Nota: Pietro Ubaldi escreve "S" para Sistema e AS para anti Sistema
CAPÍTULO 19 DO LIVRO CRISTO
A NOVA TÉCNICA DE RELAÇÕES SOCIAIS
O problema da violência. Ela constitui culpa num regime de ordem, mas é instrumento de luta num ambiente de violações. A injustiça pode legitimar a revolta. A evolução elimina a violência. Reconhecimento dos direitos do indivíduo. A injustiça institucionalizada. A desconfiança recíproca e o instinto de luta impedem o diálogo. A vantagem de suprimir os atritos e a nova técnica das relações sociais. O fim das guerras.
Abordemos agora o problema da violência. O Evangelho a condena. Mas enquanto o seu convite à não-resistência e ao perdão se dirige a quem é golpeado, o convite à não-violência se dirige aquele que golpeia. Depois de ter observado os primeiros dois aspectos do problema, observemos agora este terceiro aspecto concernente à pacificação proposta pelo Evangelho. A sua solução é de fundamental importância para alcançar a de outro grave problema, o da convivência social, agora de grande atualidade. Dada a técnica da sua evolução, a vida vê-se constrangida a afastar-se do seu primitivo estado separatista de luta e a tentar a eliminação da violência, porque ela — como já vimos — caminha para a unificação. Deve-se avançar do AS para o S. Isto significa ter que mover-se em direção a ordem, à colaboração, à organicidade, coisas que exigem o pacifismo e excluem a violência. Eis que biologicamente ela é condenada a desaparecer porque a evolução fatalmente leva a superação da luta entre elementos inimigos. Já se vê quanto ela seja contraproducente e como deva ser eliminada nas grandes organizações industriais e nos trabalhos de investigação científica de equipe. A atual conquista da Lua é o produto de uma tal organização. Até no setor religioso a nova tendência é anti-separatista e unificadora. As novas idéias políticas se baseiam na coletivização.
O que é a violência? Ela é a expressa o mais viva e evidente do estado de luta, que é a expressa o do impulso egoísta desagregante, próprio do AS. Desse modo, a violência está nos antípodas do S, é anti-Lei e portanto é mal e culpa. Não há dúvida de que a violência seja assim quando observada em relação a um regime de justiça, diante da Lei e do S, tomados como pontos de referencia.
O homem, porem, não vive no S, mas no AS, isto é, num regime de violação e de injustiça. Como estabelecer a culpabilidade de um ato, quando é cometido num ambiente de culpa que constitui o ponto de referência? Quando nesse ambiente a violência é reputada necessária para a sobrevivência, como pode considerar-se culposa uma conduta que é indispensável para não perecer? Ao contrário, quanto mais se desce involutivamente, tanto mais a violência, em vez de culpa é virtude, enquanto é um meio de vida, porque é necessário viver para que se realize a evolução. Com efeito, para os seres do plano animal, renunciar a violência pode significar a morte. E isto, em certos momentos e ambientes, pode ser verdade também para o homem. Então, como sustentar o direito de seguir uma virtude que pode reduzir-se a um suicídio? E como pode o ideal evangélico querer anular instintos basilares, fixados como automatismos por repetições milenares e portanto necessários a conservação da vida? E são tão necessários e tão preciosos que se deve aos mesmos ter o homem sobrevivido até hoje.
É verdade que, para quem aprendeu comportar-se conforme a Lei, não é necessária a violência, pois, ali reina a disciplina. Mas onde existe esta necessidade — como entre os involuídos situados fora da Lei, no AS — o discurso é bem outro. O homem, devido ao seu atraso evolutivo, esta num ambiente ainda anti-Lei, onde para viver é necessário lutar e onde a defesa individual é confiada as próprias forças de cada um. Como se pode pretender que o indivíduo siga a seu risco e perigo uma conduta que, contrastando com o seu ambiente, impõe seus próprios métodos?
