domingo, 19 de abril de 2015

A VIOLÊNCIA COMO INSTRUMENTO DE SOBREVIVÊNCIA

Nota:  Pietro Ubaldi escreve "S"  para Sistema  e AS para  anti Sistema

                                 
                               CAPÍTULO 19 DO LIVRO  CRISTO
                           A NOVA TÉCNICA DE RELAÇÕES SOCIAIS


O problema da violência. Ela constitui culpa num regime de ordem, mas é instrumento de luta num ambiente de viola­ções. A injustiça pode legitimar a revol­ta. A evolução elimina a violência. Re­conhecimento dos direitos do indivíduo. A injustiça institucionalizada. A descon­fiança recíproca e o instinto de luta impe­dem o diálogo. A vantagem de suprimir os atritos e a nova técnica das relações sociais. O fim das guerras.



Abordemos agora o problema da violência. O Evangelho a condena. Mas enquanto o seu convite à  não-resistência e ao perdão se dirige a quem é golpeado, o convite à não-violência se dirige aquele que golpeia. Depois de ter observado os primeiros dois aspectos do problema, observemos agora este terceiro aspecto concernente à  pacificação proposta pelo Evangelho. A sua solução é de fundamental importância para alcançar a de outro grave problema, o da convivência social, agora de grande atualida­de. Dada a técnica da sua evolução, a vida vê-se constrangida a afastar-se do seu primitivo estado se­paratista de luta e a tentar a eliminação da violên­cia, porque ela — como já vimos — caminha para a unificação. Deve-se avançar do AS para o S. Isto significa ter que mover-se em direção a ordem, à colaboração, à organicidade, coisas que exigem o pa­cifismo e excluem a violência. Eis que biologicamen­te ela é condenada a desaparecer porque a evolução fatalmente leva a superação da luta entre ele­mentos inimigos. Já se vê quanto ela seja contrapro­ducente e como deva ser eliminada nas grandes or­ganizações industriais e nos trabalhos de investigação científica de equipe. A atual conquista da Lua é o produto de uma tal organização. Até no setor reli­gioso a nova tendência é anti-separatista e unificado­ra. As novas idéias políticas se baseiam na coletivi­zação.

O que é a violência? Ela é a expressa o mais viva e evidente do estado de luta, que é a expressa o do impulso egoísta desagregante, próprio do AS. Desse modo, a violência está nos antípodas do S, é anti-Lei e portanto é mal e culpa. Não há dúvida de que a violência seja assim quando observada em relação a um regime de justiça, diante da Lei e do S, tomados como pontos de referencia.

O homem, porem, não vive no S, mas no AS, isto é, num regime de violação e de injustiça. Como estabelecer a culpabilidade de um ato, quando é co­metido num ambiente de culpa que constitui o ponto de referência? Quando nesse ambiente a violência é reputada necessária para a sobrevivência, como po­de considerar-se culposa uma conduta que é indispensável para não perecer? Ao contrário, quanto mais se desce involutivamente, tanto mais a violência, em vez de culpa é virtude, enquanto é um meio de vida, porque é necessário viver para que se rea­lize a evolução. Com efeito, para os seres do plano animal, renunciar a violência pode significar a mor­te. E isto, em certos momentos e ambientes, pode ser verdade também para o homem. Então, como sustentar o direito de seguir uma virtude que pode re­duzir-se a um suicídio? E como pode o ideal evangélico querer anular instintos basilares, fixados como automatismos por repetições milenares e portanto necessários a conservação da vida? E são tão necessários e tão preciosos que se deve aos mesmos ter o ho­mem sobrevivido até hoje.

É verdade que, para quem aprendeu com­portar-se conforme a Lei, não é necessária a violência, pois, ali reina a disciplina. Mas onde existe esta necessidade — como entre os involuídos situados fora da Lei, no AS — o discurso é bem outro. O ho­mem, devido ao seu atraso evolutivo, esta num am­biente ainda anti-Lei, onde para viver é necessário lutar e onde a defesa individual é confiada as pró­prias forças de cada um. Como se pode pretender que o indivíduo siga a seu risco e perigo uma condu­ta que, contrastando com o seu ambiente, impõe seus próprios métodos?

