao porto de salvação. Condições necessárias,
dados os elementos em jogo, como vimos. Doutra forma, como teria
podido a bondade de Deus obrigar todos a salvar-se, sem violar a
liberdade individual? Este segundo curso ou queda, não foi portanto,
um erro, por defeito, mas uma possibilidade prevista, deixando à
liberdade da criatura o pleno direito de escolha. Esse respeito à
liberdade da criatura, Deus a tem, porque a vê em Sua própria
natureza, e foi elevada a um grau tão alto, que Deus respeita essa
liberdade até mesmo no rebelde que quisesse permanecer para sempre
rebelde. Só por último destruindo-lhe a individualidade com a perda
da substância que a constitui. Somente voltando a substância a
Deus, é possível a eliminação definitiva do eterno rebelde, sem
violar o princípio de liberdade.
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Estamos
no momento decisivo. Vimos os impulsos que estavam em ação. O ser
estava no meio, a fim de realizar sua livre escolha. Qual das duas
forças contrárias teria vencido, tomando a supremacia? O conflito
está no seu auge e o ser envolve-se num turbilhão.
Os
seres foram criados do tipo “eu sou”, menores mas do mesmo modelo
de Deus. No centro de cada um domina o egocentrismo. No espírito de
disciplina, na consciência da Lei, na obediência a Deus, o ser
devia achar a força para resistir ao impulso expansionista do
próprio eu. Na livre aceitação do limite, o ser devia achar o
freio que o mantivesse em seu lugar. Ele devia reconhecer,
espontaneamente, que era menor diante do Chefe, colocar-se na sua
posição devida à escala hierárquica, subordinando-se como menor
ao maior, pois isto é indispensável a uma coletividade orgânica.
Eles conheciam esse seu dever, viam que a disciplina era necessária
para o bom funcionamento do todo, conheciam a lei que ordenava
obediência e sabiam que essa Lei exprimia o pensamento e a vontade
de Deus.
Mas
havia mais. Os seres sabiam que esse mesmo “eu” que ansiava
expandir-se, como existência individual autônoma, fora um dom de
Deus. Esse dom, de existir como “eu” distinto independente,
fora-lhes dado gratuitamente por Deus, por um ato de Amor. Antes da
criação existiam como substância, mas desta ainda não havia
nascido a sua individualidade, que agora os constituía, tornando-as
criaturas existentes como tais. Para gerá-los, Deus os havia tirado
de um estado em que eles, como indivíduos, não existiam,
constituindo-os com a própria substância. Para poder fazer isto,
fora necessário subdividir-se em tantos “eu” menores, por ato de
Amor; a Divindade quisera como que despedaçar-se em tantos infinitos
fragmentos, aos quais, por um ato de altruísmo, comunicava a sua
existência, o próprio existir. Amor infinito. Nascidos do Amor e do
sacrifício, primeiros elementos da criação, e por isso também
primeiros elementos da redenção (Cristo), o qual reconstrói o que
estava destruído, esses infinitos seres em que a Divindade se havia
pulverizado, tinham o dever sagrado de obedecer, como dívida de
gratidão.
Mas,
se num primeiro momento, o Tudo-Uno-Deus se havia como que dividido
em tantos elementos, num segundo tempo, para não se dispersar, os
havia retomado em unidade, reconstituindo-se em forma orgânica, na
ordem de um Sistema do qual aqueles elementos constituíam o que, em
nosso organismo, são as células. Feito isto, era necessário que
eles se mantivessem aderentes à ordem estabelecida, em perfeita
obediência à Lei. Da criação nascera u'a máquina perfeita. Mas
tudo precisava ficar em seu lugar.
Tudo
isso pode justificar a agravar a culpabilidade, mas não suprime a
possibilidade da desordem, não eliminava os impulsos que constituíam
as tentações, instigando-os ao abuso. Sem dúvida, além do limite
imposto pela lei, havia um conhecimento e um poder maior. A criatura
não os possuía. Por que não conquistar, também, tudo isso? Não
eram livres os seres? Por que não experimentar? O eu, de acordo com
sua natureza, fazia pressão internamente, na direção
expansionista. Eis a tentação, o impulso que devia traí-los: uma
exageração do eu. Isto foi chamado de orgulho. Era a natureza do
seu “eu” que os havia de trair.