Então, o que acontece? É um fato que a evolução quer alcançar um regime de justiça. Esta é a tendência da vida, e, onde vigora a Lei, esta meta já se alcançou. Mas onde vigora a anti-Lei, mesmo lutando-se para alcançar a justiça, o ponto de partida do caminho do ser é ainda a injustiça. Logo, onde a violação da Lei constitui a regra, forma-se uma cadeia de injustiças sem fim, cujos elos ligados entre si, segundo uma seqüência de causa e efeito, degladiam-se incessantemente a procura de urna justiça, que por este método nunca será alcançada. Verifica-se então que a verdadeira culpa da violência recai toda sobre as primeiras causas de que ela é a conseqüência, as quais consistem num abuso em prejuízo do ofendido que, por instinto, reage. Ora, a primeira violência e culpa está sempre no fato de ter agido contra a justiça, o que se verifica via de regra nas posições de comando, precisamente onde deveria triunfar o dever de observar aquela justiça. Então esta injustiça por parte de quem tem autoridade leve os ofendidos a fazer uso da justiça com suas próprias mãos, por meio da violência. E esta é culpa quando usada contra um regime de justiça, converte-se em justiça, quando se dirige contra um regime de injustiça. Em tal caso a violência pode ser conforme a Lei, na medida em que se procura a justiça contra a injustiça. No entanto, para se ter o direito de admitir com o legítimo o uso da violência para fazer-se justiça, é necessário reconhecer que vivemos num mundo ainda selvagem.
Assim, por exemplo, na Revolução Francesa as culpas mais graves não hão de ser vistas nos delitos cometidos pelo povo exasperado, mas nos abusos da aristocracia que os havia provocado, levando aquele mesmo povo ao desespero. Em tais casos a violência, quando não exista outro meio para obter justiça, pode tornar-se legítima. Então é a vida que rompe as barreiras construídas pelos parasitas acomodados nas posições de domínio, para que estes não interrompam a evolução. E em tal caso que a Lei faz vencer as revoluções por mais ilegais que possam parecer.
E por este caminho que se chega ao absurdo de reconhecer a legitimidade de uma estranha moral que admite a revolta violenta, quando reputada necessária para restabelecer a ordem da justiça num regime baseado na desordem da injustiça. Assim um mal de tipo anti-Lei excepcionalmente pode tornar-se lícito. E, contudo, necessário que não haja outro caminho para se obter justiça. Mas além deste, há ainda um outro motivo: a escolha deste tipo de conduta não se pode fazer ao acaso, e sim, por uma necessidade que a justifique. Isto presume uma capacidade de se julgar com retidão, uma sã consciência para auto dirigir-se; presume ainda que o indivíduo assuma a responsabilidade desse seu modo de agir, a qual recai toda sobre quem julga ser justa a sua violência. Como se vê não é fácil estar moralmente autorizado a usá-la quando se trate de um tipo humano naturalmente levado ao abuso por egoísmo. Vê-se, pois, que são muitas as restrições a um reconhecimento da legitimidade no uso da violência.
O problema da legitimidade da violência é de grande atualidade, porque assistimos hoje a um levantamento mundial, nada pacífico, contra o princípio de autoridade em todas as suas formas. Os conceitos acima referidos nos ajudam a compreender o fenômeno. A autoridade, no passado, foi usada com freqüência contra a justiça, para manter subordinada algumas classes de indivíduos que hoje se rebelam. Assistimos, assim, a fatos diversos, todos conexos por um fundo comum, como a emancipação da mulher contra a autoridade marital e a supremacia do macho em todos os campos; a rebelião dos pobres reclamando os seus direitos contra os ricos; a vontade de independência dos filhos perante os pais; a intolerância por parte das novas gerações perante os sistemas das velhos gerações. Isto acontece até no campo eclesiástico, outrora modelo de disciplina. Antigamente a mulher, o povo, os jovens, eram mantidos na ignorância, impedidos de conhecer a realidade da vida, zelosamente escondida sob ideais, usados como máscara protetora. Hoje, as mesmas classes que lhe estavam, outrora, — por terem despertado — não suportam mais semelhantes abusos. Trata-se de um movimento mundial que arrasta todos, por cima de todas as divisões e que pode ser considerado uma revolução da própria vida onde a violência parece encontrar guarida na necessidade de progredir. Como se poderia condenar tudo isto quando é necessário a evolução? E então quem pode assumir o direito de impedir que a vida progrida?