Então, o que acontece? É um fato que a evolução quer alcançar um regime de justiça. Esta é a tendência da vida, e, onde vigora a Lei, esta meta já se alcançou. Mas onde vigora a anti-Lei, mesmo lutando-se para alcançar a justiça, o ponto de partida do caminho do ser é ainda a injustiça. Logo, onde a violação da Lei constitui a regra, forma-se uma ca­deia de injustiças sem fim, cujos elos ligados entre si, segundo uma seqüência de causa e efeito, degladiam­-se incessantemente a procura de urna justiça, que por este método nunca será alcançada. Verifica-se então que a verdadeira culpa da violência recai toda sobre as primeiras causas de que ela é a conseqüência, as quais consistem num abuso em prejuízo do ofendido que, por instinto, reage. Ora, a primeira violência e culpa está sempre no fato de ter agido contra a justiça, o que se verifica via de regra nas po­sições de comando, precisamente onde deveria tri­unfar o dever de observar aquela justiça. Então esta injustiça por parte de quem tem autoridade leve os ofendidos a fazer uso da justiça com suas próprias mãos, por meio da violência. E esta é culpa quando usada contra um regime de justiça, converte-se em justiça, quando se dirige contra um regime de injustiça. Em tal caso a violência pode ser conforme a Lei, na medida em que se procura a justiça contra a injustiça. No entanto, para se ter o direito de admi­tir com o legítimo o uso da violência para fazer-se jus­tiça, é necessário reconhecer que vivemos num mun­do ainda selvagem.

Assim, por exemplo, na Revolução Francesa as culpas mais graves não hão de ser vistas nos delitos cometidos pelo povo exasperado, mas nos abu­sos da aristocracia que os havia provocado, levando aquele mesmo povo ao desespero. Em tais casos a violência, quando não exista outro meio para obter justiça, pode tornar-se legítima. Então é a vida que rompe as barreiras construídas pelos parasitas acomodados nas posições de domínio, para que estes não interrompam a evolução. E em tal caso que a Lei faz vencer as revoluções por mais ilegais que possam parecer.
E por este caminho que se chega ao absurdo de reconhecer a legitimidade de uma estranha moral que admite a revolta violenta, quando reputada necessária para restabelecer a ordem da justiça num regime baseado na desordem da injustiça. Assim um mal de tipo anti-Lei excepcionalmente pode tornar-se lícito. E, contudo, necessário que não haja outro ca­minho para se obter justiça. Mas além deste, há ainda um outro motivo: a escolha deste tipo de conduta não se pode fazer ao acaso, e sim, por uma necessi­dade que a justifique. Isto presume uma capacidade de se julgar com retidão, uma sã consciência para auto dirigir-se; presume ainda que o indivíduo assu­ma a responsabilidade desse seu modo de agir, a qual recai toda sobre quem julga ser justa a sua violência. Como se vê não é fácil estar moralmente autorizado a usá-la quando se trate de um tipo huma­no naturalmente levado ao abuso por egoísmo. Vê-se, pois, que são muitas as restrições a um reconhe­cimento da legitimidade no uso da violência.

O problema da legitimidade da violência é de grande atualidade, porque assistimos hoje a um levantamento mundial, nada pacífico, contra o prin­cípio de autoridade em todas as suas formas. Os conceitos acima referidos nos ajudam a compreen­der o fenômeno. A autoridade, no passado, foi usa­da com freqüência contra a justiça, para manter su­bordinada algumas classes de indivíduos que hoje se rebelam. Assistimos, assim, a fatos diversos, todos conexos por um fundo comum, como a emancipação da mulher contra a autoridade marital e a suprema­cia do macho em todos os campos; a rebelião dos pobres reclamando os seus direitos contra os ricos; a vontade de independência dos filhos perante os pais; a intolerância por parte das novas gerações perante os sistemas das velhos gerações. Isto acontece até no campo eclesiástico, outrora modelo de disciplina. Antigamente a mulher, o povo, os jovens, eram mantidos na ignorância, impedidos de conhecer a reali­dade da vida, zelosamente escondida sob ideais, usa­dos como máscara protetora. Hoje, as mesmas clas­ses que lhe estavam, outrora, — por terem despertado — não suportam mais semelhantes abusos. Trata-se de um movimento mundial que arrasta todos, por cima de todas as divisões e que pode ser considera­do uma revolução da própria vida onde a violência parece encontrar guarida na necessidade de progre­dir. Como se poderia condenar tudo isto quando é necessário a evolução? E então quem pode assumir o direito de impedir que a vida progrida?