Mas
os seres não sabiam o que havia além do limite. Aqui residia o
perigo. E era justamente esse desconhecido que mais os tentava. Ele
estava além de seu conhecimento. Podia ser também uma grande
conquista, e por que perdê-la? É verdade ter Deus, com Sua Lei,
traçado o caminho da obediência. Mas Deus teria podido fazê-lo
para impedir-lhes esta conquista, reservando-o só para Si. O homem
continua hoje também a fazer raciocínios semelhantes, e ninguém se
pergunta de qual modelo tenha nascido essa sua forma mental. Assim,
não sabendo os seres o que havia além daquele limite, fizeram uma
suposição que não foi verdadeira. Foram punidos pela desilusão e
pela ruína que se lhes seguiu. Dessa forma, colocaram-se fora da
ordem, fora do Sistema, do qual se acharam automaticamente expulsos.
A ruína não foi o Sistema, pois como obra perfeita de Deus, este
não podia arruinar-se, mas foram eles que se precipitaram no
Anti-Sistema, no qual tudo se emborcou. Assim caíram os elementos
rebeldes, mas não a obra de Deus, que permaneceu inviolável. Não
será este o significado profundo, oculto na simbólica narração da
Bíblia, de Adão e Eva tentados pela serpente, que já era anjo
rebelde e decaído, a fim de comerem o fruto proibido, e depois
expulsos por sua desobediência do paraíso terrestre?
Os
seres rebeldes enganaram-se quanto ao resultado de sua revolta, mas
sabiam que era uma revolta contra a ordem. Seu erro e culpa foi de
querer substituir a ordem, chefiada por Deus, por outra ordem
chefiada ao invés, pela criatura. O movimento assume exatamente a
forma de inversão. Explica-se dessa maneira o emborcamento de todos
os valores que ocorreu no Anti-Sistema. Trata-se, portanto, de erro
culposo, cometido, abusando da liberdade concedida por Deus. A reação
que se seguiu, não foi apenas o último elo de uma concatenação
lógica, de um exato desenvolvimento de forças, como efeito
proporcionado à causa, mas também um fato merecido, segundo a
justiça de Deus.
A
culpa dos seres desobedientes foi querer possuir uma utilidade ainda
maior do que derivava do manter-se disciplinados na ordem. Por isso,
foram lançados fora. Como vemos, tratou-se de verdadeira expulsão
do paraíso. O Anti-Sistema foi o produto de uma expulsão do
Sistema, e por isso continuará desenvolvendo-se até agora a
concatenação lógica, acompanhando o processo da queda e do
reerguer-se, até ao fim, até à recuperação de tudo, restituído
ao estado de perfeição originária.
Pela
Divindade onisciente e previdente, o Sistema era munido de impulsos
inibitórios ou freios contra o erro. Mas tudo isso, para não
atentar contra a liberdade do ser, foi deixado em seu poder, à sua
livre escolha; conforme o resultado, alcançado em perfeita
liberdade, ficaria decidido, como após um exame, quem poderia ou não
continuar pertencendo ao Sistema. Também isso era lógico. Era
necessário ter aceito livremente uma ordem, à qual ninguém poderia
obedecer à força. Com a sua obediência o ser devia dar provas de
que aderira plenamente, de que quisera empenhar-se na manutenção da
ordem. Doutra forma o sistema teria sido um amontoado de escravos,
com a revolta ocultada em seu íntimo. A aceitação, demonstrada com
a obediência, era a resposta lógica e necessária por parte do ser,
expressando também o pensamento deste, resposta que Deus tinha o
direito de exigir de um ser livre de aceitar ou não aceitar.