Impõe-se portanto resolver o problema da definitiva eliminação deste mal que é a violência. Que ele as vezes seja necessário não quer dizer que não seja um mal. Como se pode chegar a tal resultado? E um fato que o homem está imerso num mar de violações e reações, mas é também inegável que a vida exerce uma pressão incessante para subtrair-se a essa fatalidade. Por isso, apesar de tão tristes constatações, deveremos, por evolução, alcançar a supressão da violência. Se esta é um produto do AS, isto é, da involução, o remédio consiste na evolução, que a corrige, levando-a para o S. É fatal e onipresente a técnica de desenvolvimento deste fenômeno.
Vemos de fato que, como o furto pertence a fase involuída da propriedade legitimada por lei; como a escravidão representa a fase involuída do trabalho remunerado; assim a violência é a fase primitiva do direito codificado. A evolução disciplina e organiza a atividade humana, construindo uma ordem sempre mais perfeita da qual a injustiça é cada vez mais eliminada e com ela a necessidade de uma reação que faça justiça. Caminha-se assim em direção a observância da Lei, com o reconhecimento para todos do direito de viver, que num regime anti-Lei é negado e portanto deve ser exercitado a força, o que pode justificar o uso da violência.
A humanidade está hoje se aproximando da eliminação deste mal com o reconhecimento daquele direito a vida do qual permitirá a observância em todos os campos. Tende-se assim a exercitar a autoridade cada vez menos em forma egoísta e opressiva como no passado, mas sempre mais em forma protetora e educadora. Eis que a violência não se elimina mediante outra violência que provocaria reação, mas com o civilizar-se, enquadrando-nos todos — dirigentes e dependentes — num regime de ordem e responsabilidade, caracterizado por direitos bem precisos e por deveres efetivamente respeitados. A violência não se pode eliminar a não ser eliminando suas causas, as quais hão de ser vistas — via de regra — no mau uso que os detentores do poder vêm fazendo de sua autoridade, dos meios de vida e das diretrizes sociais em qualquer uma de suas formas, quer econômica, quer política, quer religiosa etc.
Observemos a técnica deste fenômeno. Hoje vivemos numa fase de transição, do velho regime da injustiça ao novo caracterizado pela, instauração da justiça social. Vejamos como era constituído o velho regime. Não existia nele uma definição de direitos e deveres. O princípio sobre o qual se baseava era o seguinte: o direito vai até onde chegam as forças que tem o indivíduo para fazê-lo valer; o dever depende, pelo contrário, de sua fraqueza e se mede pela mesma. No campo bélico internacional é este o sistema que ainda vigora, de tal forma que o direito e sua legitimação são impostos pela força, por parte do vencedor. Então o vencido é julgado um criminoso de guerra só porque é vencido.
O regime do passado era um regime de força, não de justiça. Mas a vida evolui do primeiro sistema ao segundo. No passado cabiam ao forte todos os direitos justamente porque, enquanto tal, ele sabia fazê-los valer; ao débil cabiam, pelo contrario, todos os deveres, porque não sabia fazer valer seus direitos. Ao reconhecimento dos direitos e deveres de cada um, não se chega senão numa fase mais evoluída. Na fase antecedente, a honestidade era pregada só para paralisar — e assim melhor sujeitar — o mais fraco.
Era justo então que este se defendesse com a hipocrisia, porque perante o forte, outro meio de defesa ele não tinha. A astúcia então se explica e se justifica como legítima defesa, pois quem a usava se encontrava perante uma injustiça legalizada. E porque a arma do engano usada pelo fraco em sua defesa não deveria ser admitida como o é a arma da força usada do lado oposto? Aos fortes, a força; aos débeis, a astúcia. A vida dá imparcialmente a cada um os seus meios para a sobrevivência, tanto mais que ela igualmente, no segundo caso, alcança a sua finalidade de salvação, quando, para além da superioridade física da força, faz vencer também a força mental da astúcia.