Impõe-se portanto resolver o problema da de­finitiva eliminação deste mal que é a violência. Que ele as vezes seja necessário não quer dizer que não seja um mal. Como se pode chegar a tal resultado? E um fato que o homem está imerso num mar de vio­lações e reações, mas é também inegável que a vida exerce uma pressão incessante para subtrair-se a essa fatalidade. Por isso, apesar de tão tristes constatações, deveremos, por evolução, alcançar a supressão da violência. Se esta é um produto do AS, isto é, da involução, o remédio consiste na evolução, que a corrige, levando-a para o S. É fatal e onipresente a técnica de desenvolvimento deste fenômeno.

Vemos de fato que, como o furto pertence a fase involuída da propriedade legitimada por lei; co­mo a escravidão representa a fase involuída do tra­balho remunerado; assim a violência é a fase primitiva do direito codificado. A evolução disciplina e or­ganiza a atividade humana, construindo uma ordem sempre mais perfeita da qual a injustiça é cada vez mais eliminada e com ela a necessidade de uma reação que faça justiça. Caminha-se assim em dire­ção a observância da Lei, com o reconhecimento pa­ra todos do direito de viver, que num regime anti-Lei é negado e portanto deve ser exercitado a força, o que pode justificar o uso da violência.
A humanidade está hoje se aproximando da eliminação deste mal com o reconhecimento daquele direito a vida do qual permitirá a observância em to­dos os campos. Tende-se assim a exercitar a autori­dade cada vez menos em forma egoísta e opressiva como no passado, mas sempre mais em forma prote­tora e educadora. Eis que a violência não se elimina mediante outra violência que provocaria reação, mas com o civilizar-se, enquadrando-nos todos — dirigen­tes e dependentes — num regime de ordem e respon­sabilidade, caracterizado por direitos bem precisos e por deveres efetivamente respeitados. A violência não se pode eliminar a não ser eliminando suas cau­sas, as quais hão de ser vistas — via de regra — no mau uso que os detentores do poder vêm fazendo de sua autoridade, dos meios de vida e das diretrizes sociais em qualquer uma de suas formas, quer eco­nômica, quer política, quer religiosa etc.

Observemos a técnica deste fenômeno. Hoje vivemos numa fase de transição, do velho regime da injustiça ao novo caracterizado pela, instauração da justiça social. Vejamos como era constituído o velho regime. Não existia nele uma definição de direi­tos e deveres. O princípio sobre o qual se baseava era o seguinte: o direito vai até onde chegam as for­ças que tem o indivíduo para fazê-lo valer; o dever depende, pelo contrário, de sua fraqueza e se mede pela mesma. No campo bélico internacional é este o sistema que ainda vigora, de tal forma que o direito e sua legitimação são impostos pela força, por parte do vencedor. Então o vencido é julgado um crimino­so de guerra só porque é vencido.
O regime do passado era um regime de for­ça, não de justiça. Mas a vida evolui do primeiro sistema ao segundo. No passado cabiam ao forte to­dos os direitos justamente porque, enquanto tal, ele sabia fazê-los valer; ao débil cabiam, pelo contrario, todos os deveres, porque não sabia fazer valer seus direitos. Ao reconhecimento dos direitos e deveres de cada um, não se chega senão numa fase mais evoluída. Na fase antecedente, a honestidade era pregada só para paralisar — e assim melhor sujeitar — o mais fraco.
Era justo então que este se defendesse com a hipocrisia, porque perante o forte, outro meio de defesa ele não tinha. A astúcia então se explica e se justifica como legítima defesa, pois quem a usava se encontrava perante uma injustiça legalizada. E por­que a arma do engano usada pelo fraco em sua defe­sa não deveria ser admitida como o é a arma da força usada do lado oposto? Aos fortes, a força; aos dé­beis, a astúcia. A vida dá imparcialmente a cada um os seus meios para a sobrevivência, tanto mais que ela igualmente, no segundo caso, alcança a sua fina­lidade de salvação, quando, para além da superio­ridade física da força, faz vencer também a força mental da astúcia.