Ora,
a resposta não foi igual para todos os seres. Uma parte ficou do
lado da ordem, no Sistema, e outra parte lançou-se à desordem e,
com isto, para fora do Sistema, rompendo as filas da disciplina. Esta
parte, acreditando conquistar sabedoria e poderes, ao ultrapassar os
limites da Lei, acabou achando-se perdida fora da Lei. Os primeiros
escolheram o impulso centrípeto, unitário, dirigindo-se para Deus;
os segundos escolheram o impulso contrário, centrífugo, tendo como
centro o seu egocentrismo, para expansão deste contra Deus. Então
partiu-se em dois o Sistema: em Sistema e Anti-Sistema, dando origem
ao dualismo. Mas veremos agora que, ao invés de dizer: o Sistema se
dividiu – implicando a idéia de um estrago – é mais exato
dizer: o Sistema permaneceu perfeitamente íntegro como era, de
estrutura inviolável; enquanto o Anti-Sistema foi produto da
expulsão feita dos seus elementos rebeldes.
Uma
vez iniciado este movimento, de afastamento, a desintegração da
parte corrompida, expulsa do Sistema, continuou rápida e
automaticamente, à maneira de uma desintegração atômica ou em
cadeia. E tudo, como vimos, precipitou-se do estado de puro
pensamento no estado de energia e, finalmente, no de matéria. Nas
galáxias, na qual da energia nasce a matéria, está o mais profundo
inferno do ser, tendo atingido o máximo da descida involutiva, e daí
começa o estafante caminho da subida para Deus.
W
W W
Com
estes esclarecimentos, não terminaram as dúvidas e objeções.
Oferecendo uma visão mais pormenorizada, respondemos a muitas delas.
Para responder a outras continuemos a observar.
Objetam:
mas Deus, sendo onipotente, não podia impedir a queda e, com isso,
todas as dolorosas conseqüências resultantes? Em geral, fazemos da
onipotência uma idéia de arbítrio, de capricho que pode tudo,
mesmo contra a lógica e a ordem da Lei. Nós mesmos, quando
invocamos a liberdade, procuramos “obedecer” à lei escrita em
nossos instintos. A onipotência de Deus não pode ir contra a lógica
e a ordem da Sua Lei, porque se fosse contra ela, iria contra Si
mesmo. Então a nós, filhos da revolta, pode parecer que Deus não
seja onipotente.
Deus
não podia impedir a queda sem violar o princípio da liberdade.
Tinha construído um Sistema de ordem, em que cada impulso tinha uma
função. A perfeição não pode ser senão determinística. Sendo
perfeito o Sistema criado por Deus, ele se nos apresenta com as
características de fatalidade. Num sistema perfeito, não se admitem
oscilações de incerteza que derivam do livre arbítrio e da
possibilidade de escolha. Chegamos, assim, a um conceito de Deus que
se avizinha da abstração a que está chegando a ciência moderna:
ou seja, um Deus inteligência e pensamento, um Deus Lei, que dirige,
de dentro, todos os fenômenos. Então, para não contradizer a Si
mesmo, o próprio Deus não podia sair da fatalidade, da concatenação
lógica, representada pelo desenvolvimento das forças depositadas no
Sistema, nem podia romper os liames que fatalmente prendem e fazem o
efeito proporcional à causa.
Cada
elemento ocupava no Sistema o seu devido lugar quanto a conhecimento
e poder. A onisciência e a onipotência só podiam pertencer ao
Chefe, elemento máximo e centro do Sistema. Cada ser havia recebido
todo o necessário, de acordo com a sua posição e função. Além
do mais, se não quisermos cair no absurdo, temos de admitir Deus
como justo. Ora, não se pode negar o fato concreto, por todos
conhecido, da presença do mal e da dor em nosso mundo e o fato do
quanto custa emergir deles com a evolução. Se Deus é justo, tudo
isso deve ser merecido. Termos sido criados, sem permissão nossa,
para sermos condenados a achar a felicidade através de um caminho
tão duro, sem termos merecido essa condenação, não é obra de
justiça que possa ser atribuída a Deus.