Formou-se assim no passado uma moral feita de uma mistura de força e de hipocrisia, isto é, de aparente honestidade sob a qual fervia subterraneamente uma encarniçada luta pela vida. Formara-se deste modo o clássico tipo de pessoa de bem, o respeitável bem-pensante. Havia, desse modo, estabelecido um certo equilíbrio na convivência entre a classe dos patrões e a dos servos, o primeiro esmagado com a força, o segundo enganando com a astúcia, sem que nunca chegassem a uma clara definição ou a uma exata observância dos recíprocos direitos e deveres. Quem se encontra hoje em idade avançada, pode ter conhecido aqueles dois regimes. Hoje a vida, apesar de ser contestação e revolta, busca definições e soluções claras, enquanto antigamente tudo parecia um jardim florido, mesmo se, em substância, não passasse de um campo minado.
No passado, não tendo sido ainda alcançada uma consciência de recíprocos direitos e deveres, não se podia resolver o problema senão com esse equilíbrio entre os dois opostos egoísmos, o do forte e o do fraco, cada um lutando com os seus meios. Por este caminho a solução do conflito não podia ser dada senão pelo fato de o fraco fazer-se forte até o ponto de conseguir que o forte reconhecesse seus direitos.
E isto em substância o que está acontecendo hoje em dia. Trata-se de um produto da evolução e para se chegar lá era necessária e indispensável uma proporcionada maturação em todos os campos. Esta é a grande revolução de hoje. Eis porque os princípios do passado, como o da autoridade etc. estão em crise. Mas, há de se lutar para que esta reação seja realizada com sentido de justiça e não mediante um abuso em sentido contrário, porque o abuso só consegue dar lugar a uma cadeia de reações do mesmo tipo. A solução se alcança com o equilíbrio, e não com um novo desequilíbrio.
Eis porque o Evangelho condena a violência. Mas quando ela é condenada para outros fins, como o de manter quietas as massas para conservar de pé a injustiça institucionalizada de regimes que violam os direitos fundamentais do homem, então se compreende e se justifica a reação das massas submetidas. Em tal caso a responsabilidade da revolta não cai tanto sobre os revoltosos quanto sobre as classes dominantes, porque são elas que com a sua conduta provocam as reações explosivas do desespero. Logo pode tornar-se legítima, como referimos acima, uma insurreição revolucionaria, quando ela seja contra uma tirania evidente e prolongada.
Eis que o pensamento moderno é orientado de um modo totalmente diverso daquele que vigorava até o mais recente passado, quando o homem se apoderava das melhores posições e depois, para mantê-las, pregava a não violência do Evangelho aos excluídos daquelas posições, das quais eles não tinham sabido empossar-se. Assim a legalidade da ordem estabelecida cobria a injustiça.
Hoje este jogo é evidente e por isso não vigora mais. Hoje a vida procede a um nivelamento de direitos e deveres, imparcialmente, porque pretende chegar a organizar toda a massa humana numa única sociedade em que cada qual cumpre a sua função, seja de comando, seja de obediência, conforme as suas respectivas capacidades. Antigamente a vida queria fazer sobreviver o mais forte, eliminando o mais fraco. E naquele nível evolutivo isto era justo. Mas hoje ela tende a deslocar-se para novas posições, e, além de procurar realizar tal seleção, tende a coletivização para alcançar a fase orgânica. Seque-se daí que o nivelamento, que parece supressão dos valores individuais, leva, pelo contrário, ao alcance de um seu maior rendimento, enquanto faz realizar um passo para a frente em direção a unificação.
É certo que se trata de uma revolução e não apenas de um fato superficial. Mas ela implica também um outro deslocamento, na medida em que se realiza com uma técnica menos sanguinária e mais inteligente. Não tende esta de fato à mera substituição de pessoas nas mesmas posições, mas a uma exata definição de direitos e deveres, para se chegar a um estado orgânico unificado. Isto concorda com um outro aspecto da técnica evolutiva, para a qual uma posição mais avançada e mais perfeita, enquanto mais exatamente definida nos particulares, dado que a evolução é ainda um processo de aperfeiçoamento e de maior complexidade do modo de existir.