Formou-se assim no passado uma moral fei­ta de uma mistura de força e de hipocrisia, isto é, de aparente honestidade sob a qual fervia subterranea­mente uma encarniçada luta pela vida. Formara-se deste modo o clássico tipo de pessoa de bem, o respeitável bem-pensante. Havia, desse modo, estabelecido um certo equilíbrio na convivência entre a classe dos patrões e a dos servos, o primeiro esmaga­do com a força, o segundo enganando com a astúcia, sem que nunca chegassem a uma clara definição ou a uma exata observância dos recíprocos direitos e deveres. Quem se encontra hoje em idade avança­da, pode ter conhecido aqueles dois regimes. Hoje a vida, apesar de ser contestação e revolta, busca de­finições e soluções claras, enquanto antigamente tu­do parecia um jardim florido, mesmo se, em substância, não passasse de um campo minado.
No passado, não tendo sido ainda alcançada uma consciência de recíprocos direitos e deveres, não se podia resolver o problema senão com esse equilíbrio entre os dois opostos egoísmos, o do forte e o do fraco, cada um lutando com os seus meios. Por este caminho a solução do conflito não podia ser da­da senão pelo fato de o fraco fazer-se forte até o pon­to de conseguir que o forte reconhecesse seus di­reitos.

E isto em substância o que está acontecendo hoje em dia. Trata-se de um produto da evolução e para se chegar lá era necessária e indispensável uma proporcionada maturação em todos os campos. Esta é a grande revolução de hoje. Eis porque os princípios do passado, como o da autoridade etc. estão em crise. Mas, há de se lutar para que esta rea­ção seja realizada com sentido de justiça e não me­diante um abuso em sentido contrário, porque o abuso só consegue dar lugar a uma cadeia de reações do mesmo tipo. A solução se alcança com o equilíbrio, e não com um novo desequilíbrio.

Eis porque o Evangelho condena a violência. Mas quando ela é condenada para outros fins, como o de manter quietas as massas para conservar de pé a injustiça institucionalizada de regimes que violam os direitos fundamentais do homem, então se com­preende e se justifica a reação das massas submeti­das. Em tal caso a responsabilidade da revolta não cai tanto sobre os revoltosos quanto sobre as classes dominantes, porque são elas que com a sua conduta provocam as reações explosivas do desespero. Lo­go pode tornar-se legítima, como referimos acima, uma insurreição revolucionaria, quando ela seja con­tra uma tirania evidente e prolongada.

Eis que o pensamento moderno é orientado de um modo totalmente diverso daquele que vigorava até o mais recente passado, quando o homem se apoderava das melhores posições e depois, para mantê-las, pregava a não violência do Evangelho aos excluídos daquelas posições, das quais eles não tinham sabido empossar-se. Assim a legalidade da ordem estabelecida cobria a injustiça.
Hoje este jogo é evidente e por isso não vigo­ra mais. Hoje a vida procede a um nivelamento de direitos e deveres, imparcialmente, porque pretende chegar a organizar toda a massa humana numa única sociedade em que cada qual cumpre a sua função, seja de comando, seja de obediência, conforme as suas respectivas capacidades. Antigamente a vi­da queria fazer sobreviver o mais forte, eliminando o mais fraco. E naquele nível evolutivo isto era justo. Mas hoje ela tende a deslocar-se para novas posi­ções, e, além de procurar realizar tal seleção, tende a coletivização para alcançar a fase orgânica. Se­que-se daí que o nivelamento, que parece supressão dos valores individuais, leva, pelo contrário, ao al­cance de um seu maior rendimento, enquanto faz rea­lizar um passo para a frente em direção a unificação.
É certo que se trata de uma revolução e não apenas de um fato superficial. Mas ela implica também um outro deslocamento, na medida em que se realiza com uma técnica menos sanguinária e mais inteligente. Não tende esta de fato à mera substituição de pessoas nas mesmas posições, mas a uma exa­ta definição de direitos e deveres, para se chegar a um estado orgânico unificado. Isto concorda com um outro aspecto da técnica evolutiva, para a qual uma posição mais avançada e mais perfeita, enquanto mais exatamente definida nos particulares, dado que a evolução é ainda um processo de aperfeiçoamen­to e de maior complexidade do modo de existir.