Com
a criação, estabeleceu-se um pacto, como um contrato de
consentimento bilateral, entre a criatura e Deus. A esta Deus dera
uma existência individual própria. Antes da criação, aquela
criatura não era criatura, mas apenas uma substância não
individuada como criatura. A lógica do organismo nascido pela
criação impunha a criatura se coordenar no seio daquele organismo,
com todos os elementos componentes, sem o que o Sistema não podia
existir nem o organismo funcionar. Era indispensável cada um
permanecer no lugar do seu dever. Como Deus aí executava a sua
função suprema de direção, assim deviam estar todos os elementos
componentes do Sistema, em suas posições subordinadas. Era lógico
e fatal, diante de tudo isso, que a parte que rompera o pacto fosse
expulsa do Sistema, pelo fato de numa ordem perfeita, não poder
subsistir a mínima desordem.
Isto
ocorreu de parte da criatura e o remédio foi possível, isolando a
parte doente da parte sã, para esta não adoecer e tudo arruinar.
Permaneceu de pé a parte sã, intacta; e a isto se deve que a parte
enferma poderá curar-se, reentrando, após a cura, no Sistema. Mas
imagine-se o que ocorreria se a desordem, ao invés, tivesse partido
de Deus. Dir-se-á ser isto impossível. E no entanto é o que se
pretende, quando se diz que Deus não deveria ter permitido a queda.
Ora, na ordem da Lei, dados os princípios nos quais se baseava, isso
teria sido uma revolução e uma tirania. Então Deus mesmo teria
forçado o Sistema a uma revolução não periférica, centrífuga
(revolta do povo), mas centrípeta (abuso do tirano) – uma
revolução ainda pior do que a realizada pelas criaturas. Isto
porque, partindo de Deus, teria feito desmoronar-se não apenas uma
parte do Sistema, que se teria podido expelir dele, mas teria feito
desmoronar todo o Sistema. Enquanto no primeiro caso tudo é
remediável através de Deus e pelo Sistema, permanecidos íntegros,
no segundo caso a queda teria sido irremediável, porque, tendo a
rebelião atingido o vértice, teria arrasado o próprio Deus e tudo
teria desmoronado irremediavelmente com Ele, sem outra possibilidade
de recuperação.
Aí
está, pois, o que ocorreu na revolta e na queda. Dessa forma,
indiretamente respondemos a muitas dificuldades que apareciam contra
a teoria da queda. Então, as posições hierárquicas se emborcaram,
e quem estava mais no alto caiu mais em baixo, ou seja, quem estava
mais próximo de Deus foi projetado mais longe até o maior de todos
os rebeldes, que devia estar mais próximo de Deus e se tornou o
chefe do Anti-Sistema. Este último, porquanto entre os maiores, era
sempre menor que Deus, e necessariamente maior deve ter ficado também
na queda. Isto significa existir entre os dois chefes, Deus – do
Sistema, e Lúcifer – do Anti-Sistema, uma diferença de grau em
tudo, significando ser o bem mais forte do que o mal, e, na luta
entre os dois, a vitória final só pode ser do primeiro.
Assim,
o Sistema permaneceu de pé, representando a possibilidade de
recuperação e o ponto de apoio da redenção, que de outra forma
seria uma palavra sem explicação e um esforço sem meta. E o
Sistema ficou em pé, como o mais forte, como era indispensável para
poder reabsorver, em seu seio, o Anti-Sistema. Um desmoronamento
absoluto, ao invés de desmoronamento parcial, não teria oferecido
nenhuma possibilidade de recuperação.
Pudermos
ver, desta maneira, neste capítulo – vencendo todas as objeções
que pudemos encontrar a respeito deste assunto – que Deus fez tudo
otimamente e não teria podido fazer melhor. Quanto mais observamos,
mais devemos convencer-nos de ser perfeita a obra de Deus.
Nesta
verificação, executada nesta segunda parte de análise e de
crítica, ao invés de conseguirmos demolir a teoria da queda, fomos
achando dela sempre novas confirmações.
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