Ora, quanto mais se avança em direção a tal posição, na qual são reconhecidos os direitos do indivíduo e se vive num regime de justiça, tanto mais a violência se torna verdadeiramente culpa e a Lei de Deus com as suas reações severamente a corrige como toda verdadeira injustiça.
Então o que de bom se pode pretender quando a primeira violação vem do alto? Não é possível se praticar a injustiça da opressão para com seus próprios dependentes sem que eles não adquiram o direito de praticar a injustiça da revolta para com seus próprios superiores. No fundo é natural que estes procurem revidar o dano que recebem. Então como podem falar de deveres aqueles que, em primeiro lugar, não cumprem com os seus próprios? E esta falsidade que autoriza a desobediência. Triunfa então o regime do AS, da luta de todos contra todos, no qual é inútil procurar justiça.
* * *
É a lei da luta na desordem, própria do nível evolutivo humano que ainda não alcançou a fase da harmonização; é este o estado de fato que torna difícil a eliminação da violência. A evolução que este aguarda é obstaculizada pelo fato de que a humanidade emerge de um regime de injustiça profundamente fixado no seu subconsciente.
Antigamente as revoltas dos subalternos eram todas ilegítimas porque era inconcebível que eles tivessem direitos. Isto produziu um inevitável estado de desconfiança sobretudo por parte dos dependentes em relação aos dirigentes. Não existe colaboração entre os dois extremos, mas um antagonismo dificilmente sanável. Pudemos observar na Europa casos em que o velho instinto de revolta do servo contra o patrão — voltando a tona — induziu os primeiros a não aceitar propostas para sua vantagem, ofertas feitas por patrões inteligentes. Estes as ofereciam porque tinham compreendido que nos próximos anos ver-se-iam constrangidos a concedê-las à força. Então, antecipando os tempos, tinham decidido oferece-las de sua espontânea vontade, em vista de seu interesse futuro.
A vantagem para eles consistia em assegurar à sua própria indústria um longo período de paz, o que significa uma maior produção e portanto maior utilidade enquanto elimina a dispersão de energias a que conduz a luta, com greves, vandalismos, sabotagens, escasso rendimento de trabalho, discussões com sindicatos etc. As concessões queriam prevenir tudo isso e os conseqüentes prejuízos, procurando resolver o problema da eliminação da violência, a partir de suas próprias causas, instaurando, assim, um regime de justiça. E seguindo este exemplo que os dirigentes dão prova de ter compreendido ser bem mais conveniente darem prova de justiça e generosidade do que continuar a explorar e a oprimir seus dirigidos, concedendo-lhes espontaneamente aquilo que eles conseguiriam, mais tarde, pela força.
Pois bem, nestes casos pudemos observar que os dirigidos recusaram tais ofertas, pacificamente, para eles realmente vantajosas, preferindo palmilhar o método da ofensiva e da sucessiva extorsão pela violência. Isto porque este é o seu instinto, fruto de longa experiência no passado — que os induziu a desconfiar da oferta interpretada à guisa de uma enganosa armadilha. Aquele instinto os leva, pois, a não aceitar, porque eles acreditam que é somente extorquindo com a força que conseguirão algo de verdade. Nem é possível se esperar uma atitude diferente de indivíduos habituados por milênios a desconfiar. Até ontem os servos não sabiam sequer quais eram os seus direitos. Sabiam apenas que o mais forte os tinha todos e o mais fraco nenhum, e que cada uma das suas reclamações era julgada e punida como uma revolta.
Os modernos conceitos de justiça social são recentíssimos para poderem vencer as resistências de todo um passado fixado no inconsciente coletivo Vive-se ainda um regime de desconfiança contra todos porque se esta habituado a ser golpeado pelos fortes e enganado pelos mais astutos. Continua-se, assim, com o sistema da violência por puro desabafo de instinto, mesmo quando ela não é legitimada por nenhuma necessidade. Todo o passado ensinou ao homem: o que vale é a força, muito mais que a justiça. O vencedor tinha direito a tudo, porque vencedor. Assim o homem tinha qualificado Deus como Onipotente, para o colocar no lugar que lhe parecia de maior valor, o do poder, antes que da justiça. A velha natureza humana ainda sobrevive e impede a formação do espírito de compreensão e colaboração necessário nas modernas grandes organizações econômicas, políticas, sociais, industriais. Estas têm necessidade de resolver os conflitos com o menos tempo e menor dispêndio de energias possível.