Ora, quanto mais se avança em direção a tal posição, na qual são reconhecidos os direitos do indivíduo e se vive num regime de justiça, tanto mais a violência se torna verdadeiramente culpa e a Lei de Deus com as suas reações severamente a corrige co­mo toda verdadeira injustiça.
Então o que de bom se pode pretender quan­do a primeira violação vem do alto? Não é possível se praticar a injustiça da opressão para com seus próprios dependentes sem que eles não adquiram o direito de praticar a injustiça da revolta para com seus próprios superiores. No fundo é natural que es­tes procurem revidar o dano que recebem. Então co­mo podem falar de deveres aqueles que, em primei­ro lugar, não cumprem com os seus próprios? E esta falsidade que autoriza a desobediência. Triunfa en­tão o regime do AS, da luta de todos contra todos, no qual é inútil procurar justiça.

*   *   *

É a lei da luta na desordem, própria do nível evolutivo humano que ainda não alcançou a fase da harmonização; é este o estado de fato que torna difí­cil a eliminação da violência. A evolução que este aguarda é obstaculizada pelo fato de que a huma­nidade emerge de um regime de injustiça profunda­mente fixado no seu subconsciente.
Antigamente as revoltas dos subalternos eram todas ilegítimas porque era inconcebível que eles ti­vessem direitos. Isto produziu um inevitável estado de desconfiança sobretudo por parte dos dependentes em relação aos dirigentes. Não existe colabora­ção entre os dois extremos, mas um antagonismo di­ficilmente sanável. Pudemos observar na Europa casos em que o velho instinto de revolta do servo contra o patrão —  voltando a tona — induziu os pri­meiros a não aceitar propostas para sua vantagem, ofertas feitas por patrões inteligentes. Estes as ofere­ciam porque tinham compreendido que nos próximos anos ver-se-iam constrangidos a concedê-las à força. Então, antecipando os tempos, tinham decidido ofe­rece-las de sua espontânea vontade, em vista de seu interesse futuro.

A vantagem para eles consistia em assegu­rar à sua própria indústria um longo período de paz, o que significa uma maior produção e portanto maior utilidade enquanto elimina a dispersão de energias a que conduz a luta, com greves, vandalismos, sabo­tagens, escasso rendimento de trabalho, discussões com sindicatos etc. As concessões queriam prevenir tudo isso e os conseqüentes prejuízos, procurando re­solver o problema da eliminação da violência, a par­tir de suas próprias causas, instaurando, assim, um regime de justiça. E seguindo este exemplo que os dirigentes dão prova de ter compreendido ser bem mais conveniente darem prova de justiça e genero­sidade do que continuar a explorar e a oprimir seus dirigidos, concedendo-lhes espontaneamente aquilo que eles conseguiriam, mais tarde, pela força.

Pois bem, nestes casos pudemos observar que os dirigidos recusaram tais ofertas, pacificamen­te, para eles realmente vantajosas, preferindo palmi­lhar o método da ofensiva e da sucessiva extorsão pela violência. Isto porque este é o seu instinto, fru­to de longa experiência no passado — que os indu­ziu a desconfiar da oferta interpretada à guisa de uma enganosa armadilha. Aquele instinto os leva, pois, a não aceitar, porque eles acreditam que é somente extorquindo com a força que conseguirão algo de verdade. Nem é possível se esperar uma atitude diferente de indivíduos habituados por milênios a desconfiar. Até ontem os servos não sabiam sequer quais eram os seus direitos. Sabiam apenas que o mais forte os tinha todos e o mais fraco nenhum, e que cada uma das suas reclamações era julgada e puni­da como uma revolta.

Os modernos conceitos de justiça social são recentíssimos para poderem vencer as resistências de todo um passado fixado no inconsciente coletivo Vive-se ainda um regime de desconfiança contra todos porque se esta habituado a ser golpeado pelos fortes e enganado pelos mais astutos. Continua-se, assim, com o sistema da violência por puro desabafo de instinto, mesmo quando ela não é legitimada por nenhuma necessidade. Todo o passado ensinou ao homem: o que vale é a força, muito mais que a jus­tiça. O vencedor tinha direito a tudo, porque ven­cedor. Assim o homem tinha qualificado Deus como Onipotente, para o colocar no lugar que lhe pare­cia de maior valor, o do poder, antes que da justiça. A velha natureza humana ainda sobrevive e impede a formação do espírito de compreensão e colabora­ção necessário nas modernas grandes organizações econômicas, políticas, sociais, industriais. Estas têm necessidade de resolver os conflitos com o menos tempo e menor dispêndio de energias possível.
Daqui a necessidade do diálogo inteligente que valorize os interesses comuns evitando o atrito que deteriora e não resolve. Mas, infelizmente, sem­pre pelo referido instinto de desconfiança e de luta, o diálogo pode resolver-se num engano, pois pode não passar de uma astúcia para imobilizar com pa­lavras e promessas a parte contrária afim de vencê­-la melhor. O diálogo presume de ambas as partes certa dose de boa vontade para concordar e coope­rar, pois de outro modo não passa de uma engano­sa arma de guerra. Explica-se assim como é os jo­vens contestadores de hoje, que não aceitam mais o dialogo como meio para se entenderem, mas a for­ça. Eis então que a técnica do diálogo ainda não funciona, devido a imaturidade dos dialogantes, le­vados a usar os velhos métodos de luta para o pre­domínio individual ou mesmo coletivo. Assim a últi­ma palavra decisiva está entregue a luta, prevale­cendo a tendência de recair nas posições mais atra­sadas da evolução.

Tal tendência involutiva é, contudo, corrigida pelo contínuo esforço ascensional da vida que, pelo contrário, quer evoluir. A vida é utilitária. Se­gue, por isso, o método da procura da maior vanta­gem com o mínimo esforço, tendendo sempre mais ao estado orgânico e unitário. E se ela admite a luta é precisamente para fazer com que elementos estra­nhos possam conhecer-se, e assim juntar-se e coope­rar. A guerra é a primeira e mais involuída forma de contato e de diálogo que a vida impõe aos sujeitos separados, para que se avizinhem e se unifiquem. É assim que a evolução, através da guerra, acaba por eliminar a guerra. É assim que nas relações sociais a compreensão que aproxima e unifica tende a substituir-se a luta que isola e divide.

Sabemos que o ponto de partida da evolu­ção é o AS, isto é, o estado caótico separatista e que a meta a que ela tende é o S, isto é, o estado orgâ­nico de ordem e cooperação. Desse modo, quanto mais se desce involutivamente, tanto mais o esforço se consome em atritos de luta e tanto menor é o tra­balho produtivo. É assim que no estado involutivo temos esforço máximo e rendimento útil mínimo, en­quanto no estado evolutivo temos um esforço mínimo e um rendimento útil máximo. Eis que a vantagem da eliminação da luta e da coordenação dos esforços para colaborar, é avaliável em termos utilitários. É impossível que a inteligência humana não chegue — desenvolvendo-se — a compreender e a aplicar, pa­ra sua própria vantagem, uma verdade tão elemen­tar como aquela pela qual o estado de ordem, e a dis­ciplina social que implica, são mais úteis — enquan­to menos dispersivos e mais produtivos — mesmo se são, muitas vezes, considerados como uma limitação da liberdade. É por isso que, por se terem experi­mentado as tristes conseqüências de um abuso da liberdade, corre-se o risco de uma recaída no regime policial com a esperança de se reconquistar ou de se instaurar tal disciplina.