Daqui a necessidade do diálogo inteligente que valorize os interesses comuns evitando o atrito que deteriora e não resolve. Mas, infelizmente, sempre pelo referido instinto de desconfiança e de luta, o diálogo pode resolver-se num engano, pois pode não passar de uma astúcia para imobilizar com palavras e promessas a parte contrária afim de vencê-la melhor. O diálogo presume de ambas as partes certa dose de boa vontade para concordar e cooperar, pois de outro modo não passa de uma enganosa arma de guerra. Explica-se assim como é os jovens contestadores de hoje, que não aceitam mais o dialogo como meio para se entenderem, mas a força. Eis então que a técnica do diálogo ainda não funciona, devido a imaturidade dos dialogantes, levados a usar os velhos métodos de luta para o predomínio individual ou mesmo coletivo. Assim a última palavra decisiva está entregue a luta, prevalecendo a tendência de recair nas posições mais atrasadas da evolução.
Tal tendência involutiva é, contudo, corrigida pelo contínuo esforço ascensional da vida que, pelo contrário, quer evoluir. A vida é utilitária. Segue, por isso, o método da procura da maior vantagem com o mínimo esforço, tendendo sempre mais ao estado orgânico e unitário. E se ela admite a luta é precisamente para fazer com que elementos estranhos possam conhecer-se, e assim juntar-se e cooperar. A guerra é a primeira e mais involuída forma de contato e de diálogo que a vida impõe aos sujeitos separados, para que se avizinhem e se unifiquem. É assim que a evolução, através da guerra, acaba por eliminar a guerra. É assim que nas relações sociais a compreensão que aproxima e unifica tende a substituir-se a luta que isola e divide.
Sabemos que o ponto de partida da evolução é o AS, isto é, o estado caótico separatista e que a meta a que ela tende é o S, isto é, o estado orgânico de ordem e cooperação. Desse modo, quanto mais se desce involutivamente, tanto mais o esforço se consome em atritos de luta e tanto menor é o trabalho produtivo. É assim que no estado involutivo temos esforço máximo e rendimento útil mínimo, enquanto no estado evolutivo temos um esforço mínimo e um rendimento útil máximo. Eis que a vantagem da eliminação da luta e da coordenação dos esforços para colaborar, é avaliável em termos utilitários. É impossível que a inteligência humana não chegue — desenvolvendo-se — a compreender e a aplicar, para sua própria vantagem, uma verdade tão elementar como aquela pela qual o estado de ordem, e a disciplina social que implica, são mais úteis — enquanto menos dispersivos e mais produtivos — mesmo se são, muitas vezes, considerados como uma limitação da liberdade. É por isso que, por se terem experimentado as tristes conseqüências de um abuso da liberdade, corre-se o risco de uma recaída no regime policial com a esperança de se reconquistar ou de se instaurar tal disciplina.