É assim que o fenômeno da supressão da vio­lência encontra-se ao longo do caminho da evolução, cuja função é a de superá-lo e resolvê-lo. E o que se verifica hoje sobretudo nas relações sociais pertencentes ao campo do trabalho, é que aos velhos e cansativos sistemas de luta vão se substituindo outros de maior rendimento. Aos atritos entre patrão e servo substitui-se o método da colaboração entre co-interessados. Quando o operário se torna co-proprietário e o proletário se torna burguês, não é mais necessário abolir a propriedade para alcançar a justi­ça social. E isto já começa a funcionar nas indús­trias dos países mais avançados por obra de especia­lizados em tecnoestrutura. Retrocede a violência e em seu lugar avança a inteligência. Prevalece en­tão, e sempre mais se afirma, o princípio orgânico so­bre aquele tradicional do ataque e defesa. Esta é a atual revolução incruenta, a maior conquista que se tenha verificado na história, porque não é apenas substituição de classes, mas de métodos de trabalho. Superando os velhos métodos de luta e renovação violenta, leva a mesma bem mais à frente, ainda que no homem, possam de vez em quando reemergir os velhos instintos agressivos. Pouco a pouco chega­mos aos antípodas da escravatura e à opressão subs­titui-se a coordenação. Neste novo regime, destina­do a prevalecer cada vez mais, os dependentes não serão mais levados a exigir o reconhecimento de seus próprios direitos, pois os dirigentes — como já vimos acima — espontaneamente os concedem, no interesse comum. Isto não tem nada a ver com o tra­dicional, elástico e egoísta paternalismo bonachei­rão, por tratar-se de uma vantagem positiva racionalmente aquilatada e não mais fundamentada sobre interesses de parte. Porém, os dependentes imaturos não estão em condições de compreender e continuam a fazer-se guiar pela desconfiança que os leva a con­tar somente com aquilo que se pode obter com a for­ça do próprio inimigo, o patrão. Para eles é in­compreensível que, neste, possa verificar-se um comportamento de autêntica generosidade e que, de qualquer forma, possa tal conduta redundar em sua própria vantagem. Aliás é bem natural que pareça anacrônico tudo aquilo que antecipa a evolução. Mas é lógico: os métodos de vida da nova civiliza­ção do III milênio devem ser deste novo tipo, mesmo se — especialmente nos países atrasados — conti­nuam a parecer um absurdo.

Assim do velho sistema do muito trabalho, mal pago e mal feito, com produção péssima e mínima, se passará à semana de trabalho sempre mais curta, com melhores salários com produção ótima, de cuja vantagem os operários participarão. Antiga­mente o problema dos dirigentes consistia em subjugar, hoje consiste em produzir melhor; antigamente se usava a força, hoje a inteligência. Tais são as ca­racterísticas do desenvolvimento do fenômeno tra­balho.

Antigamente em tudo vigorava o sistema do comando e da obediência, às vezes temperado pelo paternalismo do bom patrão que prodigalizava favo­res, mas apenas para induzir ao servilismo. Tais relações hipócritas acabaram por converter-se numa atmosfera de clareza em direção à tecnoestrutura. Mesmo que seja isto apenas, no momento, um come­ço de realização, mas é evidente: esta é a direção que está tomando a evolução. Tende-se, em todos os campos, a planejar, a organizar, a unificar, para dar mais rendimento ao trabalho e melhor segurança à vida. Os indivíduos que galgaram o vértice já pal­milham conscientemente este caminho, que sempre mais os afasta do método da violência.

No futuro, o homem, sem perder a sua indivi­dualidade, antes valorizando-a pelo seu rendimento, pensará a funcionar sempre mais organicamente, porque a ordem não é inimiga da liberdade. Num regime sem disciplina posso fazer aquilo que quero mesmo em prejuízo do próximo, mas também os ou­tros podem fazer aquilo que querem, até em meu pre­juízo. Eis a cada passo a guerra que me tolhe a liberdade de fazer qualquer coisa. Quando existe uma ordem, sei aquilo que posso fazer e o faço quan­do quero, em pleno direito e segurança. Nesta con­dição a ordem me protege, enquanto na liberdade absoluta devo defender-me sozinho. A ordem me dá segurança porque eu, que cumpro o meu dever para com os outros, sei que os outros devem cumpri-lo pa­ra comigo. O utilitarismo da vida não pode renun­ciar a estas vantagens, e a evolução não pode dei­xar de avançar em direção a um tal melhoramento. Isso não significa basear-se sobre ideologias, mas sobre fatos positivos quais são o utilitarismo da vida e a evolução.

A tarefa da evolução consiste numa progres­siva e sempre mais perfeita reordenação do caos. O sistema da guerra é o de assaltar a nação vizinha para roubar-lhe os haveres, mas é punido como fur­to e assassinato no direito privado dentro dos con­fins de uma nação. Aquele mesmo sistema, no cam­po internacional, não só é licito, mas é qualificado co­mo ato heróico que merece as honras da pátria. Co­mo se vê, a amplitude da reordenação do caos che­gou à unidade do grupo nacional, mas não a do grupo internacional. Isto prova como a evolução proce­de por reordenamentos sempre mais vastos e com­plexos.

Antigamente a guerra era entre famílias e facções na mesma cidade e entre cidades vizinhas. O processo de unificação era mais atrasado do que nos tempos atuais, nos quais já se formam confederações de Estados e se entrevê a possibilidade de um gover­no mundial único, em que a guerra será ato criminal punido, como o é hoje no direito privado. Mas para chegar a isto o homem tem necessidade de se conscientizar como elemento de uma coletividade orgâ­nica, meta esta que não alcançou ainda.

Ora, se a guerra ainda subsiste, é porque não deixa de continuar a cumprir uma função útil. Ela serve para romper as barreiras que se erguem como fronteiras entre uma nação e outra, porque o fim da vida é o de unir, até fazer de todos os povos uma só nação. O melhor resultado da última guerra foi a idéia de criar os Estados Unidos da Europa. Tam­bém este é um passo ulterior no avanço progressivo da desordem do AS para a ordem do S.
Por enquanto subsiste ainda a luta de classe. Mas ela serve para a formação de grupos, e com estes ae uma consciência de grupo de dimensões sempre mais vastas. Assim se organizam as massas e as pri­meiras iniciativas tomadas neste sentido pelos vários socialismos e comunismos se expandem no terreno das democracias, realizando um processo de organização mundial. A idéia de justiça social que antigamen­te era prerrogativa de um determinado partido, ex­travasa para além dos confins dos grupos que primeiramente a haviam pensado. Assim o princípio pelo qual a assistência ao pobre e a supressão ou a sua­vização das desigualdades econômicas é um dever, e se expande sempre mais no mundo inteiro inclusive nos regimes capitalistas.

Se as revoluções e as guerras exercem a função de amalgamar os povos e difundir as idéias, de tu­do isto hoje há cada vez menos necessidade porque a unificação se alcança com outros meios, como as facilidades de comunicação entre todos os povos da Terra. Abriram-se assim sempre mais, as grandes estradas da vida, o que elimina cada mais a necessi­dade de recorrer aqueles velhos métodos baseados na violência. A vida, quando não tem mais necessi­dade da violência tende a eliminá-la porque, para alcançar os seus fins, pode substituí-la por outros meios.

Verifica-se, desse modo, que os métodos ou­trora indispensáveis para evoluir princípios de conduta antes fundamentais, sejam superados e aban­donados. Então, por um processo natural de desenvolvimento, a violência, própria das níveis biológicos mais involuídos, tende a desaparecer. Acontece isso relativamente aos sagrados nacionalismos avaliados antigamente acima dos valores sociais. Começou-se a compreender que as guerras são vencidas somen­te pelos terceiros que ficam fora da luta. O mundo tende a coligar-se contra os provocadores de brigas considerados como um perigo público. É evidente que o processo evolutivo está pondo em ação uma nova técnica para realizar-se. E é natural que a vida prefira substituir os velhos pelos novos caminhos, por­que estes dão melhor rendimento. Logo, os sistemas, antigamente em pleno vigor, tornam-se anacrônicos, porque não funcionam mais em nossos dias e são li­quidados juntamente com os indivíduos que os per­sonificam. Eis então que o sujeito que tivesse uma personalidade semelhante à de um grande chefe de outrora, poderia não passar, hoje, de um caso pato­lógico, isto é, de um involuído a ser reeducado.

Antigamente o mundo era impregnado de espírito de domínio. Grande virtude era ser forte e vitorioso. A educação visava acima de tudo a inculcar a obediência, tanto que também a moral era imbuída daquele espírito de domínio inerente ao princípio de autoridade. A classe dos dirigentes procurava exercitá-la para ter todos submissos a ela. Agora to­dos estes sistemas de vida estão desaparecendo pa­ra darem lugar ao mais positivo e eficiente princípio evangélico da não resistência.


Eis que evolução e Evangelho caminham de acordo e convergem para a mesma meta. Vemos as­sim que o Evangelho visa a enfrentar o mesmo pro­blema biológico que é para nós fundamental: o da luta pela vida. E vemos ainda resolvê-lo porque o enquadra num superior tipo de civilização, no qual a humanidade terá alcançado o estado unitário e or­gânico. E é fatal que se deva evoluir até esta nova posição biológica, na qual o Evangelho é de neces­sária atuação e isto pelas próprias leis da vida.


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