É assim que o fenômeno da supressão da violência encontra-se ao longo do caminho da evolução, cuja função é a de superá-lo e resolvê-lo. E o que se verifica hoje sobretudo nas relações sociais pertencentes ao campo do trabalho, é que aos velhos e cansativos sistemas de luta vão se substituindo outros de maior rendimento. Aos atritos entre patrão e servo substitui-se o método da colaboração entre co-interessados. Quando o operário se torna co-proprietário e o proletário se torna burguês, não é mais necessário abolir a propriedade para alcançar a justiça social. E isto já começa a funcionar nas indústrias dos países mais avançados por obra de especializados em tecnoestrutura. Retrocede a violência e em seu lugar avança a inteligência. Prevalece então, e sempre mais se afirma, o princípio orgânico sobre aquele tradicional do ataque e defesa. Esta é a atual revolução incruenta, a maior conquista que se tenha verificado na história, porque não é apenas substituição de classes, mas de métodos de trabalho. Superando os velhos métodos de luta e renovação violenta, leva a mesma bem mais à frente, ainda que no homem, possam de vez em quando reemergir os velhos instintos agressivos. Pouco a pouco chegamos aos antípodas da escravatura e à opressão substitui-se a coordenação. Neste novo regime, destinado a prevalecer cada vez mais, os dependentes não serão mais levados a exigir o reconhecimento de seus próprios direitos, pois os dirigentes — como já vimos acima — espontaneamente os concedem, no interesse comum. Isto não tem nada a ver com o tradicional, elástico e egoísta paternalismo bonacheirão, por tratar-se de uma vantagem positiva racionalmente aquilatada e não mais fundamentada sobre interesses de parte. Porém, os dependentes imaturos não estão em condições de compreender e continuam a fazer-se guiar pela desconfiança que os leva a contar somente com aquilo que se pode obter com a força do próprio inimigo, o patrão. Para eles é incompreensível que, neste, possa verificar-se um comportamento de autêntica generosidade e que, de qualquer forma, possa tal conduta redundar em sua própria vantagem. Aliás é bem natural que pareça anacrônico tudo aquilo que antecipa a evolução. Mas é lógico: os métodos de vida da nova civilização do III milênio devem ser deste novo tipo, mesmo se — especialmente nos países atrasados — continuam a parecer um absurdo.
Assim do velho sistema do muito trabalho, mal pago e mal feito, com produção péssima e mínima, se passará à semana de trabalho sempre mais curta, com melhores salários com produção ótima, de cuja vantagem os operários participarão. Antigamente o problema dos dirigentes consistia em subjugar, hoje consiste em produzir melhor; antigamente se usava a força, hoje a inteligência. Tais são as características do desenvolvimento do fenômeno trabalho.
Antigamente em tudo vigorava o sistema do comando e da obediência, às vezes temperado pelo paternalismo do bom patrão que prodigalizava favores, mas apenas para induzir ao servilismo. Tais relações hipócritas acabaram por converter-se numa atmosfera de clareza em direção à tecnoestrutura. Mesmo que seja isto apenas, no momento, um começo de realização, mas é evidente: esta é a direção que está tomando a evolução. Tende-se, em todos os campos, a planejar, a organizar, a unificar, para dar mais rendimento ao trabalho e melhor segurança à vida. Os indivíduos que galgaram o vértice já palmilham conscientemente este caminho, que sempre mais os afasta do método da violência.
No futuro, o homem, sem perder a sua individualidade, antes valorizando-a pelo seu rendimento, pensará a funcionar sempre mais organicamente, porque a ordem não é inimiga da liberdade. Num regime sem disciplina posso fazer aquilo que quero mesmo em prejuízo do próximo, mas também os outros podem fazer aquilo que querem, até em meu prejuízo. Eis a cada passo a guerra que me tolhe a liberdade de fazer qualquer coisa. Quando existe uma ordem, sei aquilo que posso fazer e o faço quando quero, em pleno direito e segurança. Nesta condição a ordem me protege, enquanto na liberdade absoluta devo defender-me sozinho. A ordem me dá segurança porque eu, que cumpro o meu dever para com os outros, sei que os outros devem cumpri-lo para comigo. O utilitarismo da vida não pode renunciar a estas vantagens, e a evolução não pode deixar de avançar em direção a um tal melhoramento. Isso não significa basear-se sobre ideologias, mas sobre fatos positivos quais são o utilitarismo da vida e a evolução.
A tarefa da evolução consiste numa progressiva e sempre mais perfeita reordenação do caos. O sistema da guerra é o de assaltar a nação vizinha para roubar-lhe os haveres, mas é punido como furto e assassinato no direito privado dentro dos confins de uma nação. Aquele mesmo sistema, no campo internacional, não só é licito, mas é qualificado como ato heróico que merece as honras da pátria. Como se vê, a amplitude da reordenação do caos chegou à unidade do grupo nacional, mas não a do grupo internacional. Isto prova como a evolução procede por reordenamentos sempre mais vastos e complexos.
Antigamente a guerra era entre famílias e facções na mesma cidade e entre cidades vizinhas. O processo de unificação era mais atrasado do que nos tempos atuais, nos quais já se formam confederações de Estados e se entrevê a possibilidade de um governo mundial único, em que a guerra será ato criminal punido, como o é hoje no direito privado. Mas para chegar a isto o homem tem necessidade de se conscientizar como elemento de uma coletividade orgânica, meta esta que não alcançou ainda.
Ora, se a guerra ainda subsiste, é porque não deixa de continuar a cumprir uma função útil. Ela serve para romper as barreiras que se erguem como fronteiras entre uma nação e outra, porque o fim da vida é o de unir, até fazer de todos os povos uma só nação. O melhor resultado da última guerra foi a idéia de criar os Estados Unidos da Europa. Também este é um passo ulterior no avanço progressivo da desordem do AS para a ordem do S.
Por enquanto subsiste ainda a luta de classe. Mas ela serve para a formação de grupos, e com estes ae uma consciência de grupo de dimensões sempre mais vastas. Assim se organizam as massas e as primeiras iniciativas tomadas neste sentido pelos vários socialismos e comunismos se expandem no terreno das democracias, realizando um processo de organização mundial. A idéia de justiça social que antigamente era prerrogativa de um determinado partido, extravasa para além dos confins dos grupos que primeiramente a haviam pensado. Assim o princípio pelo qual a assistência ao pobre e a supressão ou a suavização das desigualdades econômicas é um dever, e se expande sempre mais no mundo inteiro inclusive nos regimes capitalistas.
Se as revoluções e as guerras exercem a função de amalgamar os povos e difundir as idéias, de tudo isto hoje há cada vez menos necessidade porque a unificação se alcança com outros meios, como as facilidades de comunicação entre todos os povos da Terra. Abriram-se assim sempre mais, as grandes estradas da vida, o que elimina cada mais a necessidade de recorrer aqueles velhos métodos baseados na violência. A vida, quando não tem mais necessidade da violência tende a eliminá-la porque, para alcançar os seus fins, pode substituí-la por outros meios.
Verifica-se, desse modo, que os métodos outrora indispensáveis para evoluir princípios de conduta antes fundamentais, sejam superados e abandonados. Então, por um processo natural de desenvolvimento, a violência, própria das níveis biológicos mais involuídos, tende a desaparecer. Acontece isso relativamente aos sagrados nacionalismos avaliados antigamente acima dos valores sociais. Começou-se a compreender que as guerras são vencidas somente pelos terceiros que ficam fora da luta. O mundo tende a coligar-se contra os provocadores de brigas considerados como um perigo público. É evidente que o processo evolutivo está pondo em ação uma nova técnica para realizar-se. E é natural que a vida prefira substituir os velhos pelos novos caminhos, porque estes dão melhor rendimento. Logo, os sistemas, antigamente em pleno vigor, tornam-se anacrônicos, porque não funcionam mais em nossos dias e são liquidados juntamente com os indivíduos que os personificam. Eis então que o sujeito que tivesse uma personalidade semelhante à de um grande chefe de outrora, poderia não passar, hoje, de um caso patológico, isto é, de um involuído a ser reeducado.
Antigamente o mundo era impregnado de espírito de domínio. Grande virtude era ser forte e vitorioso. A educação visava acima de tudo a inculcar a obediência, tanto que também a moral era imbuída daquele espírito de domínio inerente ao princípio de autoridade. A classe dos dirigentes procurava exercitá-la para ter todos submissos a ela. Agora todos estes sistemas de vida estão desaparecendo para darem lugar ao mais positivo e eficiente princípio evangélico da não resistência.
Eis que evolução e Evangelho caminham de acordo e convergem para a mesma meta. Vemos assim que o Evangelho visa a enfrentar o mesmo problema biológico que é para nós fundamental: o da luta pela vida. E vemos ainda resolvê-lo porque o enquadra num superior tipo de civilização, no qual a humanidade terá alcançado o estado unitário e orgânico. E é fatal que se deva evoluir até esta nova posição biológica, na qual o Evangelho é de necessária atuação e isto pelas próprias leis da vida.
Recomendação de Leitura:
O Sistema
Deus e Universo
Queda e Salvação
A Grande Síntese
A Lei de Deus
Nenhum comentário:
Postar um comentário